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O “ RETORNO ” AO UNIVERSO DAS LETRAS

No documento M ARIAA BADIAC ARDOSO (páginas 33-37)

NARRATIVAS E PERSPECTIVAS HISTÓRICAS

O “ RETORNO ” AO UNIVERSO DAS LETRAS

Outro momento dessa trajetória que as memórias de Sobre Anatol Rosenfeld revelam é a sua atuação no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo.58 De acordo com as palavras de Antonio Candido:

Penso que gostava das tarefas que lhe permitissem ser útil sem a quebra da liberdade de movimento, como no caso de certas formas de diálogo, real ou virtual, que permitem desdobrar as ideias a plantá-las no mundo. Assim foi que aceitou a seção de Letras Germânicas no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, desde o seu início

56 SCHWARZ, Roberto. Os primeiros tempos de Anatol Rosenfeld no Brasil. In: GUINSBURG, Jacó;

FILHO, Plínio Martins. (Orgs.). Sobre Anatol Rosenfeld. São Paulo: Com-Arte, 1995, p. 58.

57 Entrevista de Antonio Candido sobre Anatol Rosenfeld para o projeto Alemanha Brasil. Dinâmicas

Transculturais. Ensaios Transdisciplinares. Entrevistado por Nádia Barros. Direção de Breno Langhi. Data da entrevista 17 Out. 2008. Disponível em: <http://www.lai.fu- berlin.de/forschung/forschungsprojekte /aktuelle_projekte/brasilianischeintelektuelle/Entrevistas/ Anatol_Rosenfeld/candido_1/index.html>. Acesso em: 22 Out. 2010. [Transcrito]

58 No que se refere à criação desse suplemento, é válido mencionar a dissertação de mestrado de

Elisabeth de Souza Lorenzotti intitulada Do artístico ao jornalístico: vida e morte de um suplemento. Entre outros documentos, a autora lança mão do projeto de criação do Suplemento e de entrevistas com Antonio Candido (idealizador), Décio de Almeida Prado e Ítalo Bianchi. Esse empreendimento foi abordado em termos de: nascimento do projeto, autonomia do suplemento em relação ao jornal e a opção de que ele fosse uma publicação que privilegiasse a análise e a reflexão: “publicação não jornalística, mas artística e literária”. LORENZOTTI, Elisabeth de Souza. Do artístico ao

jornalístico: vida e morte de um suplemento. 2002. 129 f. Dissertação. (Mestrado em Jornalismo) – Escola de Comunicações e Artes (ECA), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004, f. 32.

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em 1956; e este foi o veículo que revelou ao país o grande intelectual até então só conhecido pelos amigos.59

O surgimento do Suplemento Literário de O Estado de São Paulo se insere num quadro da história do Brasil específico, o que traz à tona a exigência de articular processos históricos – os quais incluem mudanças econômicas, políticas e culturais – com o campo das ideias, ou seja, da produção e da divulgação do saber propriamente ditos.

Pode-se dizer que entre os anos de 1950 até o final da década de 1970 assistiu- se no Brasil à constituição de uma economia moderna. As mudanças oriundas do processo de industrialização ecoaram em diversos aspectos, desde as maravilhas eletrodomésticas, passando pelo aparecimento dos alimentos industrializados, até os novos hábitos de vestuário, constituindo assim os “novos padrões de consumo”.60

Paralelamente a esse processo, a urbanização deixava as suas marcas. Já nos anos de 1950 migraram para as cidades cerca de oito milhões de pessoas. Em especial, cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador passavam a denotar uma “sociedade em movimento”:

[...] a industrialização acelerada e a urbanização rápida vão criando novas oportunidades de vida, oportunidades de investimento e oportunidades de trabalho. Oportunidade de investimentos na indústria, no comércio, nos transportes, nas comunicações, na construção civil, no sistema financeiro, no sistema educacional, de saúde, etc., que exigem capital maior ou menor, tecnologia mais ou menos complexa.61

É certo que essas profundas mudanças repercutiram nos âmbitos político e cultural. Parte da produção intelectual do período priorizava a elaboração de projetos de desenvolvimento para o Brasil, a exemplo da ESG (1948) e do ISEB (1955). Houve também a expansão dos centros de pesquisa, com investimento nas áreas de

59 CANDIDO, Antonio. A inteligência crítica e o gosto pela erudição. In: GUINSBURG. Jacob; FILHO,

Plínio Martins. (Orgs.). Sobre Anatol Rosenfeld. São Paulo: Com-Arte, 1995, p. 54.

