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Um guardião do passado?

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Capítulo II: Missionário ou colportor?

2.2 Um guardião do passado?

Quem informa sobre José dos Reis Pereira é Marcelo Santos (2003) ao analisar o marco inicial dos batistas, afirmando que o Pr. Reis Pereira nasceu no ano de 1916, em São Paulo e faleceu em 1991. Estudou Teologia no Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, local onde também foi professor de História do Cristianismo, por 37 anos. Foi ordenado pastor aos 21 anos de idade e assumiu a presidência da Junta de Missões Estrangeiras, durante 20 anos, e a Ordem dos Ministros Batistas no Brasil. Escreveu vários livros na área de história e Teologia e assumiu a direção do jornal Batista por 24 anos. Barbosa e Amaral (2007) informam que nas décadas iniciais do século XX, um problema organizacional rondou os batistas - A Questão Radical – que foi responsável por um decrescimento e divisão entre os batistas do Norte do Brasil, em Pernambuco e que nas décadas seguintes os batistas se empenharam para colocar a denominação numa visibilidade mais favorável.

As homenagens a José dos Reis Pereira por ocasião de sua morte, revelam através de um artigo de Nilson Dimárzio que se tratava de “um homem da denominação na verdadeira

acepção do termo[..]ninguém como ele teve uma visão global de causa evangelística e, muito especialmente, Batista”43

. Para Santos (2003), o pastor batista José dos Reis Pereira está entre

“os pensadores mais expressivos da denominação batista, tendo como grande preocupação manter aceso o espírito missionário e sendo a sua contribuição [...] a valorização da atividade missionária entre o povo batista” (p.55).

Embora não tenha conhecido pessoalmente o sueco Eurico Nelson, pois somente ouve falar dele a primeira vez através do missionário americano L. Bratcher, em O Apóstolo

da Amazônia, José dos Reis Pereira se empenha em dar uma visibilidade heróica aos feitos de

Eurico Nelson, pois enquadra o sueco batista em um modelo a ser seguido por todos os batistas brasileiros na década de 60 do século XX. As representações em torno de Eurico Nelson exaltavam-lhe as principais virtudes, representando o exemplo de persistência, trabalho, abnegação, integridade e despojado de qualquer tipo de ambição, pois deixou o

“norte nevoso” para evangelizar as “almas perdidas” na “fornalha equatorial”, um exemplo de fé, dedicação à obra, o modelo ideal de biografia missionária batista.

Recuperando a trajetória missionária de Eurico Nelson, principalmente na fundação das igrejas batistas do “vale amazônico”, José dos Reis Pereira procurou reforçar de fato a figura de herói em Eurico Nelson, construindo a ideia de que somente um grupo que se identificasse com os ideais de Eurico Nelson seria capaz de persistir no trabalho missionário batista ou seria capaz de personificá-lo. Esta perspectiva está claramente demonstrada na ideia central do livro quando afirma que pretendia registrar “o quanto seria inspiradora a vida do missionário batista aos moços batistas” (PEREIRA, 1954, p.10) das décadas de 1945 a 1954, o que demonstra de pronto que para ser um modelo inspirador qualquer outro modelo que não se enquadrasse na visão idealizada como melhor, deveria ser de fato retirada ou minimizada ou mesmo minorada, de tal forma que nada fosse mencionado e por esta razão infere-se que o silêncio de José dos Reis Pereira sobre os problemas que Eurico Nelson enfrentou em relação ao contexto fugia completamente ao discurso que se pretendia imprimir a partir da imagem dele e por isso não há uma sequer referência a respeito das populações locais que recepcionaram a fé batista em Belém do Pará, nem tampouco as querelas que Nelson travou com o metodista Justus Nelson em Belém, publicadas no jornal O Apologista Christão

Brazileiro ou as cisões ocorridas na primeira igreja batista nos anos de 1901 e 190544 que serão analisadas no último capítulo deste trabalho.

Porém, logo se percebe na obra, as tessituras de uma história de heroísmo que pretendia criar aspectos homogêneos ligados por diversas situações, presente e passado, numa leitura pouco rígida, extremamente idealista, romântica e carregada de juízos de valores favoráveis apenas ao biografado, deixando, porém de lado questões não respondidas em torno do contexto e dos outros agentes sociais que compartilharam experiências de vida e religião com o Eurico Nelson.

