• Nenhum resultado encontrado

A construção biográfica de Eurico Nelson

No documento Download/Open (páginas 45-50)

Capítulo II: Missionário ou colportor?

2.1 A construção biográfica de Eurico Nelson

Os estudos históricos atuais têm procurado “desmistificar” os heróis biografados pelas instituições com o objetivo de colocar em evidência os meios como foram projetados (BURKE, 1994). Por esta razão pretende-se ao longo deste subcapítulo rever a produção biográfica a respeito de Eurico Nelson, levando-se em consideração os usos da biografia em Pierre Bourdieu(1996) e Giovanni Levi (1996), a problemática da construção biográfica analisada por Burke (1994) e a tarefa de construção de certa cultura organizacional em Campos(1999).

Desde já se entende que a memória pode ser elogiada ou difamada, durante ou após a vida do personagem, mas isso também depende dos documentos deixados e da vontade de outras pessoas e/ou de segmentos sociais que explicam esse ator principal como um representante do que desejam. Por esta razão, pretende-se analisar dois tipos de biografias distintas que se localizou durante esta pesquisa. Trata-se de dois textos produzidos em circunstâncias e com finalidades bem diferentes. O livro O Apóstolo da Amazônia, escrito pelo pastor batista José dos Reis Pereira, em 1954, faz parte de uma tradição historiográfica protestante que muito se aproxima do modelo discutido por Bourdieu (1996), ao afirmar que o gênero biográfico tem como característica básica a idéia de que a historia de vida de um individuo ocorreria em sentido linear fechada e organizada em razão do seu destino. Já o segundo escrito biográfico produzido pelo missionário batista John Landers em 1982 tem pretensão de ser um trabalho de cunho cientifico, embora demonstre na construção biográfica certa aproximação com a explicação apresentado por Pierre Bourdieu.

Em A ilusão biográfica, Bourdieu (1996) assevera rigorosamente que “a história de vida é uma dessas noções do senso comum que entraram como contrabando no universo cientifico”(p.183). Sua critica aguda considera que o senso comum toma a história de vida como um “caminho, uma estrada, uma carreira, com suas encruzilhadas, seus ardis, até mesmo suas emboscadas” (ibid). Uma espécie de romance que ordena todas as ações humanas de maneira cronológica, como se fosse um enredo a ser desfechado, com começo e fim. Sobre o relato de vida propriamente dito ele compreende que

O relato, seja ele biográfico ou autobiográfico, como o do investigado que se entrega a um investigador, propõe acontecimentos que, sem terem se desenrolado sempre em

sua estrita sucessão cronológica (quem já coligiu histórias de vida sabe que os investigados perdem constantemente o fio da estrita sucessão do calendário), tendem ou pretendem organizar-se em seqüências ordenadas segundo relações inteligíveis. (BOURDIEU, 1996, p.184)

Este autor conclui que produzir uma história de vida ou tratar a vida como uma história com seqüência de acontecimentos com significado e direção, é conformar-se com uma “ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar” (p.185).

Para Levi (1996) a primeira questão levantada ao tratar da construção biográfica de um indivíduo é sem dúvida a constatação de que uma biografia é um documento “sempre extremamente fragmentado” (p.167) e que esta característica particular das biografias já esteve na pauta das discussões de historiadores que apontaram o problema para mais de uma direção: “as biografias são ambíguas, não são suficientes para comprovar hipóteses cientificas, embora sejam reconhecidamente fecundas” (ibid).

Quanto ao aspecto história e narrativa, Levi assegura que as biografias constituem-se num “canal privilegiado através do qual os questionamentos e as técnicas peculiares da literatura se transmitem à historiografia” (p.168) e que a literatura comporta uma infinidade de modelos e esquemas biográficos que obrigam o historiador a se ver diante de outros problemas que precisariam de uma explicação mais consistente, tal como perguntar “o que fazer com as dúvidas e incertezas, o caráter fragmentário e dinâmico da identidade e dos momentos contraditórios de sua constituição? (p.169)

Levi afirma que essas não são as únicas questões levantadas para o uso das biografias e nem tampouco as principais, pois a interpretação que o historiador tem dos fatos narrativos podem criar distorções “gritantes” como a de imaginar que os atores históricos obedecem a um modelo de racionalidade anacrônico e limitado.