60 Cf. MELLO, João Manuel Cardoso de; NOVAIS, Fernando. Capitalismo tardio e sociabilidade

moderna. In: NOVAIS; SCHWARCZ. História da vida privada no Brasil: contrastes na intimidade contemporânea. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p. 559-658. v. 4.

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Antropologia, Sociologia e Educação, com destaque, em São Paulo, para a criação do Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. Constituía-se também uma indústria de bens culturais por meio do teatro, do cinema, ao lado da televisão e da publicidade. A imprensa sofreu uma grande modificação. Assim, se nos anos de 1930- 1940 sobrevivia de pequenos anúncios e da publicidade de lojas comerciais, nos anos de 1950 investiu no setor publicitário.62

É exatamente em meio a esse turbilhão de mudanças que o surgimento dos suplementos deve ser situado:

Um aspecto imediato chama a atenção do observador da imprensa dos anos 50: o aparecimento de novos suplementos literários em quase todos os grandes jornais diários. E os jornais que não tinham suplementos literários abriam espaço para temas ligados à cultura através de seções específicas.63

Segundo Alzira Alves de Abreu, os cadernos de arte e de literatura intitulados “Suplementos” eram editados aos sábados e domingos:

Silviano Santiago nos fala que “o jornal criou semanalmente para o escritor e a literatura um lugar muito especial – o suplemento literário”, e explica a lógica deste veículo: “complemento é parte de um todo, o todo está incompleto se falta o complemento. Suplemento é algo que se acrescenta a um todo. Portanto sem o suplemento o todo continua completo. Ele apenas ficou privado de algo a mais. A literatura (contos, poemas, ensaio, crítica) passou a ser algo a mais que fortalece semanalmente os jornais, através de matérias de peso, imaginosas, opinativas, críticas, tentando motivar o leitor apressado dos dias de semana a preencher o lazer do weekend de maneira inteligente”.64

Em outras palavras, para uma sociedade em rápido processo de industrialização e urbanização, a existência de “novos padrões de consumo” passa também pelo consumo da arte.

Todavia, o estudo sobre os suplementos traz outra perspectiva de problematização: a constituição do perfil dos colaboradores. Em primeiro lugar, podem

62 Cf. ABREU, Alzira Alves. Os suplementos literários: os intelectuais e a imprensa no Brasil. In:

______, et al. A imprensa em transição. Rio de Janeiro: FGV, 1996. p. 13-60.

63 Ibid., p. 18-19. 64 Ibid., p. 21.

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lhes permitir o acesso às universidades, a cargos públicos e às editoras, em segundo lugar, acolhem aqueles que não tiveram reconhecimento universitário e se tornam o único veículo para divulgação das ideias.65

Considerando a trajetória de Anatol Rosenfeld, essa rápida discussão sobre a constituição dos suplementos reforça ainda mais a singularidade de suas escolhas, pois, uma vez que se observa o seu perfil, fica evidente que a sua inserção no Suplemento não objetivava angariar um cargo institucional ou um reconhecimento intelectual.

