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6 REFLEXÕES DOS PROFISSIONAIS SOBRE A VIOLÊNCIA

6.1 A família: uma unidade a ser cuidada

6.1.1 A construção da violência na família: a educação como referência

A primeira dificuldade relacionada à família está diretamente relacionada às práticas encontradas sobre a violência no seu cotidiano e que pertencem ao âmbito familiar. Nesse primeiro momento, a família como a perpetuadora da violência, é responsável pela sua presença constante nos lares e na vida de muitas crianças e adolescentes. Em vista disso, Biasoli-Alves (1999, p. 69) refere

que as relações que se estabelecem na família entre gerações diferentes compõem a socialização ao longo da vida, e há aproximações e distanciamentos nas formas de perceber o mundo e a evolução entre os indivíduos que desempenham papéis diversos – pai e filho.

Tinha uma criança internada com a gente, aquele menino [...]. Ele chegou e disse: ô tia o meu pai chega em casa todo dia e bebe, bebe, bebe, e enche a minha mãe de porrada, ai a polícia chega e leva ele para a cadeia, ai ele volta no outro dia com muita raiva e bate, bate bastante na minha mãe e em mim. Eu tô louco para crescer para comprar uma arma e matar ele (Calycopis).

É inquestionável que a família apresenta, em seu contexto, modos de viver e de se relacionar, e que certamente são estes que constroem e influenciam a personalidade de seus membros. Seja, na alimentação, na higiene e nas demais necessidades que compõem o ser, contudo é na educação que valores e significados se aliam e dão um sentido às relações. E, é nesse momento ou por toda

a vida que a violência ganha forças e permanece como uma constante nos lares de muitas crianças e adolescentes. Tanto é que a literatura especializada nacional e internacional indica que se não todos, a maioria dos pais que violentam foram crianças violentadas no passado e Miller (1990, apud GUERRA, 2001, p. 32) que:

a maioria das pessoas que perpetua violência física contra seus filhos, foram elas mesmas vítimas desta violência em sua própria infância. Esta informação não é totalmente correta: não deveria ser a maioria, mas todas. Qualquer pessoa que perpetra a violência contra seu filho, foi ela mesma severamente traumatizada em sua infância de alguma forma [...] uma vez que é absolutamente impossível que uma pessoa educada num ambiente de honestidade, de respeito e de afeto venha a atormentar um ser mais fraco de tal forma que lhe inflija um dano permanente.

A criança ela aprende por imitação, pelo que ela vê. Ela imita a realidade que ela está vivenciando, e aquilo ela toma como uma verdade para ela. [...] se ela não tem uma outra influência, ela vai acreditar que a única verdade é aquela (Calycopis).

Quase todas as justificativas da família para as diversas práticas da violência estão relacionadas aos aspectos relacionados ao modo de educar. Ou seja, a violência, em muitos lares, ganha sinônimos como: educação, aprendizagem, obediência, ordem, sendo vista como única forma de promover relações de respeito entre pessoas que convivem e necessitam viver em grupo, e, possivelmente, como a única forma de estabelecer limites.

Provavelmente é a educação que ele (o pai) teve quando criança e agora está passando para o filho (Myscelia).

Quando a família resolve e decide que é através da violência que se promove a educação à criança e ao adolescente, ela os considera como objetos para satisfazer seu poder de dominação, no qual alguém manda e o outro obedece. Além disso, também satisfazer suas frustrações, pois utiliza a violência quando suas vontades não são correspondidas, ou seja, essa família está fielmente reproduzindo aquilo que lhe foi passado ao longo de sua vida, e que talvez com a violência tenha alcançado algum resultado.

Acredita-se que todo o ser humano que cresce e se desenvolve vivendo relações de respeito, amor e ternura com o próximo, que se percebe e reconhece seus limites em um espaço de convivência, conhece outras práticas que não estas, ou seja, é quase impossível ele reproduzir algo que não lhe foi aprendido e apreendido. Certamente, não é somente a família que fortalece o ser humano,

porém acredita-se ser a grande responsável pela sua estruturação. Brigas (1999, p. 54) reforça isso quando diz que

o modelo de aprendizagem se faz através da aquisição de modelos. Ele justifica esse comentário com a teoria do apego quando ratifica que o processo de apego possui fatores pertinentes para compreender a transmissão da violência de pais para os filhos: um pai violento e muito negligente afeta de início, não só a relação com o filho, a criança, mas também constrói uma concepção de mundo imprevisível que não é gratificante, ou seja, as crianças que têm como base a segurança desenvolvem uma concepção de mundo que é previsível e gratificante, e as crianças que desenvolvem uma concepção do mundo previsível e gratificante estão de acordo em perceber que suas necessidades serão satisfeitas, estão cientes que irão surgir pessoas para atender suas necessidades, terão tendência em inibir este comportamento violento e acham vantagens em fazer parcerias com o mundo e com outras pessoas.

Nesse sentido, é interessante que uma reflexão primária seja feita sobre o julgamento dos familiares sobre a violência. O que se propõe é reconhecer que a família, nesse primeiro momento, não deva ser julgada por valores morais impostos pela sociedade, porque essas questões não são pensadas quando pais e mães violentam seus filhos. Portanto, uma análise ainda precoce sobre essa dificuldade em lidar com pais e mães que violentam seus filhos, é compreender que seus atos, de certo modo, dentro de sua história de vida, são justificáveis. Não se incluem aqui, práticas de violências que provoquem risco de morte, apenas está se atentando para as violências que ocorrem no dia-a-dia, como tapas, privações e agressões físicas e verbais que não ocasionem em risco. No entanto, não se considera menos violência, apenas se está tentando visualizá-la sobre outro ângulo. “As lições apreendidas mostram que mesmo as famílias que vivenciam a Violência Doméstica, quando devidamente tratadas, constituem-se na principal referência afetiva para as crianças e adolescentes vitimizados” (BARREIRA, 1999, p. 489).

Sobre esta clientela (família) especificamente eu vou me cuidar mais, para evitar em qualquer hipótese de um julgamento o que a gente já faz, mas vou me policiar muito mais ainda pela questão do julgamento, por quê eu acho que mais triste é julgar (Calycopis).

Guerra (2001, p. 12) comenta que “a punição corporal é sempre enfatizada pelos pais ou responsáveis como um método adequado de educação”. Portanto, um dos primeiros aspectos a serem questionados sobre a violência e que deveria ser analisado quando se fosse promover ações de cuidado, seria de compreender que, para muitos pais e mães, essa violência menos ofensiva é vista

como forma de educar. E, nesse aspecto, as contribuições seriam no sentido de desmistificar esse ato, mostrando para a família que, certamente, essa educação desrespeita todos os direitos da criança e a torna um objeto em suas mãos. Romper com esse ciclo, proporciona que a família seja apresentada a outras forças de lidar com essa dita educação, mostrando outros caminhos e formas. Segundo o UNICEF (2006, p. 29), “há uma demanda crescente de ações que colaborem com a família para socializar e superar seus problemas”.