No conteúdo da obra, Reis Pereira menciona algumas vezes qualificativos em torno das ações de Nelson, como por exemplo, “faina” (PEREIRA, 1954, p.63) entre outros que fornecem ao herói biografado os elementos de uma construção carismática que enriquecem e

44 Nesta data organiza-se a igreja Cristã Evangélica em Belém com 16 membros que foram batistas, membros da primeira igreja, sob a liderança de Almeida Sobrinho, pupilo de Nelson. Cf. Almeida ([197?, p.26)

revestem de certa cota de prestígio pessoal o próprio biógrafo. Nelson só era um herói, porque era batista, tal como se percebe nessa citação que finaliza o capítulo III:

O fato de vir Nelson para o Brasil e aqui efetuar tão extraordinário trabalho, dispondo de tão pequeno trabalho, levará, talvez, alguém a supor que não precisa estudar muito para se dedicar à pregação. Que tal não aconteça. Deus às vezes chama homens como Nelson. Mas esses homens são exceções. A inteligência de Nelson era singularmente viva e êle aprendia com admirável facilidade as coisas, sua inteligência de eleição 45 supria falhas provenientes da ausência de estudos em escola. (PEREIRA, 1954, p.44)

Já a biografia de John Landers(1982), pretende ser um trabalho de cunho cientifico, mas em especial no encerramento da sua tese de doutorado, o autor arrola uma série de explicações sobre o significado de Eurico Nelson. A pesquisa deteve-se em analisar essa parte da obra, retirando as seguintes conclusões a respeito do texto do missionário batista americano:

1.O autor afirma no texto que cada comunidade cristã interpreta a fé e enfatiza certos valores e ideais e que em algumas comunidades, os indivíduos são selecionados porque “encarnam” esses ideais na vida moderna, e, portanto, servem como modelos de vida cristã. (p.185)

2.Embora os batistas não canonizem santos, sentem a necessidade de possuir modeles espirituais para guiar suas vidas, pois o grupo enfatiza o compartilhar da fé com outras pessoas. Eurico Nelson representou um modelo cristão ativista que enfatizou a fundação de igrejas e o testemunho direto e que as características de “evangelizador” e “missionário”(ibid) o distinguiram como modelo cristão.

3.Afirma que na ocasião da morte de Eurico Nelson, “eventos combinados” transformaram Eurico Nelson em um herói da fé, pois a primeira igreja batista de Manaus forneceu-lhe um enterro de "dignatário"(ibid).

4.Mesmo aposentado ele voltou para o Brasil e continuou seus trabalhos, razão pelo qual o autor afirma que Eurico Nelson “mexeu com o imaginário dos batistas brasileiros”(p.187), pois foi percebido como um homem cheio de um sentido de missão até o fim.

A construção de Eurico Nelson como herói batista que foi o fundador das primeiras igrejas batistas na Amazônia, um apóstolo, “um herói autêntico, um verdadeiro missionário que pode ser colocado na gloriosa galeria dos Paton, dos Carey, dos Judson” (PEREIRA, 1954, p.59), tanto no livro O Apóstolo da Amazônia de José dos Reis Pereira, como na tese de doutorado de John Landers é uma interpretação que muito se aproxima ao modelo de “guardião do passado” analisado por Campos(1999), pois este autor enfatiza que a tarefa de construir a realidade social e a cultura organizacional das instituições religiosas cabe aos seus “celebradores” que nessa tarefa

cooperam também para a manutenção dos esquemas do poder, na medida em que eliminam tendências para os desvios provocados por profecias concorrentes. Eles divulgam os valores organizacionais considerados básicos e numa estratégia de conservação defendem a ortodoxia do campo. Os modelos apresentados em suas produções literárias são inspirados nos valores básicos da cultura organizacional, quase sempre inspecionados pelo poder eclesiástico, oferecendo a todos os leitores rotas e visões de mundo a interiorizar sem questionamento, como se fossem coisas naturais, atingindo-se dessa forma o efeito de eternizar o que é histórico e priorizar o temporário. (CAMPOS, 1999, p.88)

Diante desse embasamento teórico a respeito da construção biográfica compreende- se que um protagonista que para seus contemporâneos não mereceu consideração digna de muitas notas, dependendo do discurso e de qual instituição está envolvido, pode se tornar posteriormente uma referência “superdimensionada” (ALENCAR, 2006) na compreensão de certos eventos.

Por outro lado, para compreensão da construção biográfica de O Apóstolo da

Amazônia basta se comparar dois momentos distintos de Eurico Nelson: o primeiro que marca

a sua chegada em Belém do Pará, quando era um personagem “marginal” da história dos batistas, sueco, desconhecido, sem habilitação ao ministério e esta posição dentro do contexto institucional não deixou de ser percebida por Eurico Nelson, razão pela qual se compreende a nota magoada em um artigo que escreveu para o jornal Batista do ano de 1923, quando afirmou que “não era fácil escrever sobre aquele assunto (referindo-se ao trabalho inicial em

