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A construção da imagem do corpo protestante no Brasil

CAPÍTULO 2 NOVA IMAGEM DO CORPO CRISTÃO PROTESTANTE

2.2 A construção da imagem do corpo protestante no Brasil

A moral e a disciplina tornam-se a fisionomia ―real‖ e concreta da salvação, segundo descreve Rubem Alves9 (1982) em seu livro Protestantismo e Repressão. A emoção e o sentimento, frutos de uma experiência subjetiva da fé, transformam-se em conhecimento, pois já não eram suficientes para diferenciar o crente do católico. Deveria surgir um outro corpo cristão no Brasil. A Igreja coloca-se como a detentora do saber absoluto e obtém o monopólio do conhecimento, em oposição ao convertido, que ainda não sabe no que crê e que, portanto, deve abdicar do seu conhecimento individual a favor do conhecimento coletivo da Igreja. Convertido e Igreja se unem numa relação de subordinação: o aprendiz se submete à mestra. (ALVES, 1982, p. 169)

A incessante oposição aos padrões da cultura brasileira levou as denominações missionárias e conservadoras do protestantismo a estabelecerem rígidos acordos disciplinares para delimitar a conduta do fiel convertido. Alves (1982) traça um extenso panorama de como estas regras vão moldando a imagem de corpo deste protestante, que usa da moral e da disciplina para punir os pecados. O autor nos traz a informação de que estes pecados são

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Rubem Alves (1933) é teólogo, educador e escritor brasileiro. É autor de livros sobre diversos assuntos, entre eles, filosofia, teologia, psicologia e histórias infantis. Cursou Teologia no Seminário Presbiteriano de Campinas, e exerceu as atividades de pastor na cidade de Lavras em Minas Gerais, foi professor de filosofia na Universidade Estadual de Campinas e formou-se em psicanálise na década de 1980.

organizados em cinco classes distintas: a primeira classe é o pecado do sexo, a segunda é a transgressão do dia santo (o domingo), a terceira são os vícios (fumar, beber e jogar), a quarta, o roubo e a desonestidade, e a quinta, as heresias (os crimes de pensamento).

Ao definir a moral, portanto, descreve-se o espírito feito carne; proclama-se o espírito da vida que é o ―resplandecer‖ ou a fenomenologia da salvação; desenha-se a fisionomia do ―novo ser‖. (...). Crentes verdadeiros são somente aqueles que fazem a confissão ortodoxa da fé e se comportam segundo as normas estabelecidas pela Igreja. Se, por acaso, qualquer um destes dois critérios não se apresentar na vida de um indivíduo, ele não possui as condições necessárias para pertencer à comunidade. É a união destes dois elementos, conhecimento e moralidade que define o tipo ideal de personalidade protestante, o homem ―em Cristo‖ (ALVES, 1982, p. 169).

Cada uma das cinco classes de pecados distinguidas vão configurando a imagem de corpo deste cristão através de um prisma específico, todas elas visando o corpo como um meio e não um fim em si mesmo, deixando explícito o dualismo entre corpo e alma e igreja vs. mundo.

O que seria o corpo como fim em si mesmo? Rubem Alves (1982) responde a esta pergunta usando como referência a psicanálise de Freud e a filosofia de Nietzsche e concluí que o pai da psicanálise, em suas pesquisas clínicas, afirma que o corpo determina os seus próprios fins e o princípio do prazer é o que decide o propósito da vida. Ou seja, o clássico exemplo da fome, o vazio sem nome que incomoda o bebê e que é saciado pela presença do leite no peito da mãe envolvendo a criança em seu colo. É por esta satisfação que o corpo busca a vida inteira; nas palavras de Nietzsche, citadas no texto do autor, ―o corpo é a grande razão‖.

Negar o corpo como o fim em si mesmo é entendê-lo como meio para se alcançar algo e, deste modo, as cinco classes distintas de pecados passíveis de punição traçam o limite sobre o que é ou não permitido ao crente para não perder a graça de Deus. Durante muitos anos, estes pecados formaram os alicerces para a construção da imagem do corpo cristão protestante.

Domingo, o dia santo, devia ser guardado não como um dia dedicado ao deleite do corpo, mas ao deleite da alma. Atividades como entretenimento ou lazer, desde ouvir a narração de uma partida de futebol pelo rádio até jogar uma partida de futebol, ir ao teatro ou cinema, eram proibidas. O sétimo dia, o dia de descanso, nada mais era, considera Alves (1982), do que um dia dedicado a reafirmar os compromissos de cristão diante da igreja e da sociedade para conseguir, nos outros seis dias da semana, prosseguir na sua dedicação à salvação eterna. O domingo deveria ser dedicado às leituras bíblicas e à meditação ao Senhor.

