• Nenhum resultado encontrado

Apresento as referências teóricas para análise dos acontecimentos que deram condições ao surgimento do bairro Restinga no espaço e tempo de sua formação entendendo sua origem ligadas a “Guerra” contra as “Vilas de Malocas” e o extermínio destas como propostas de solução comunicada e executada pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre como política publica para os problemas urbanos40, sustentada por argumentos discriminatórios de construção de um inimigo social – o maloqueiro, e de um combate ao entrave para a modernização e progresso – a maloca.

Remonto o contexto partindo dos discursos. Para isso usarei a leitura de Foucault na análise das fontes, onde segundo o autor:

Análise do campo discursivo é orientada de forma inteiramente diferente; trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligadas, de mostrar que outras formas de enunciação excluem. (FOUCAULT, 2008, p. 31)

Para entender tal processo de seleção, expulsão e confinamento (por condições de controle e estruturas) da população que originou o bairro Restinga busco entender os discursos que sustentaram a ação e neles as relações de poder que potencializaram este processo. Pensando na perspectiva de Foucault na possibilidade de produzir uma análise das relações de poder desencadeadas a partir da formulação de verdades aceitas para sua aplicabilidade no contexto estudado onde apresento o conceito de “verdade” por Foucault:

A verdade é centrada na forma de discurso científico e nas instituições que o produzem; está submetida a uma constante incitação econômica e política (...); é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um imenso consumo (...); é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos e ou econômicos (...); enfim, é objeto de debate político e confronto social as lutas “ideológicas”. (FOUCAULT, 2016, p. 52)

Em síntese o que o autor afirma como: “Por ‘verdade’, entender um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados.” (FOUCAULT, 2016, p.54). Busco estes enunciados que definem as normatizações sociais, as regulações do sujeito e seu pertencimento ao grupo hegemônico ou o não pertencimento, ocupando um “Outro” no discurso.

A inquietação frente à “verdade” por Foucault me leva a querer entender sua estratégia de ação disciplinar, de contenção, de normatização, bem como qual o canal utiliza para

40

difundir esse poder, em que momento este poder toca meu corpo e me define, assim como ele orienta as ações que me atravessam para ai partir e ser também poder. Para entender chamo o próprio filósofo em suas palavras:

Quero dizer que, em uma sociedade como a nossa, mas no fundo em qualquer sociedade, existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social e que essas relações de poder não podem se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação e um funcionamento do discurso. (FOUCAULT, 2016, p. 278-279)

Para esse dissertação é fundamental encontrar as formulações de tais “verdades”, “saberes” que construíram estes “Outros” inimigos da ordem pública a moderna Porto Alegre41. Entender como esse “saber” agiu sobre os sujeitos e principalmente, quais foram às estratégias de resistência por parte desse “Outro” negado como cidadão.

O cuidado com o objeto aqui é a intenção da busca de sua humanização do processo - Restinga como bairro é o espaço/território de sujeitos, é também lugar de um Ser. O sujeito sobre o qual se exerceu poder definindo-lhe o lugar social, econômico e geográfico, constitui- se aqui em “Ser” que por contínua luta deseja ocupar seu lugar de fala discursiva, protagonista de seus saberes que lhe arma de poder.

Entendendo poder por ação sustentado em um saber produzido como verdade que provoca consequências materiais. Para Foucault:

O fundamental da análise é que saber e poder se aplicam mutuamente, não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder. Todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação de saber. (FOUCAULT 1979, P. XXIII In.: CARNEIRO, 2005, p. 58)

O filósofo não pretende uma teoria sobre o conceito de poder, mas uma analítica de suas práticas e interações sociais em nossa sociedade. Para isso demonstra que o poder se exerce nas relações sociais de forma contínua, partindo de todos os lados, sem se fixar, em instituições ou grupos, para Foucault “o poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação” (FOUCAULT, 2016, p. 274). Para tanto será necessário buscar nas práticas, como o poder está engendrado, pois, “Onde há poder, ele se exerce.”, aprofundando essa afirmativa o autor diz: “Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe

41

A condição de existência da verdade, o discurso, um ato de comunicar saberes que atravessam o ser, submete e instrumentaliza para submeter, confere direito e legitima distinções. A proposta de ler os discursos com a consciência de seus usos em uma análise critica impõem a consciência da produção de um discurso próprio.

ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui.”42 (FOUCAULT, 2016, p.138). Neste momento de reflexão busca entender como o poder se exerce sobre quem não o possui - quem é esse? Que não possui condição de discursos próprios para imposição de força de verdade para ocupar espaço de poder e como em determinadas circunstâncias grupos de disputa são submetidos a um estado de negação do próprio poder de reação e resistência.43.

Fotografia 5. Família removida em 1967 para Restinga Documentario Restinga, 50 anos: o primeiro dia. Por: Aline Custódio

Gaucha ZH, 1º de dezembro de 2017 (You Tube)

O poder se legitima sustentado por um saber construído a partir de desdobramentos de regimes de verdades que forma o saber que sustenta uma estratégia de poder. Por saber Foucault define:

A esse conjunto de elementos, formados de maneira regular por uma prática discursiva e indispensáveis à constituição de uma ciência, apesar de não se destinarem necessariamente a lhe dar lugar, pode-se chamar saber. Um saber é aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva que se encontra assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não um status científico (...); um saber é, também, o espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso (...); um saber é também o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam (...); finalmente, um saber se define por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso (...). Há saberes que são independentes das ciências (que não são nem seu esboço histórico, nem o avesso vivido); mas não há saber sem uma prática discursiva definida, e toda prática discursiva pode definir-se pelo saber que ela forma. (FOUCAULT, 2008, p. 204-205)

São relacionados os diversos discursos e suas aplicações de saberes onde encontramos a condição de seu engendramento de poder ou da submissão a este. Afirma Foucault sobre a inconstância do processo:

As ‘distribuições de poder’, e as ‘apropriações de saber’ não representam mais do que cortes instantâneos em processos, seja de reforço acumulado do elemento mais forte, seja de inversão da relação, seja de aumento instantâneo dos dois termos. As

42

Grifo da pesquisadora 43

Aqui Mbembe nos ajudará com seu conceito de Necropolítica em diálogo com o conceito de biopoder de Foucault que será discutido nas próximas páginas.

relações de poder-saber não são formas dadas de repartição, são ‘matrizes de transformações’. (FOUCAULT. In.: CARNEIRO, 2005, p.32)

Entretanto, é do jogo do poder as constantes rachaduras dos muros normatizantes. Assim, questionar o assujeitamento de submissão a condição desumana e a definição um “não-sujeito” um “Outro” estranho e passível de exclusão44, ali há a transgressão da ordem em resistência, que gemina no desejo de “Ser”, assim como afirma o filosofo, “Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercê-lo através da produção da verdade.” (FOUCAULT, 2016, 179-180). O processo de exclusão e assujeitamento produzido por regimes de verdade chega pelo discurso que atravessa e condiciona, mas também estabelece suas diretrizes de libertação quando o subalterno supera seu condicionamento e pelas frestas do poder domina as ferramentas discursivas produzindo a inversão em ação da imposição de sua verdade, um saber transgressor. Sobre exercício de poder Foucault afirma:

O exercício do poder não é simplesmente uma relação entre "parceiros" individuais ou coletivos; é um modo de ação de alguns sobre outros. O que quer dizer, certamente, que não há algo como o "poder" ou "do poder" que existiria globalmente, maciçamente ou em estado difuso, concentrado ou distribuído: só há poder exercido por “uns” sobre os "outros"; o poder só existe em ato, mesmo que, é claro, se inscreva num campo de possibilidade esparso que se apoia sobre estruturas permanentes. (FOUCAULT, 1995, p.242)

Até o momento dialoguei com Foucault buscando as ferramentas instrumentais para análise dos diversos acontecimentos que proporcionaram o surgimento do bairro Restinga, objeto de estudo que deve estar inscrito no mundo também pelas definições dos sujeitos que lhe dão existência orgânica45. Passamos agora a perceber os ajustes das lentes pelas quais estarei fazendo a leitura das relações de poder.

1.3 Por que Raça e Racialismo e não Classe? – Conceitos para leitura das relações de