Quanto ao aspecto fragmentário das biografias, Levi considera que esta característica se traduz pela “constante variação dos tempos, pelo recurso e incessantes retornos e pelo caráter contraditório, paradoxal, dos pensamentos e da linguagem dos protagonistas” (p.170), embora seja um meio eficaz de “construir uma narrativa que dê conta dos elementos contraditórios que constituem representações que dele se possa ter conforme os pontos de vista e as épocas” (p.171).

Levi também considera indispensável reconstruir o contexto, a “superfície social” em que age o indivíduo, consideração que se levou em conta neste trabalho e foi o elemento central que se destacou no primeiro capítulo desta dissertação. Os limites e lacunas impostos pelo pastor batista José dos Reis Pereira em o Apóstolo da Amazônia, ao selecionar apenas os sucessos de vida do biografado, sem articulá-los com maiores pormenores do contexto imediato, bem como vinculá-los com o curso de vida das outras pessoas que construíram com Eurico Nelson laços e experiências sociais, acabou fragmentando o todo narrativo, deixando questões “abertas” sobre o ambiente que germinou a fé batista em Belém do Pará.

Um importante trabalho desenvolvido no campo historiográfico sobre a construção de imagens e discursos foi o do inglês Peter Burke (1994). Ele analisou a construção da imagem pública do rei francês Luiz XIV, propondo algumas questões a respeito do modo como se processou a construção de imagens e representações em torno desse rei. Neste trabalho, o historiador concluiu que só foi possível “fabricar” a imagem do rei, porque este contou com o “auxilio que recebeu neste trabalho de construção” (p.22). Os celebradores de Luiz XIV eram poetas, juristas e filósofos, embora tenha ressaltado que de fato eram os historiadores o objeto de sua atenção especial. Na França, foram contratados oitenta historiadores para registrar a história de vida do rei Luiz XIV “numa ênfase essencialmente celebrativa” (p.35), trabalho este que ganhou da instituição real todo patrocínio governamental necessário.

Burke (1994) também destacou que nesse tipo de trabalho não se revelavam as fraquezas reais, apenas “força, moderação, bondade” qualificativos estes que representavam “uma discrepância entre a retórica oficial do triunfo e a realidade dos revezes franceses” (p.94), embora o culto ao Rei Sol tenha sido central nos panfletos distribuídos por autores de panegíricos, uma espécie de discurso em louvor de determinados indivíduos em várias ocasiões, que o autor sentenciou como “pura louvação” (p.48) dos funcionários do “Departamento da Glória” do rei.

Quanto à análise da construção de imagens e discursos, no campo das Ciências da religião, recorre-se aos estudos na área de Sociologia da Religião, em que Campos (1999) analisa “a função do louvor ao passado e aos lideres na criação e manutenção de uma cultura organizacional”. Este autor assegura que “o processo de construção dessa realidade (louvor ao passado) passa pelos freqüentes embates entre os agentes, “isso porque neles clérigos e leigos participam não somente dos resultados de uma realidade construída anteriormente, que os

antecede historicamente, como também são os co-autores de uma realidade continuamente reconstruída” (ibid).

Para Campos, o argumento principal é que as organizações “se auto-constroem” e “se auto-reproduzem”, o que explica o surgimento de propostas intervencionistas por parte de “condutores” ou “consultores” da cultura organizacional. O seu objeto de estudo é uma organização chamada “igreja”, local onde identificou “fenômenos” semelhantes aos constatados em outros tipos de organizações sociais. Para o desempenho desses papéis “seus membros são treinados, motivados, atraídos, designados, cooptados ou „vocacionados‟ por meio de mecanismos sociais que canalizam a contribuição individual na direção da concretização das metas da organização” (p.86) A produção simbólica, segundo este autor, é sedimentada na forma de discursos e comportamentos, ligados aos mecanismos produtores de discursos (mitos, ritos e liturgias).