(…) Para o protestante, todos os dias fazem parte de uma jornada única para os céus. O domingo é o oásis, o momento de meditação, o tempo da comunhão, em que se renovam as suas energias espirituais, a fim de que ele possa realizar obedientemente a sua vocação religiosa nos restantes dias da semana. O domingo é o dia da Palavra, quando pelo estudo e pelo sermão se reafirmam e confirmam as suas ideias sobre a realidade. (Ibid, p. 188)

(…) Os seis dias da semana, os dias do trabalho, são os dias em que o corpo se disciplina e se reprime, a fim de realizar sua vocação. O domingo o dia do descanso, é o dia em que o corpo é reprimido mais uma vez, afim de que a alma se exprima. (Ibid, p. 189)

As regras que delimitavam a guarda do dia santo eram um tanto difusas, uma vez que guardar o domingo significava não trabalhar e reservar o dia para o Senhor. Porém, o que de fato se entendia por não trabalhar, é que é interpretado de modos diferentes por cada denominação e cristão, dando vazão a uma casuística. Na dúvida se algo era ou não lícito de ser feito, o crente optava por não fazer, evitando, assim, a punição. Há exemplos de fiéis, descritos pelo autor, que deixavam de tomar um guaraná na porta de um bar com medo do líquido ser confundido com cerveja por outro fiel e escandalizar a igreja, ou mesmo de realizar uma compra comercial no domingo porque isto pressupunha que exista um trabalhador.

O pecado do vício traz à tona a ideia do corpo como uma propriedade de Deus, em que o crente é tido como um mero administrador que deve restituir este corpo a Deus nas melhores condições possíveis, pois o crente não é o dono deste corpo. O vício, antes de ser considerado um malefício à saúde por princípios médicos, é considerado uma possessão do corpo por um objeto de desejo ou de prazer, ou seja, ele deixa de pertencer a Deus para pertencer ao objeto do vício. A racionalidade, tão prezada pelo protestantismo, é vencida pelo vício.

O roubo significa antes de tudo, a transgressão da honestidade. Para o crente, não é necessário justificar a regra que proíbe o roubo da propriedade alheia, pois ela já é uma lei civil. No entanto, manter esta regra de disciplina afirma o compromisso do crente com a honestidade. Este, em hipótese alguma, deve faltar com a verdade em todas as formas de relacionamento. Ser honesto é não dissimular, não esconder, não enganar. O crente deve ser um espelho dos fatos. (Ibid, p.193)

Dizer a verdade, para o crente, não é um ato em que a consciência transcende os fins, mas é uma resposta automatizada que obedece a uma exigência moral. Não importa que esta verdade possa ter consequências catastróficas, importa é viver em conformidade com o que é

dito. A honestidade vivida deste modo é mais uma forma de repressão, porque está submetida à obediência da igreja. Segundo Alves (1982), uma ação é moral quando, e somente quando, a vontade que a executa se deixa determinar de forma absoluta pelo imperativo do dever.

O pecado da heresia e das transgressões de pensamento não se encaixa entre os pecados de cunho moral, pois não sucumbe a nenhuma fraqueza da carne. Este pecado é ainda mais grave, de acordo com o autor, pois contesta a verdade absoluta da instituição da Igreja, ou seja, o saber coletivo aceito pela maioria, e propõe outra verdade, oriunda de um conhecimento individual. O herege denuncia, acusa a Igreja de estar errada diante da comunidade e delata, deste modo, que suas atitudes também estão erradas diante do mundo. Esta é, segundo Alves, a diferença do imoral e do herege, pois o imoral faz as transgressões em segredo e o herege expõe a sua convicção.

Alves (1982) aponta que a oposição entre ortodoxia e heresia revela um conflito crucial, um conflito político de fracos e fortes, no qual a Instituição está sempre colocada do lado forte, entre os que têm o poder e possuem a verdade absoluta. Os oprimidos pelo poder buscam se libertar.

