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1. A Gênese da Geografia Moderna: controvérsias e o papel da filosofia

1.3. A construção de uma interpretação filosófica

Como vimos, são muitas as polêmicas que envolvem a construção da Geografia Moderna. Este trabalho pretende ser uma contribuição interpretativa, uma análise sobre a constituição geográfica moderna, em Alexander von Humboldt, dos conceitos de espaço, natureza e morfologia a partir das influências de Kant e do movimento romântico alemão; caminho este que repercute nas dificuldades contemporâneas do saber geográfico; que rebate na necessidade mesmo de um repensar das ciências e seus domínios disciplinares. Uma discussão que interessa aos profissionais de geografia, àqueles que se propõem uma análise histórica desta ciência; aos que se vêem no rumo de limites e barreiras encontradas no curso da atividade científica, enfim, esta discussão se endereça a quem possa se interessar pela produção do conhecimento na ciência geográfica e, o que é mais importante, para os rumos interpretativos de uma função basilar da filosofia na construção epistemológica desta ciência.

A despeito do grande número de interpretações e correntes, desenvolveremos uma análise pormenorizada dos trabalhos de Kant e Humboldt. O primeiro tomado na contribuição filosófica de um repensar sobre a natureza e a construção de uma ciência da natureza; o segundo pela concatenação de um legado amplo, a articulação de um saber na construção de uma ciência sob a constituição dos conceitos de espaço, natureza e morfologia que o permite ir além dos limites colocados pelas vias racionalistas de um pensar sistemático.

O pensamento de Kant redefine as bases sobres as quais se coloca todo filosofar ulterior e, na mesma medida, consagra o avanço da ciência em seu caráter sistemático e autônomo. Pretendemos aqui mostrar como a construção de seu pensamento está diretamente relacionada com a constituição de conceitos centrais na Geografia, tais como espaço, tempo, natureza e

forma. Remontamos aos diferentes momentos de sua reflexão, destacando sobremaneira as suas Críticas, apontando, nesse sentido, as mudanças ocorridas no curso de seu filosofar, que, numa pretensão que não faltará nesse desafio analítico, imaginamos integradas em uma visão sistemática geral. Kant representa filosoficamente um ponto de equilíbrio nas ciências da natureza, o embasamento filosófico-metafísico necessário para que as ciências empíricas encontrem legitimidade analítica na elaboração de princípios e leis que dizem respeito à apresentação de todo objeto da experiência. Entender como isso se dá é fundamental para entender a gênese moderna da Geografia, uma ciência que se edificou num plano sistemático capaz de reunir não só os casos particulares mediante princípios causais ou leis gerais, mas e, sobretudo, que se apresentou como medida de síntese de diferentes saberes, uma ciência que nasce de múltiplos esforços, de contribuições que não encontram limites rígidos e que, de uma forma contraditória, caminha na contramão das especializações e desmembramentos resultantes do legado indutivo.

É evidente que a Geografia encontrou sua medida de especialização, ainda que numa fase posterior ao momento de sua gênese, mas resta que o corpo de sua construção e a definição de seu objeto sempre tornaram recorrente o emprego de diferentes elementos que, no construir das ciências modernas, passaram a povoar campos específicos de saberes dos quais a Geografia empresta suas contribuições e reflete no desafio sempre renovado de articulação sistemática. Humboldt é o ponto nodal dessa construção do saber geográfico. Ciência de síntese, visão holística (MOREIRA, 2006), sejam quais forem as atribuições à análise de Humboldt, resta que ele se colocou o desafio de integrar não só diferentes áreas do saber numa mesma explicação sistemática, mas o desafio de reconstruir a ciência e sua empreenda metodológica a partir de sistemas filosóficos antagônicos. A qualquer estudioso de método, esse desafio parece um absurdo contra o qual nenhum argumento poderá restar frutífero, contudo, sem construir um sistema filosófico próprio, Humboldt foi capaz de estabelecer uma forma coerente de análise partindo de pressupostos filosóficos diversos. Isso, isoladamente, seria motivo mais do que suficiente para colocá-lo no centro da discussão contemporânea das produções científicas e, ainda mais, no rumo das discussões contemporâneas da Geografia.

A ciência geográfica, depois de sua gênese moderna numa visão integradora, holística (MOREIRA, 2006), se viu à baila com a dificuldade de pensar a sua construção científica a partir da natureza e da sociedade, a partir de vias que assumiram historicamente caminhos diversos e de

alguma forma antagônicos. Humboldt, com sua proposta integradora, é a apresentação de uma resposta, ou no mínimo o promotor de uma discussão sobre a possibilidade de unir bases metodológicas distintas, legados interpretativos diversos, construções filosóficas excludentes num mesmo corpo de análise. Uma contribuição como essa seria fundamental para a Geografia. Uma ciência que pretende explicar uma relação da natureza com a sociedade deve, evidentemente, se valer de esforços múltiplos e, o que é a grande dificuldade, certamente excludentes. Humboldt é central nesse processo de integração científica de um corpo variado de conceitos e recursos técnico-metodológico-filosóficos. A produção de Humboldt, essa inconcebível possibilidade de articular correntes diversas é esclarecedora não só para a Geografia, mas para a ciência como um todo. Num tempo em que se fala de interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, uma produção científica que consiga dialogar com as mais diferentes áreas do saber é sem dúvida uma contribuição a ser analisada. A dificuldade central de uma reunião disciplinar é, doravante, um problema filosófico. Não se pode reunir de maneira coerente ciências que assumem como pressupostos princípios oriundos de sistemas filosóficos diametralmente opostos. Como falar em interdisciplinaridade se as ciências não falam a mesma língua? A obra de Humboldt, sob a luz de um novo contexto material e intelectual é uma contribuição a ser considerada.

