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A constituição profissional como processo interativo

2. FORMAÇÃO DOCENTE NA PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL

2.4 A constituição profissional como processo interativo

Considerando que as nossas mentes são constituídas a partir da interação social e da mediação pela linguagem, tomamos as falas dos professores como objeto de estudo, entendendo que os docentes têm experiências vividas no meio social e, aos poucos, vão construindo os seus conhecimentos a partir da apropriação do patrimônio da história da humanidade. A perspectiva histórico-cultural permite um modo diferente de olhar o professor, assim como a escola, os alunos e até mesmo a sociedade, pois, ela nos faz refletir sobre o indivíduo não como passivo ou ativo e sim “interativo”. Como nos diz Góes (1991, p. 21), a gênese do conhecimento do indivíduo “não está assentada em recursos só individuais, independentes da medida social ou dos significados partilhados”. Nesse sentido, a pesquisa leva em conta que os sujeitos, no caso os professores, são indivíduos interativos, ou seja, constituídos na e pela interação com os outros, bem como semióticos, ou seja, constituídos na e pela linguagem.

Ao assumir que o indivíduo se constitui nas relações com o outro, a perspectiva vigotskiana aborda a relação dos planos social/individual. Essa relação é tratada em termos de vinculação, visto que a ação do indivíduo só existe a partir da ação entre indivíduos. Considerando o plano de interação, Vygotsky aponta que o psicológico do indivíduo não pode ser compreendido a partir do estudo do aspecto individual ou social isoladamente (GÓES, 1991).

Ao refletir esse modo de compreender o desenvolvimento, pode-se dizer que todo o desenvolvimento tem como fundamento a interação. De acordo com Góes (1991, p.18), “[...] o sujeito faz sua uma ação que tem inicialmente um significado partilhado”. Explicitar processos através dos quais o desenvolvimento é socialmente constituído, de acordo com a autora, é uma das grandes contribuições da perspectiva histórico-cultural.

Nesse sentido, para compreender os indivíduos, primeiramente é preciso entender como as suas experiências e seus atos são moldados por seus “estados intencionais”, sendo estes, vinculados a sistemas simbólicos da cultura. Portanto, o que carregamos em nossas mentes só é compreensível para nós mesmos e para os outros a partir desses sistemas culturais, lembrando, também, que é a partir da cultura que constituímos as nossas mentes (BRUNER, 1997, p. 39).

Assim, podemos dizer que a utilização das falas docentes possibilita conhecer como os significados são construídos ao longo das experiências humanas, as quais são organizadas por meio da fala, principalmente quando esta se aproxima de narrativas14.

Na perspectiva histórico-cultural, a narrativa é entendida como sendo um produto de tudo que é aprendido na vida social. As narrativas são constituídas pelas representações que os sujeitos fazem da realidade e, portanto, estão envoltas por significados e interpretações. Assim, a narrativa é considerada como prática social que se estabelece em processos históricos de significação. Portanto, as falas docentes, algumas na forma de narrativa, que foram surgindo ao longo das entrevistas, são resultantes das experiências que vão se constituindo a partir da significação, produção de sentidos e apropriação (BRAGA, 2002).

O conceito de experiência vem sendo bastante discutido na formação docente e o autor que se destaca nessas reflexões é Jorge Larrosa. Para esse autor, a palavra experiência traz nas suas raízes relações com experimentar, perigos, travessia, viajar... De acordo com Larrosa (2002, p. 21) “[...] a experiência é o que nos passa, nos acontece, o que nos toca”. O autor destaca que, frente à grande quantidade de informações, de tarefas e tempo escasso, a experiência se torna cada vez mais invulgar, pois para que algo nos seja significativo precisamos “parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião [...], suspender o automatismo da ação” (LARROSA, 2002, p.24).

Vivemos tempos de turbulência. Mudaram as necessidades e os interesses e o acesso à diversidade de informações, por meio de canais diversos, coloca-nos perante cenários e contextos diferenciados, exigindo sempre ações rápidas que, na maioria das vezes, impedem-nos de cultivar maior atenção e delicadeza. Não é possível dar-se tempo e espaço. Assim, fica cada vez mais rara a experiência, a qual exige “falar de algo que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência” (LARROSA, 2002, p.24).