O ortodoxo tenta preservar o velho. O herege tenta destruir o velho, para que o novo nasça. O ortodoxo tem medo do novo, da surpresa, do inesperado. Eles ameaçam a sua salvação. O herege vê o velho apenas como um caminho na direção do novo. O velho não é o definitivo. É o provisório. Etapa a ser ultrapassada. Visões de mundos que se opõem. O ortodoxo vê um mundo petrificado, acabado, completo, fixo, imutável. O herege vive um mundo que se move, ainda incompleto, aberto, inacabado. Mundo onde é necessário buscar. Processo descontínuo, de saltos qualitativos, onde a vida e a liberdade se mantêm pela dialética da morte e da ressurreição. Quem preserva o passado está condenado a viver nele. Perdeu o futuro (Ibid, p. 275).

Não foi por acaso que deixamos para o final o pecado do sexo: ele é o motivo pelo qual, durante anos, a dança foi e ainda é abolida de muitas igrejas protestantes. O sexo é a regra disciplinar mais simples e clara da igreja protestante: não se pode fazer sexo antes do casamento. Por trás desta simplicidade se esconde uma questão muito relevante: o sexo não é tido como graça de Deus, ele é visto como um meio para a procriação, uma forma do crente satisfazer a vontade de Deus de multiplicar os seus herdeiros na terra. Rubem Alves (1982), constata isso quando se questiona sobre os aspectos positivos desta regra, ou seja, do sexo no casamento, e não encontra nenhuma resposta específica sobre ela. Para ele, o silêncio é o indicativo de que o sexo é uma permissão e não algo que se preste a um fim. O sexo é visto como vergonha, porque significa a vitória dos impulsos vitais e naturais do corpo sobre a intelectualidade e a racionalidade; estas, sim, devem dominar as atividades do corpo.

O dualismo irrompe nesta valorização do espírito prevalecendo em detrimento aos prazeres do corpo - proposição assumida pelas filosofias gregas e reafirmada pelo cristianismo católico, sobretudo pelo seu reconhecido filósofo Santo Agostinho (354 D.C – 430 D.C).

Dominar os impulsos vitais do corpo é o sinal da vitória da razão. E justamente por este motivo, a dança é abolida e proibida entre a comunidade da igreja, porque para os evangélicos, nenhum homem que dance próximo de uma mulher, com ela envolvida em seus braços, poderá conter os impulsos naturais do corpo. Esta é uma história relatada em uma das atas de Conselhos das Igrejas, citado no livro Protestantismo e Repressão (1982), onde vários casos envolvendo a dança estão presentes. Apenas para termos uma ideia do quanto a dança era associada com o pecado do sexo, segue mais um exemplo do mesmo livro:

Pode um estudante crente tomar parte no baile que a sua turma faz no dia de sua formatura escolar?

Resposta: Quanto ao baile, nunca é lícito a um crente tomar parte nele. É uma festa mundana e inconveniente, que só faz mal aos sentidos.

É lícito a crentes dançar e levar seus filhos a bailes familiares ou de formaturas? Resposta: A dança moderna, ou seja, os bailes em geral, profanos e mundanos, ou familiares, ou de clubes, ou de 'gafieiras', ou de formaturas, não cabem dentro de Filipenses 4.8-9 e 1 Coríntios 10.31. Devem ser evitados definitivamente pelos crentes. (In: ALVES, 1982, p. 177)

Outro aspecto levantado em relação à dança é o carnaval. Associado aos bacanais romanos na festa ao deus Baco, é visto entre os protestantes como uma festa pagã permitida pelo catolicismo e por este motivo esta manifestação era extremamente proibida.

A disciplina dos pecados do sexo, assim, tem a função de garantir que "os crentes sejam diferentes". Mas nas suas projeções mais amplas, ela implica um desenraizamento do "convertido de suas raízes culturais, identificadas com o "mundo" e a "impureza". (Ibid, p. 178)

A dança transgride, deste modo, duas regras básicas: a primeira, a de incitar os impulsos vitais do corpo, e a segunda, a de colocar os impulsos, sentidos e sentimentos acima da razão.

Ao descrever e argumentar sobre cada uma das regras, Alves (1982) identifica que a ética protestante é construída em torno de uma verdade absoluta, que estabelece limites e que a graça da teologia luterana e paulina, que tinha o poder de libertar o crente da lei, é transformada, no calvinismo, como um meio de dar cumprimento à lei. É por este motivo que o teólogo entende que o propósito protestante de adentrar na era da modernidade foi perdido e repete o mesmo formato do cristianismo medieval católico.

