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A CONSTITUIÇÃO DA OBRA LITERÁRIA EM DIFERENTES PERSPECTIVAS

No documento M ARIAA BADIAC ARDOSO (páginas 118-124)

A constituição de uma teoria sobre a “essência” da obra literária esteve nas preocupações da denominada Fenomenologia. Segundo Terry Eagleton,293 a Europa, nos primórdios do século XX, estava devastada pela Primeira Guerra Mundial, pelas revoluções sociais e pelo abalo da ordem social do capitalismo. As ideologias que sustentavam a ordem anterior também estavam ruindo. Estabeleceu-se uma perda geral de referências no campo da ciência e, logicamente, a arte não deixava de refletir este mesmo processo. Em meio a essa civilização que parecia se desintegrar, a Fenomenologia – a ciência dos fenômenos puros –, pelo viés de Edmund Husserl,

291 Tais análises encontram-se sistematizadas sob o título “Questões Filosóficas” na obra ROSENFELD,

Anatol. Texto/Contexto II. São Paulo: Perspectiva, 2007. 305 p. Trata-se de escritos impressos entre 1943 e 1967 em jornais como Diário Paulista, Jornal de São Paulo, Correio Paulistano, Crônica

Israelita, O Estado de S. Paulo (Suplemento Literário).

292 ROSENFELD, Anatol. Letras Germânicas. São Paulo/Campinas: Perspectiva/EDUSP/Editora da

Universidade Estadual de Campinas, 1993. 338 p. Essa coletânea reúne os trabalhos escritos por Rosenfeld para o Suplemento Literário de O Estado de São Paulo na seção de Letras Germânicas.

293 EAGLETON, Terry. Fenomenologia, Hermenêutica, Teoria da Recepção. In: ______. Teoria da

Literatura: uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.

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“Procurou desenvolver um novo método filosófico que oferecesse uma certeza absoluta a uma civilização que se desintegrava”.294 Segundo o filósofo, ainda que não se tenha certeza das coisas, é possível estar certo sobre a maneira pela qual elas aparecem na consciência. Os objetos não são coisas “em si”, mas coisas pretendidas pela consciência. Sua teoria parte do pressuposto de que há uma invariabilidade no objeto.

Assim, constituindo-se como a “ciência das ciências”, a Fenomenologia procurou estabelecer um método de estudo para uma variedade de assuntos: “Ao contrário das outras ciências, ela não indagava sobre essa ou aquela forma particular de conhecimento, mas sobre as condições que tornavam possível qualquer tipo de conhecimento, em primeiro lugar”.295 Tal método se estendeu à análise da obra literária:

A crítica fenomenológica focaliza, tipicamente, a maneira pela qual o autor sente o tempo ou o espaço, ou a relação entre o eu e os outros, ou sua percepção dos objetos materiais. Em outras palavras, as preocupações metodológicas da filosofia husserliana frequentemente tornam-se, na crítica fenomenológica, o “conteúdo” da literatura.296

Se, de acordo com essa concepção, a obra literária se constitui como um todo orgânico, a crítica não é considerada como construção ou interpretação ativa. “É um tipo de crítica idealista, essencial, anti-histórica, formalista e organicista, uma forma de destilação pura dos pontos ininteligíveis, preconceitos e limitações da moderna teoria literária como um todo”.297

Ainda, segundo Eagleton, o reconhecimento da perspectiva histórica levou o discípulo de Husserl, o filósofo Heidegger, a romper com seu sistema de pensamento. “Passar de Husserl para Heidegger é passar do terreno do intelecto puro para uma filosofia que medita sobre a sensação de estar vivo”.298 Para Heiddegger, o mundo é algo do qual nunca podemos sair. Adota a perspectiva do “pré-entendimento”: a ligação

294 EAGLETON, Terry. Fenomenologia, Hermenêutica, Teoria da Recepção. In: ______. Teoria da

Literatura: uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.

84.

295 Ibid., p. 86. 296 Ibid., p. 90-91. 297 Ibid., p. 91. 298 Ibid., p. 94.

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com o mundo antecede o pensar sistematicamente. Nessa perspectiva, a interpretação da obra literária recebe novas nuanças:

Para Heidegger, a interpretação literária não está fundamentada na atividade humana; em primeiro lugar ela não é alguma coisa que

fazemos, mas algo que devemos deixar que aconteça. Devemos nos

abrir passivamente ao texto, submetendo-nos ao seu ser misteriosamente inesgotável, deixando-nos interrogar por ele.299

Com o intuito de distinguir a “fenomenologia transcendental” de Husserl, o modelo filosófico de Heidegger é considerado “fenomenologia hermenêutica”. Limitando-se inicialmente à interpretação das escrituras sagradas, a palavra hermenêutica recebeu no século XIX a conotação de interpretação textual como um todo. Para Eagleton, Hans Georg Gadamer é o sucessor hermeneuta mais presente:

O estudo central de Gadamer, Verdade e método (1960), coloca-nos na arena de problemas que nunca deixaram de atormentar a moderna teoria literária. Qual o sentido de um texto literário? Que relevância tem para esse sentido a intenção do autor? Poderemos compreender obras que nos são cultural e historicamente estranhas? É possível o entendimento “objetivo”, ou todo entendimento é relativo à nossa própria situação histórica? Veremos que há muito mais coisas em jogo nessas questões do que apenas a “interpretação literária”.300

Para Gadamer, o significado de uma obra literária não se esgota nas intenções de seu autor. Se a obra passa de um contexto histórico para outro, novos significados podem surgir. Desse modo, a interpretação é configurada pelos critérios relativos a uma determinada cultura. Contudo, para Eagleton,

Gadamer pode igualmente entregar-se a si e à literatura, aos ventos da história, porque essas folhas espalhadas por fim acabarão sempre chegando em casa – e chegarão porque sob toda história, abrangendo silenciosamente o passado, o presente e o futuro, flui uma essência unificadora conhecida como “tradição”.301

299 EAGLETON, Terry. Fenomenologia, Hermenêutica, Teoria da Recepção. In: ______. Teoria da

Literatura: uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.

98-99.

300 Ibid., p. 101. 301 Ibid., p. 109.

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A recepção da obra literária não fica prejudicada porque a tradição cumpre um papel: determinar quais “preconceitos” são legítimos e quais não são.

Adotando uma perspectiva distinta, E. D. Hirsch considera a obra literária sob duas perspectivas: faz uma distinção entre “sentido” (aquilo que o autor estabelece) e “significado” (variações ao longo da história).

Para Hirsch, o fato de o significado de uma obra ser idêntico ao que o autor entendeu por ela no momento de escrever não implica uma única interpretação do texto. Pode haver várias interpretações diferentes e válidas, mas todas elas devem se situar dentro do “sistema de expectativas e probabilidades típicas” que o sentido do autor permitir. Hirsch também não nega que uma obra literária possa “significar” diferentes coisas para diferentes pessoas em diferentes épocas. Mas isso, diz ele, é antes uma questão da “significação” da obra do que do seu “sentido”. O fato de que eu possa apresentar o Macbeth de sorte a torná-lo relevante para a guerra nuclear não altera a fato de que isso não seja o que a peça “quer dizer”, do ponto de vista de Shakespeare. As significações variam ao longo da história, ao passo que os sentidos permanecem constantes; os autores dão sentido às suas obras, ao passo que leitores lhes atribuem significações.302

Segundo Eagleton, a “estética da recepção”303 é a mais recente manifestação da hermenêutica na Alemanha. O papel do leitor é o foco do seu exame. Algo extremamente novo, ao se considerar que a história da moderna teoria literária pode ser dividida em três fases: uma preocupação com o autor (romantismo e século XIX), uma preocupação com o texto (Nova crítica) e uma transferência para o leitor. Desse trio, o leitor é o menos considerado. A teoria da recepção, ao contemplá-lo, inaugura algo:

O texto, em si, realmente não passa de uma série de “dicas” para o leitor, convites para que ele dê sentido a um trecho de linguagem. Na terminologia da teoria da recepção, o leitor “concretiza” a obra literária, que em si mesma não passa de uma cadeia de marcas negras organizadas numa página. Sem essa constante participação ativa do leitor, não haveria obra literária.304

302 EAGLETON, Terry. Fenomenologia, Hermenêutica, Teoria da Recepção. In: ______. Teoria da

Literatura: uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.

103.

303 É necessário mencionar ainda a seguinte referência: JAUSS, Hans Robert, et al. A literatura e o

leitor: textos de estética da recepção. Tradução e coordenação de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1979. 213p.

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Para Regina Zilbermann, “a estética da recepção apresenta-se como uma teoria em que a investigação muda de foco: do texto enquanto estrutura imutável ele passa para o leitor, o ‘terceiro estado’, conforme Jauss o designa”.305 Ambientadas nos acontecimentos históricos e intelectuais dos anos de 1960, as teses da estética da recepção serão lidas, discutidas e alargadas, constituindo assim um “lugar” dentro da própria teoria da literatura. Entretanto, a preocupação com recepção não é exclusiva dessa teoria. Também a sociologia da leitura prioriza o público como fator ativo no processo literário, o estruturalismo tcheco já apelava para a “ação do destinatário” enquanto sujeito da percepção e, ainda, o Reader Response Critician, entre outras questões, propõe:

Um poema não pode ser entendido independentemente de seus resultados. Seus ‘efeitos’, psicológicos ou outros, são essenciais para qualquer descrição acurada de seu sentido, já que este não tem existência efetiva fora de sua realização na mente de um leitor.306

Porém a Escola de Constança, de modo especial a proposta de Jauss, procura estabelecer novos parâmetros para a constituição da própria história da literatura. Zilberman apresenta as teses defendidas por ele: a relação dialógica entre o leitor e o texto; para descrever a experiência literária do leitor não é necessário recorrer à psicologia; necessidade de concretizar o caráter criativo da obra; reconstituição de seu “horizonte”; relação do texto com a época de seu aparecimento; a obra não perde o seu poder de ação ao transpor o período de seu surgimento; estabelecimento de um sistema de relações próprio à literatura num dado momento histórico e, por fim, a relação entre literatura e sociedade.