Belém do Pará) e nem tampouco agradável”46. Fez uma dura critica ao artigo do Pastor batista Salomão Ginsburg, durante os festejos do centenário da denominação batista no Brasil, o criticando abertamente por não ter mencionado a “missão do norte” em seus artigos e “não

disse uma palavra sequer sobre Belém do Pará, quando se assim não fôra, estava na obrigação de falar, pois cooperou commigo na organização da 1ª igreja de Belém, tendo elle mesmo feito os primeiros baptismos no rio Amazonas”47

É oportuno repetir que, no seu desejo insopitável de pregar o evangelho no Brasil, Eurico Nelson não contava com nenhum auxilio humano. Não tinha ainda sido consagrado ao ministério e por isso também não esperava a remuneração de nenhuma igreja. Mas decidira partir e nada neste mundo seria capaz de demovê-lo. Um dos traços distintivos do seu caráter, desde a infância, segundo o testemunho de seu irmão Carlos, era a firmeza de seus propósitos e a pertinência com que os levava a termo. Era um “homem de uma só peça”, desses que só dizem “sim, sim – não, não”. (PEREIRA, 1954, p. 43).

Percebe-se que para seus contemporâneos Eurico Nelson era apenas um “homem de Deus”, esforçado, um colportor que fugiu do padrão do grupo. Seu heroísmo foi ter deixado “o melhor dos mundos” (ALENCAR, 2009, p.72) e vir para o “Inferno Verde” (PEREIRA, 1954, p.20), fundando as primeiras igrejas batistas na Amazônia, porém enquanto não está institucionalizado como de praxe, ninguém o reverencia ou reconhece o trabalho desenvolvido nos seis primeiros anos de permanência no Pará antes de ser vinculado a denominação Batista. A história que se reconhece é a história a partir de 1897, quando funda a primeira igreja em Belém e quando é vinculado a Junta Americana de Richimond.

Dos confins da terra vêm os aventureiros e cientistas para conhecer as plagas amazonenses. Mas o homem que mais viajou nos seus rios, lagos, lagoas e igarapés, e sentiu mais estranhamente as vibrações de sua exuberância, foi o Apóstolo da Amazônia, Eurico Nelson. Nos quarenta e cinco anos de vida ativa, viajou talvez 200.000 Kms na grande bacia do Orellana pois em alguns anos atingiu a vigésima parte desta distância. Nasceu na Suécia. O seu pai abandonara a igreja oficial do Estado para seguir as convicções de consciência e unir-se ao pequeno grupo de batistas, então desprezados e perseguidos. Para gozar a liberdade de consciência e praticar a fé batista, a família emigrou para o Estado de Kansas, ao oeste dos Estados Unidos, quando Eurico tinha a idade de 07 anos. O rapaz converteu-se aos 14 anos e uniu-se à igreja fundada pelo pai e outros pioneiros da fé naquela nova terra. Cinco anos depois, entregou-se ao serviço de vaqueiro nas planícies de Oklahoma, Colorado e Texas. Se nesse período de seis anos, afastou-se das influências da igreja e do lar cristão, desenvolveu no desempenho de suas pesadas responsabilidades ao relento, um corpo forte e resistente e uma voz poderosa para ser usada mais tarde no serviço de Cristo, na evangelização do Amazonas.(CRABTREE, 1962, p.197).

Depois de morto, o cinqüentenário dos batistas foi o momento ideal para projetar a imagem de Eurico Nelson no imaginário batista. Uma representação heróica em torno do batista Eurico Nelson como foi projetada no livro O Apóstolo da Amazônia está claramente inserida naquela tarefa de construção de imagem já amplamente discutida pelo campo historiográfico e a respeito de “heróis” missionários no meio protestante, destaca-se o conceito de “construção ideológica” discutido por Alencar (2006) ao afirmar que a historiografia missionária é uma espécie de épico quando contada por algum representante da instituição que está envolvido, principalmente quando se prioriza a glória, o sofrimento (martírio) com privações, doenças e até “morte sacrificial”. O pastor José dos Reis Pereira tornou-se um “guardião do passado” ao eternizar a memória de Eurico Nelson como um modelo de missionário batista ideal, embora no Livro de Ouro da Convenção Batista

Brasileiro, publicado recentemente pelos batistas, um registro de cinco linhas em um único

parágrafo, marcam a sua extensa passagem de 47 anos de trabalho missionário no Brasil:

No extremo norte do país, decorrente do trabalho de Eurico Nelson, foi fundada a Primeira Igreja de Belém do Pará, em 1897; e, em 1900, a primeira Igreja Batista de Manaus. O evangelho e os batistas cresciam e se espalhavam no território brasileiro. O total de membresia brasileira já alcançava 1.500. (BARBOSA; AMARAL, 2007, p.34)

Eurico Nelson continuava seguindo, mesmo morto, o estigma que seus contemporâneos batistas lhe reservaram em vida.

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