Durante muitas décadas, o protestantismo puritano no Brasil acreditou que bastava ter fé para que a graça de Deus o alcançasse e fixasse as relações do mundo entre cristãos evangélicos e não cristãos. As regras e disciplinas seriam suficientes para preservar as teologias da salvação; o corpo seria sempre propriedade exclusiva de Deus e a violação do mundo não deveria corromper a sua santidade.

A modernidade, suposta aliada do protestantismo, não comprovou esta realidade. A Teoria Corpomidia, de Katz & Greinner (2001, 2003, 2004, 2005, 2010), e o conceito de imagem de António Damásio (2011), partidários do evolucionismo de Darwin, atestam isto. Uma complexa, constante e ininterrupta rede de informações transforma o mundo a cada momento, com menos ou mais intensidade, de forma mais ou menos visível; mas o mundo não muda sozinho, ele carrega consigo tudo que o compõe, e é assim que o sagrado ―templo do Espírito Santo‖ toma também novas formas. O avanço tecnológico, a agilidade nos meios de comunicação, as novas mídias, afetam o corpo do fiel evangélico.

O corpo foi obrigado a render-se, ainda que em partes, para continuar sobrevivendo na sociedade globalizada e neoliberal. Surgem novos padrões dentro e fora das igrejas e não foi possível ignorá-lo. Estes micro e macro universos foram se contaminando mutuamente gerando outros mapeamentos, outras representações e o corpo do evangélico torna-se e gera novas imagens.

O que veremos em seguida é exatamente a transformação da imagem do corpo cristão protestante e a adequação do discurso puritano nesta forma de comunicação, de que maneira ele se conserva ou se altera a partir de uma nova imagem de corpo.

Para começar, vamos retomar o princípio da homeostase, que tem por finalidade preservar o valor biológico. O valor é tudo aquilo que é considerado imprescindível para um organismo se manter equilibrado e vivo.

Os mapeamentos são mutáveis e as imagens são acionadas e geradas de diversos modos e de forma não linear. O processo de homeostase é essencial para garantir que o mapeamento do cérebro possa ter um equilíbrio das imagens que representam as transformações do corpo e das que ocorrem no ambiente. Apesar de não haver uma única região específica onde estas imagens ocorrem é no cérebro que estas operações se realizam. Deste modo, podemos notar que esta abordagem vai diretamente ao encontro da Teoria Corpomídia, que afirma que o corpo se constrói no cruzamento entre o biológico e o cultural.

É por isso que é imprescindível entender o conceito de metáforas proposto por Lakoff & Johnson (1998, 1999), trazidos no capítulo anterior e que é um dos alicerces epistemológicos da Teoria Corpomídia, pois compreenderemos que as experiências vividas em determinada situação servem de representações para outras experiências, e isto é extremamente relevante neste processo de adaptação do fiel protestante à pós-modernidade, pois o coloca diante de novos mapeamentos, sem se desvincular dos anteriores.

Sendo o mapeamento a interação de ações entre padrões que estão presentes dentro e fora do corpo, a homeostase cultural, possível devido à existência do self autobiográfico, responsável pela razão, o pensamento lógico, a criatividade e a monitoração de todas as outras regiões do cérebro; tudo o que geramos culturalmente representam mapeamentos que estão presentes em nosso corpo, assim como o inverso também é verdadeiro, por isso a Teoria Corpomídia vincula corpo e ambiente. Ou seja, ao gerarmos uma imagem – um padrão - seja ela oriunda de qualquer sentido, uma vez que imagem não é só visual, estamos gerando um padrão que nos representa e ao entrarmos em contato com novos padrões geramos novos mapeamentos.

Retomamos estas explicações porque para podermos pensar que uma nova imagem de corpo protestante está sendo gerada, temos que considerar que esta mudança de padrões está ocorrendo em várias esferas, sem hierarquias de uma para outra, de modo não linear, e numa variável flexível de tempo-espaço, envolvendo as diferentes denominações de igrejas. Estas mudanças estão ocorrendo nas igrejas, nos fiéis, nas mídias, na sociedade como um todo. A visibilidade notável desta mudança continua sendo nos corpos dos fiéis, estejam eles nas mídias ou não. Ou seja, quando uma imagem circula na mídia, representa uma mudança já em curso. No caso do protestantismo, nos corpos dos fiéis e no ambiente das igrejas, ao mesmo tempo em que esta imagem, presente na mídia, provocará outras mudanças de padrões em instâncias diferentes.

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