Em suma, a História da Literatura como provocação à teoria literária307 de Jauss evidencia, entre outras questões, que a dimensão da obra varia de acordo com as perspectivas teóricas que se dispõem a interpretá-la – o que explicita ao problematizar as propostas dos formalistas russos ou teoria literária marxista –, assim como que a

305 ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e História da Literatura. São Paulo: Ática, 1989, p.

10-11.

306 Ibid., p. 25.

307 JAUSS, Hans Robert. História da Literatura como provocação à Teoria Literária. Tradução de

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relação entre a literatura e o leitor tem implicações históricas e estéticas. É sob esse prisma que caracteriza a obra literária:

A obra literária não é um objeto que exista por si só, oferecendo a cada observador em cada época um mesmo aspecto. Não se trata de um monumento a revelar monologicamente seu Ser temporal. Ela é antes como uma partitura voltada para a ressonância sempre renovada da leitura, liberando o texto da matéria das palavras e conferindo-lhe existência atual: “parole qui doit, en même temps qu’elle lui parle,

créer un interlocuteur capable de l’entendre”. É esse caráter dialógico

da obra literária que explica por que razão o saber filológico pode apenas consistir na continuada confrontação com o texto, não devendo congelar-se num saber acerca de fatos. O saber filológico permanece sempre vinculado à interpretação, e esta precisa ter por meta, paralelamente ao conhecimento de seu objeto, refletir e descrever a consumação desse conhecimento como momento de uma nova compreensão.308

É necessário destacar que cada uma dessas diferentes “teorias” situa-se numa dada temporalidade, a qual, consequentemente, traz à tona referenciais que são intelectuais e culturais e devem ser considerados em sua historicidade. Inclusive a abordagem de Eagleton problematiza as propostas, bem como os limites dessas empreitadas que se dispuseram a discorrer sobre a obra literária. Porém, dentro dos propósitos deste estudo, não é possível destacar o viés histórico de cada um dos estudiosos elencados. Mas o objetivo, ao expô-los, pautou-se em apontar que, sob diferentes perspectivas, a Fenomenologia, a Hermenêutica e a Teoria da Recepção se propuseram a problematizar a “dimensão” da obra literária. Exercício reflexivo que a teoria de Anatol Rosenfeld sobre a obra de arte literária também realiza.

Nesse momento alguns questionamentos devem ser postos: por que as discussões teóricas concernentes à obra literária ganham amplitude nas análises de Rosenfeld se essas questões já foram por diversas vezes sistematizadas? Por que a preocupação em delimitar o que seja a obra de arte literária perpassa diferentes textos de sua autoria? Em que “lugar” situar o debate? E, principalmente, qual consequência retirar disso?

308 ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e História da Literatura. São Paulo: Ática, 1989, p.

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Situar o “lugar” ocupado por Rosenfeld nesse debate parece complexo, uma vez que se apropria da Fenomenologia como “ponto de partida”, como possibilidade de “voltar-se para o objeto”. E, conforme exposto por Eagleton, a análise fenomenológica aplicada à interpretação da obra de arte tem um grande limite, pois rejeita o que é externo à obra, tal como a temporalidade de produção e recepção do objeto artístico e todas as consequências oriundas daí, algo que, num caminho diferente, a Estética da Recepção procura considerar. Porém, Rosenfeld, ainda que adote a perspectiva fenomenológica, não se limita a ela, uma vez que também reconhece que “Seria ridículo querer negar hoje que o fato literário se relacione com as questões socioculturais gerais”. São duas percepções que parecem divergir substancialmente, mas que estão presentes num mesmo pensamento. De que modo é possível “resolver” essa contradição?

A resposta para questões de tamanha complexidade dever ser antecedida pelo fato de que até o momento objetivou-se acompanhar o movimento teórico que Rosenfeld faz sobre a “estrutura” da obra literária mostrando que tal exercício reflexivo faz parte de um movimento mais amplo. Porém faz-se necessário partir para a análise dos “objetos” ou “temas” literários que ele se propõe a analisar, com o escopo de investigar o modo pelo qual a dimensão histórica e a dimensão estética neles se “materializam”.

No documento M ARIAA BADIAC ARDOSO (páginas 118-124)