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9 – As Perspectivas étnico-raciais nas Ações Afirmativas no Brasil

1. A construção dos estereótipos sociais: o racismo brasileiro

Os indígenas, primeiros moradores do território nacional, foram violentados, explorados, escravizados e mortos pelos portugueses, além de passarem pelo sofrimento de “doenças e castigos disciplinares que destruíram toda uma sociobiodiver- sidade e, consequentemente, dois terços da população original nas décadas imediatamente após a conquista”.5

Isso não implicou em aceitação da violência contra eles, pois sempre resistiram por meio de fugas e ataques ao seu opressor. Embora a elite branca colonial que representava o Estado Nacional português – mercantilista-capitalista, dentro do território brasileiro – continuasse controlando as relações sociais, principalmente as de caráter produtivo, não encontrava facilidades para sustentar esse processo, já que precisava man- ter sempre a vigilância para proteger os seus bens e sua vida.

Nesse contexto, outro grupo social também foi submetido à violência, expropriação e escravidão: diversas nações afri- canas, aquelas que tiveram seus povos retirados de seu conti- nente, de suas tribos e reinos submetidos à diáspora forçada e tratados como mercadoria fragmentada. Porém, também, sem- pre resistiram à escravização. Sua resistência ocorria por meio 5 FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo:

de fugas individuais e coletivas, estruturando os Quilombos no território brasileiro. Nunca houve passividade do povo negro em relação ao colonizador branco europeu. Como afirma Silvia Federici:

A violência foi a principal alavanca, o principal poder econômico no processo de acumulação primitiva, porque o desenvolvimento capitalista exigiu um imenso salto na riqueza apropriada pela classe dominante europeia e no número de trabalhadores colocado sob o seu comando. [...] “trabalho vivo”, na forma de seres humanos postos à disposição para sua exploração - colocada em prática numa escala nunca antes igualada na história.6

O trabalho forçado e a própria escravidão sustentavam a exploração capitalista, principalmente na América, mas tam- bém na própria Europa, nos séculos XVI e XVII, embora fosse limitada.7

Essa realidade, no Brasil, era permeada por uma filosofia europeia colonizadora que justificava a exploração, ou seja, negava que os indígenas e africanos tivessem a capacidade de pensar de modo autônomo; afirmavam existir uma inferiori- dade intrínseca, não respeitando os limites de identidade, de- sumanizando os corpos, fazendo com que os sujeitos perdes- sem o direito sobre seus próprios corpos, como analisa Achille Mbembe:

De fato, a condição de escravo resulta de uma tripla perda: perda de um lar, perda de direitos sobre seu corpo e perda do estatuto político. Essa tripla perda equivale a uma dominação absoluta, uma alienação de nascença e uma morte social.8

Assim o racismo foi construído no Brasil, através da ex- propriação da força de trabalho e dos corpos. Determinou tam- 6 FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa, p.121.

7 Ibid., p. 122.

bém a racionalidade destes grupos como inferior, portanto ca- bia-lhes o trabalho forçado, o trabalho pesado, a condição de miséria, a subserviência e a morte.

Viviam em uma borda social, a qual tornou-se um lugar do não-ser, um território no qual o sujeito não se entendia como ser político. E, como afirma Almeida, “o fato é que a noção de raça ainda é um fator político importante utilizado para natura- lizar desigualdades e legitimar a segregação e o genocídio de grupos sociologicamente considerados minoritários”.9

O racismo origina-se dentro da própria estrutura social, política e econômica e se manifesta concretamente como uma extrema desigualdade de cunho econômico, jurídico e político, não sendo, portanto, puramente ideológico e individual.