Em verdade, Antonio Candido, na organização do Suplemento, dedicou uma parte para a seção de literatura estrangeira. E o nome de Rosenfeld para a seção de Letras Alemãs foi indicação de Egon Schaden, professor de Antropologia, em consequência do fato de se reunirem na casa desse professor para discutir Filosofia, Literatura e Cultura.66 Esse último apontamento traz à tona outra particularidade da trajetória de Rosenfeld:

65 No que se refere a esse aspecto, sob o título “Caderno resgatará suplemento que marcou época”,

encontra-se a seguinte afirmação: “Idealizado por Antonio Candido e dirigido por Décio de Almeida Prado, o Suplemento foi uma inovação à época, contando com colaboradores que se tornaram referência em diferentes áreas. Com o crítico Wilson Martins, os ensaístas Paulo Emílio Salles Gomes e Anatol Rosenfeld, o antropólogo Ruy Coelho”. (CADERNO RESGATARÁ SUPLEMENTO que marcou época. Estadão, São Paulo, 06 Mar. 2010. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,caderno-resgatara-suplemento-que-marcou-

epoca,520535,0.htm>. Acesso em: 24 Jan. 2014.) Juliana Meres Costa, em seu artigo “Sabático: um novo tempo para a leitura? (a retomada do Suplemento Literário no Estado de São Paulo)”, questiona o papel social destinado à literatura no mundo contemporâneo, problematiza os impasses vividos pelos jornais impressos na era digital e a concomitância de muitas mídias. Em plena crise do jornalismo, o Estadão fez uma reforma gráfica e editorial tendo como referência um passado remoto: “A reformulação gráfica do jornal pode ser entendida como uma tática de sobrevivência, posto que essa ocorreu em um contexto de crise do jornalismo impresso. A criação do Sabático, bem como sua imediata identificação com o Suplemento Literário, pode ser compreendida da mesma forma, já que se baseia na reapropriação de um modelo consagrado cujo status enquanto item de erudição de cultura é inegável”. (COSTA, Juliana Meres. Sabático: um novo tempo para a leitura? (A retomada do

Suplemento Literário no Estado de São Paulo). Anais do SETA, v. 5, 2001. Disponível em:

<http://www.iel.unicamp.br/revista/index.php/seta/article/view/1269>. Acesso em: 24 Jan. 2014.) Ainda que, conforme evidencia a autora, essa seja uma estratégia que procura estabelecer prestígio para o jornal, é inegável que a referência usada nesse processo, isto é, o próprio Suplemento

Literário, idealizado por Antonio Candido, tem seu lugar como padrão de cultura.

66 Constituíram-se em torno da figura de Anatol Rosenfeld grupos de estudos que se propuseram a

discutir Filosofia, Estética e outros temas. Dentre tais grupos, destaca-se o do professor Jacó Guinsburg, que assim se expressa: “[...] claro que depois de alguns encontros eu verifiquei, eu e minha esposa verificamos a qualidade da inteligência dele, conhecimento, personalidade, etc. Nós continuamos a ter contato constante. Ele jantava toda segunda-feira na minha casa. Depois disso nasceu um curso de Filosofia e Epistemologia que ele deu, para um grupo nosso que era variado, muita gente entrou, saiu, mas durante mais ou menos quinze anos”. Entrevista de Jacó Guinsburg sobre Anatol Rosenfeld. Disponível em: <http://www.lai.fu-

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Vivia muito pobremente morando em casas de famílias alemãs que alugavam quarto para ele. E a partir do Suplemento o Anatol se lançou, depois ele fez nome. Ele foi convidado para dar aulas, ele negava qualquer vínculo institucional.67

Assim, a “recusa a cargos estáveis”, “a distância da carreira universitária”, a “não institucionalização”, “o distanciamento da burocracia” são sempre destacados nos depoimentos que compõem o livro, tornando-se essa escolha algo que particulariza a sua trajetória. Não é aleatoriamente que em depoimentos sobre Rosenfeld para uma revista alemã em 2008 esse tema é bastante rememorado. Há consenso entre os depoentes ao dizer que o seu sustento era retirado das aulas particulares, dos cursos ministrados e dos artigos que publicava. E isso, é fundamental dizer, era uma opção, porque a sua erudição e conhecimento lhe permitiriam desenvolver uma carreira como professor universitário. Mas a sua escolha foi outra. Assim, conseguiu não apenas sobreviver de seu trabalho intelectual, mas construir uma contundente reflexão sobre literatura e teatro no âmbito brasileiro, contudo sempre distante das instituições.68

No documento M ARIAA BADIAC ARDOSO (páginas 33-37)