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5. Alexander von Humboldt e a Gênese da Geografia Moderna

5.3. A obra de Humboldt e a Geografia Contemporânea

Pontuamos algumas questões no primeiro capítulo, elas dizem respeito às dificuldades que envolvem a produção no campo da ciência geográfica. Como fizemos questão de destacar, estes

problemas, assentados na necessidade de uma nova visão integradora, não são estritamente geográficos, as ciências como um todo experimentam a dificuldade de lidar com as especializações e os entraves colocados no rumo do conhecimento. Por um lado, essa fragmentação foi e é importante no cumprimento de objetivos claros e pragmáticos, bem como para a ampliação de um corpo de informações como nunca antes imaginado. Por outro lado, o rumo da construção por esse contínuo fragmentar e analisar recobra o sentido filosófico na explicação geral dos fenômenos, na compreensão legítima dos processos que fogem aos limites disciplinares e às fronteiras sob as quais se entrincheiraram as ciências em seus interesses corporativos e institucionais. No reduto desta discussão se abrem as questões de um pensar interdisciplinar, multidisciplinar, pluridisciplinar, procurando esclarecer e apontar caminhos de integração dos diferentes ramos e campos de pesquisa. A dificuldade central, aqui, reside no fato de que as ciências foram construídas a partir de sistemas e premissas filosóficas distintas. Quando se dá definitivamente, com o aporte filosófico da teoria kantiana, a separação entre ciência e filosofia, quando pode a atividade científica alçar seus vôos sem recorrer a todo instante ao inibidor processo de investigação filosófica, cumpri-se o passo derradeiro para o avanço de uma ciência que reencontra a filosofia só na adoção dos princípios e pressupostos, bem como para a validação do método e para o arranjo coerente da sua estrutura. Nesse sentido, a filosofia torna-se um cabedal de conceitos e estruturas escolhidos ao gosto do freguês, melhor dizendo, segundo o interesse analítico de cada ramo do saber científico. Não se busca a verdade, busca-se a produção de um conhecimento com validade restrita ao universo de premissas adotadas. Logo, quando se apresenta uma dificuldade qualquer no rumo do conhecimento, a tarefa de reinventar-se a partir do método torna-se um desafio cada vez mais difícil. As ciências, experimentando a limitação que, em verdade, é tão somente o resultado desse exaustivo aprofundar específico, clamam uma visão geral, uma articulação não construída, sobretudo porque a própria filosofia tornou-se ciência. Como não interessa à realidade o fato de estarmos ou não munidos para superar as dificuldades impostas à sua investigação, provamos do revés de nosso avanço, a limitação imposta por aquilo que nos fez outrora caminhar.

A Geografia prova desse desafio, na medida em que seu objeto lhe escapa, se estende e toma formas dinâmicas e que não podem mais circunscrever-se em recortes claros ou linhas de interpretações precisas. Mantida em seu interesse pragmático, por sua produção objetiva que atende aos órgãos estatais, aos sentidos gerais de um ramo político ou ao pensar e construir

enredados pelos interesses de mercado, subsiste a Geografia em seu sentido contemporâneo. As vias que lhe anunciam um novo dia, uma nova posição, cobram o interesse pragmático de que não podem restituir-se, na medida em que assentam na vala comum a opinião de que todo o conhecimento se produz nos limites de um recorte material constitutivo e submetido às regras de um princípio que toma como norte as condições que pretende superadas. As respostas dadas ao interesse restrito do saber geográfico e ao contínuo joguete político-institucional a que foi submetida em seu desenvolvimento histórico são todas limitadas pelo fato de não se romper em nenhum momento com a estrutura central de uma especialização do saber. Ao contrário, as respostas são sempre na direção de uma refundação da Geografia segundo essa roupagem surrada de uma ciência moderna. As discussões da Geografia se perdem no vazio de um interrogar epistemológico que não oferece repostas, porque travadas no desafio limitado de se adequar ao que serve a outra ciência qualquer, mas não a esta. Sem a preocupação institucional ou corporativa talvez possamos indagar de forma mais precisa e cumprir sem receios a questão geral colocada às ciências como um todo, o desafio de encontrar-se novamente com o saber filosófico. Não nos interessa uma fundação tardia num universo decadente e esgotado, cabe-nos encontrar os rumos de um saber geográfico que, assim como outrora, seja pioneiro na tarefa colocada ao conjunto geral das ciências.