Nessa perspectiva, ter uma experiência é estar pronto para uma travessia na qual o inusitado, o novo e o inesperado representam algo que nos forma e transforma. Daí a importância dos encontros de professores, em que as trocas e o apoio mútuo são feitos de

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Para Bruner (1997), é através da narrativa que conseguimos organizar a nossa experiência. Já Sarbin (apud Braga, 2002) fala em princípio narrativo, por meio do qual os indivíduos pensam, percebem, imaginam de acordo com estruturas narrativas, ou seja, a narrativa é que organiza as ações humanas.

forma que venham a contribuir e formar o professor. Formar não é no sentido de aprender algo, mas, como diz Larrosa, (2003):

aí se trata mais de se constituir de uma determinada maneira. De uma experiência em que alguém, a princípio, era de uma determinada maneira, ou não era nada, pura indeterminação, e, ao final, converteu-se em outra coisa. [...] o aprender forma ou transforma o sujeito. (LARROSA, 2003, p.52)

É nesse sentido que a formação de professores deve ser compreendida. Não no sentido de só vivenciar, mas no sentido de transformação do sujeito por meio de uma viagem, uma aventura... A experiência formativa é aquela que tem força suficiente para que alguém se volte para si mesmo, uma viagem interior. É nesse sentido que buscar os significados que os professores atribuem a sua prática, a partir de narrativas, mostra-se relevante. Ao buscar sentido para as suas ações, o docente passa a refletir sobre sua maneira de ser e de interpretar o mundo. Assim, a viagem exterior se entrelaça com a interior e comum a com a sensibilidade, permitindo uma conversão do sujeito (LARROSA, 2003).

Larrosa coloca em evidência o sujeito da experiência e argumenta sobre a qualidade que envolve a experiência afirmando que “[...] o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal... que não pode separar-se do indivíduo concreto que o encarna” (LARROSA, 2002, p.27).

As elaborações de Larrosa, numa versão crítica e contestadora ao racionalismo, positivismo e cientificismo, tomaram força ao longo do século XX e apontam para a importância daquilo que é particular, singular, relacionado ao cotidiano; a sensibilidade do outro e a relevância da palavra do outro, bem como, a valorização das narrativas e histórias de vida (SMOLKA, 2006). No entanto, Smolka (2006) nos faz refletir sobre isso, colocando-nos que a experiência num primeiro nível é singular e subjetiva, mas num segundo nível ela é universal e objetiva. Para a autora, “seu valor transcende o sujeito individual” (SMOLKA, 20006, p.103), pois o sujeito sabe das coisas a partir da influência do outro.

Todas essas questões abordadas também nos remetem à significação, já que a experiência resulta daquilo que é significado. De acordo com Smolka (2006, p. 107), a “[...] experiência é resultante daquilo que impacta e é compreendido, significado, pela pessoa”. Nessa relação experiência/significação, pode-se dizer que os sujeitos da pesquisa, no caso,

os professores, possuem uma vida impregnada de sentido. Sentido este que se constrói na relação com o outro.

Para compreender a polissemia da palavra sentido, Smolka (2006), tomando como base as contribuições de Vygotsky e Bakhtin, nos traz que os sentidos emergem como resultado das várias relações:

sentido relacionado à sensibilidade orgânica, às sensações; sentido relacionado às emoções e aos sentimentos; sentido relacionado à direção e orientação das (inter)ações; sentido relacionado à razão, à significação. (SMOLKA, 2006, p. 108)

É a partir da possibilidade de significação e produção de sentidos que a experiência humana vai se constituindo. Assim, ao privilegiarmos as falas dos professores como objeto de estudo, as quais estruturam a experiência, torna-se instigante compreender aquilo que é significado pelos professores, no que tange à prática pedagógica, levando em conta que o que é significativo para eles condensa as marcas da cultura, da história e do outro. Portanto, deve-se levar em conta que as características de cada professor no que diz respeito aos valores, modos de agir, pensar, refletir, sentir e falar estão relacionadas a um processo histórico de interação ampla.