Ao falar especificamente dos “celebradores”, Campos compreende que, os mesmos se “alojam” nas organizações religiosas nas áreas ligadas principalmente às relações públicas. O trabalho dos “celebradores” faz parte da construção e reprodução da cultura da organização principalmente quando estas são originadas de “um líder carismático ou do trabalho de um empreendedor personalista” (p.87). Os “celebradores” desempenham um importante papel na criação e consolidação do espaço social em que atuam, particularmente nos momentos de crescimento ou de crise organizacional. (ibid)

Esta atividade, para Campos, é extremamente importante no campo religioso, particularmente na fase de institucionalização e de rotinização do carisma (ibid), pois cria um senso de identidade e de maior coesão entre os agentes ao desenvolver um trabalho pedagógico, embora seu afazer nem sempre “seja valorizado”. Finaliza afirmando que no processo de auto-preservação, os mecanismos de poder se atrelam a uma importância encarregada de produzir, manter, e fazer circular os bens necessários à sobrevivência organizacional. Daí a importância dos “celebradores”, pois eles procuram estabelecer um elo entre o que “foi” e o que “será” e para atingir tal meta, trabalham com a memória coletiva, usando para isso aqueles valores intangíveis da organização, inclusive os mitos organizacionais, e desta forma o autor assevera que:

A construção de um passado comum serve, nesse contexto, como cimento capaz de soldar as partes fragmentadas pelas contradições ou teia em que as disparidades e interesses divergentes de inúmeros membros de uma organização são interligadas. Assim, as estratégias pessoais, às vezes, extremamente individualistas, se ligam às metas coletivas, à filosofia e ao clima considerados ideais e legítimos na

organização. Sem a ação dos “celebradores”, o futuro fica comprometido, as metas particulares podem se sobrepor às diretrizes do campo e os fins organizacionais desejados são considerados pelos agentes metas inatingíveis ou, quando não, indesejáveis.(CAMPOS, 1999, p.88).

A partir desta referência teórica, passou-se a analisar detidamente as biografias de Pereira e Landers, até porque o estudo de Campos tem por base um estudo de caso do presbiterianismo brasileiro e sua ideia principal muito se aproxima do que Maduro teorizou ao afirmar:

a especialização do trabalho religioso consiste na constituição progressiva de um corpo de funcionários especificamente encarregados de satisfazer um tipo particular de interesse (o interesse religioso)[...], mediante a elaboração [...]de um certo tipo de práticas e discursos(MADURO,1983, p.120)

Assim sendo, na nota explicativa do preâmbulo da obra O Apóstolo da Amazônia, identifica-se uma afirmação no mínimo contraditória, quando o autor afirma que seu trabalho “não é uma obra literária” e que não buscou sugestões na técnica das modernas biografias romanceadas, porém mais adiante e ainda na mesma nota afirma que sua motivação tinha sido o sentimento de quanto seria “inspiradora a vida admirável do „Apóstolo da Amazônia‟ contada aos nossos moços e o quanto ela poderia concorrer para o despertamento de vocações missionárias”(PEREIRA, 1954, p.10).

Os qualificativos “inspiradora” e “admirável” marcam o estilo literário romântico ao acentuar um modelo desejado para o grupo que o autor integra. Para compor esta imagem, o autor deu visibilidade às representações sociais do “homem batista” ideal, no qual estilo de vida, fé, persistência são elementos definidores de um modelo a ser seguido pelos demais. Além disso, percebe-se no decorrer da construção biográfica de Pereira que o biógrafo procurou projetar algumas qualidades fundamentais ao homem religioso, àquelas mesmas citadas por Levi (1996) ao afirmar que a relação entre autor e personagem pode chegar a um “meio-termo” biográfico que “renuncia certas verdades individuais na busca de um tom mais didático [...] acrescentando às vezes paixões e emoções ao conteúdo42 tradicional das biografias exemplares, a saber, dos feitos e atitudes do protagonista” (p.172). Além do mais, na reconstrução da história de vida de um biografado, o papel do biógrafo merece ser mais bem analisado, pois é quem seleciona e pode esconder ou evidenciar determinadas atitudes do

biografado, colocando desta forma sua subjetividade no produto escrito que quase sempre deforma.

No documento Download/Open (páginas 45-50)

Documentos relacionados