No século XIX, desenvolveu-se o “racismo científico”, com respaldo da ciência. Giralda Seyferth salienta:

No âmbito de uma “ciência das raças” produzida por an- tropólogos, psicólogos, sociólogos, ensaístas, filósofos etc., seu dogma afirmava a desigualdade das raças humanas e a superioridade absoluta da raça branca sobre todas as outras. Em diferentes períodos da história brasileira, podemos identificar esta construção. Racismo é palavra surgida na década de 1930, segundo Banton (1977), para identificar um tipo de doutrina que, em essência, afirma que a raça determina a cultura.10

Outra forma assumida pelo racismo brasileiro, começan- do no Segundo Império (1840-1889), foi o processo de bran- queamento através da miscigenação com o imigrante europeu. Seyferth explica: “também neste nosso país tropical se mani- festou a ‘vocação prática’ do racismo para planejar a nação: 9 ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. Feminismos Plurais. São Paulo: Sueli Car- neiro; Pólen, 2019, p. 31.

10 SEYFERTH, Giralda. A invenção da raça e o poder discricionário dos estereótipos. Comu-

nicação apresentada na mesa redonda “Racismo e Identidade Social”, 45ª Reunião Anual da SBPC, Universidade Federal de Pernambuco, 1993, p. 178.

um Brasil moderno, branqueado através do amplo incentivo à imigração europeia”.11 Essa proposta entendia que, entre 50 e

100 anos no Brasil, não haveria mais negros. Atualmente, re- presentam 56,2% da população brasileira.12 Seyferth ainda afir-

ma que a suposta:

Ausência de preconceito serve como explicação para a mestiçagem, a suavidade do regime escravista brasileiro, a aceitação de elementos das culturas negras e indígenas como parte integrante da “cultura nacional”, enfim, o “milagre” da democracia racial que pode anular as barreiras de cor (para usar uma expressão consagrada em muitos estudos sobre as relações raciais no Brasil), permitindo a mobilidade social ascendente, sobretudo para os mestiços mais claros.13

Gilberto Freyre, em sua obra Casa Grande e Senzala, apre- sentou pela primeira vez a concepção da democracia racial. De- monstrou que o Brasil se estruturou em termos de população a partir da miscigenação entre as raças indígena, negra e branca.

Para Freyre seria incongruente distinguir quem é negro, branco ou indígena, entendendo, assim, uma integração entre essas raças, consequentemente, não haveria conflito entre as mesmas nem diferenças étnicas ou sociais. Porém, tal mito cor- roborou a sustentação das diferenças raciais:

Ele obscurece as enormes disparidades entre ser branco e ser negro, naturalizando as diferenças sociais e negando o racismo no país, além de impedir a contestação ao status quo de desigualdade e de perseguição e a realização de políticas públicas e privadas de combate ao racismo e de todas as formas de desigualação injustas no país.14

11 Ibid., p. 179.

12 IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; (PNAD), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/po- pulacao/18319-cor-ou-raca.html#:~:text=De%20acordo%20com%20dados%20da,1%25%20 como%20amarelos%20ou%20ind%C3%ADgenas. Acesso em: 1 ag. 2020.

13 SEYFERTH, Giralda. A invenção da raça e o poder discricionário dos estereótipos, p. 190.

O Mito da Democracia Racial não se sustenta, principal- mente quando lemos ou ouvimos:

Termos categóricos como negro, preto, crioulo, mulato, baiano e outros referidos à cor da pele (ou à raça) têm, em quase todas as situações sociais, caráter depreciativo, discriminatório, mesmo quando mascarados pela polidez implícita no uso da expressão “pessoa de cor”.15

Esse mito da democracia se desmantela quando analisamos que na sociedade brasileira o lugar determinado para os não brancos é a cozinha, a faxina, o elevador de serviço, a descarga de mercadorias pesadas, dentre outros. Tais processos come- çaram a ser modificados pela ação da sociedade civil organi- zada, pressionando o próprio Estado. Este atuou por meio da implementação de ações afirmativas que visavam proporcionar igualdade de oportunidades para os grupos sociais que sofrem discriminação ou são historicamente excluídos.

No entanto, é necessário notar que ações afirmativas ou dis- criminação positiva não acabam com o racismo, uma vez que, como vimos, é estrutural. Mas torna real o princípio da igual- dade, através de “um conjunto de políticas compensatórias e de valorização de identidades coletivas vitimizadas por alguma forma de estigma”.16

2. As Ações Afirmativas no Brasil contemporâneo