Em Humboldt podemos encontrar algumas questões que suscitam debate e, mesmo, que ensejam algumas respostas. Em primeiro lugar, por não se preocupar em fundamentar um conhecimento geográfico, Humboldt o construiu de uma maneira inovadora e, ao seu período, eficiente. Aqui, no nosso contexto, cabe-nos pensar o mundo com o mesmo olhar desafiador e irrestrito, porque é só ele quem fornecerá as ferramentas e as reflexões que permitirão um estender de horizontes. Em segundo lugar, Humboldt articulou, como destacamos no curso de todo o trabalho, um múltiplo legado e, o que é mais difícil, de maneira coerente. A possibilidade de se agrupar os frutos de uma ciência racionalista com as contribuições de uma

Naturphilosophie romântica, para qualquer conhecedor do tema, parece uma tarefa impossível,

que, no entanto, restou frutífera pelas mãos de Humboldt. Aqui, ao nosso tempo, vale esta contribuição num cenário que anuncia a multi-trans-interdisciplinaridade, um cenário que evoca um permear do saber para além de suas fronteiras institucionais. É importante reconhecer uma contribuição fundamental de Humboldt, a que define como imprescindível os rumos de todo saber acumulado pelo humano. Nessa proposta de inspiração schellinguiana, encontramos o aviso

necessário de que, por mais que seja limitado e restritivo este universo de especializações, ele não deve ser abandonado, mas incorporado no rumo final de uma forma de saber mais apropriada. Isso é fundamental e talvez seja o ponto principal na forma com que Humboldt procura tratar sua ciência. Sem demora, devemos reconhecer que o que foi acumulado até aqui pela atividade do homem não pode ser esquecido ou lançado ao fogo como marca de um tempo descabido e desarticulado, ao contrário, deve aparecer à luz de uma nova postura diante do saber. Mais do que pelo conteúdo, o valor do trabalho de Humboldt está na forma, e mais do que na forma que ele empregou, está seu valor nas formas que pode ainda suscitar.

Parece claro e evidente que as considerações de Humboldt não podem ser trazidas sem qualquer conseqüência para o século XXI, igualmente, as construções filosóficas que permitiram seu reagrupar metodológico já passaram pelo crivo de duras investidas que, no mínimo, devem ser consideradas na tarefa colocada às ciências. Humboldt propôs uma integração de métodos que é difícil de ser mantida, sobretudo pelo curso de um saber moderno que condenou o transcendental ao verso de uma página empírica. Razão e sentimento como a contraposição entre um transcendente e um empírico já não estão na ordem do dia, não é esta a questão, ela foi reformulada sob a imagem de uma ligação do subjetivo com a objetividade, um pouco daquilo que denunciamos na defesa de uma forma diferente de se interrogar sobre a Geografia e de proceder metodologicamente. De todo modo, não se pode impunemente passar por cima de mais de um século de história do pensamento. Por este ponto inelutável, admitimos que talvez seja difícil ou mesmo impossível articular os diferentes legados científicos e as diferentes correntes filosóficas que fundamentam os interesses analíticos da Geografia. Aqui, coloca-se a necessidade primeira de um repensar filosófico, a construção ou adequação de um sistema que possa colocar sob o mesmo nível os diferentes ramos do saber e, enfim, falar em uma única voz ao corpo das ciências. Sem primazia, essa filosofia deve ser a um tempo Crítica, ou seja, não fundamentar dogmaticamente ou de maneira constitutiva princípios incontestes, mas tão somente admiti-los em seu caráter regulador, e, ao mesmo tempo, doutrinar, na medida em que as ciências precisam de uma base para articular seus princípios e assentar suas construções na perspectiva do conhecimento. Esse desafio filosófico é o desafio da própria Filosofia e nele reside a resposta para a dificuldade das ciências. De todo modo, cabe à Geografia repensar-se nessa busca por refundação, cabe colocar-se diante da necessária articulação do saber para além dos limites disciplinares.

Como apontamos no primeiro capítulo, o caminho que nos leva da Gênese da Geografia Moderna até a sua construção contemporânea indica que esta ciência nasce como um projeto de síntese científica-artística-filosófica e que reclama, com o conjunto das outras ciências, o desafio desse reagrupar abandonado, ainda que sob a imagem perseguida e criticada de uma ciência de síntese, nesse caso, de síntese filosófica.