As ciências lidam efetivamente com seus limites, descobrem que não podem mais responder as suas perguntas nos redutos de suas especialidades, no reduto em que se mantiveram em reprodução ampliada. Separadas pelo advento de uma necessidade analítica, as ciências reencontram sua fonte comum, a busca que fora deixada de lado em favor de um conhecimento pragmático. Todas as construções científicas procuram o conhecimento e, como tal, este não pode ser reduzido aos limites institucionais, não se encerram no recorte analítico que se impõe às ciências e seus específicos objetos. Diante de seus limites, as ciências clamam filosofia, e, paradoxalmente, a filosofia se torna científica nas academias. A unidade do saber é cobrada depois de um longo vôo no rumo da fragmentação e da produção técnica. Já não se pode produzir conhecimento em física sem filosofar; já não se pode produzir conhecimento em Geografia sem colocar-se a questão de uma reconstrução epistêmica e, portanto, filosófica. A função da filosofia nesse trabalho é, além do reconhecimento de um papel fundamental desempenhado por ela na construção do saber geográfico a partir dos conceitos de espaço, natureza e morfologia, a colocação de um necessário reexame filosófico das ciências, em que a Geografia, por seu caráter

historicamente sintético e pelo problema que apresentamos na construção do seu objeto, clama mais do que qualquer outra. Isso que manteve a Geografia no centro de inúmeras críticas, condenada por viver de migalhas de outras ciências e por implorar arranjos sistemáticos que lhe valessem em justa forma, é o que a coloca no centro dessa mudança epistêmica das ciências. Esse absurdo universo de síntese, esse nada ser, essa busca infinda por descobrir-se coloca a Geografia um passo adiante na crise, afinal, ela nasce da crise e se desenvolve por ela.

A questão que colocamos sobre o rebatimento e o diálogo aberto entre a investigação histórica do pensamento geográfico e a construção da Geografia se torna aqui evidente. Esta discussão nos permite pensar que o desafio da Geografia é filosófico, o é desde a gênese moderna, e, nos limites que nos oferece essa análise sobre a sua fundamentação a partir de conceitos que carregam um vasto itinerário filosófico, apontamos para o fato de que somente a investigação filosófica poderá solucionar seus impasses. Num novo tempo das ciências, a Geografia deverá buscar seu lugar na construção de um ponto comum entre as diferentes áreas do saber; deverá colocar-se um campo de análise filosófico, o que, sem demora, se tornará uma necessidade de todas as ciências. Não estamos falando de um reduto em que se analisem métodos ou caminhos conceituais, isso de fato já existe em todas as produções e nas diferentes áreas, o que se coloca na ordem do dia é a produção de uma ciência filosófica. Inaugurando esse caminho, a Geografia poderá encontrar seu verdadeiro valor, valendo-se de um filosofar no trato do seu objeto que, de certa forma, já o exige. Transdisciplinaridade, interdisciplinaridade, multidisciplinaridade, nada disso restará frutífero se não criarmos um campo comum de diálogo, e este é filosófico. Os limites não nos servem, ou melhor, apresentam valor limitado no rumo do conhecimento; deve-se manter estas contribuições e abrir-se uma atividade genuinamente filosófica no trato dos objetos e dos recursos acumulados. De volta ao ponto de partida, as ciências encontram seu novo sentido na unidade perdida em nome do seu desenvolvimento. Filosofia e ciência devem de novo confluir; a Geografia irrompe como ciência moderna de uma análise que pretende ser filosófica-artística-científica, e, nesse novo contexto, encontra o desafio que lhe acompanha.

Diante de tudo o que foi exposto, destacamos que a apresentação deste trabalho se apóia na reconstrução dos conceitos de espaço, natureza e morfologia num diálogo com a Filosofia, pretendendo enxergar o papel destes numa forma particular de construção sistemática em Humboldt e, conseqüentemente, na estruturação de uma saber geográfico moderno. Nessa origem

particular da Geografia apontamos algumas questões periféricas ao trabalho, problemas que estão relacionados com a associação que não pode ser desfeita entre pensar a História da Geografia e construí-la. Contudo, no objetivo central do trabalho, que, em verdade, elucidará o conjunto de idéias e questões levantadas neste capítulo, apresentamos a primeira etapa importante de articulação e construção sistemática do saber geográfico em Humboldt, bem seja, a perspectiva de uma fundamentação das ciências da natureza em Kant.

Capítulo II

A consolidação filosófica das ciências da natureza: o

racionalismo na Geografia Moderna de Alexander von

2. A consolidação filosófica das ciências da natureza: o racionalismo na Geografia Moderna