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A Construção Mítica por trás do Jubileu

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4.1 DIMENSÃO MITOLÓGICA

4.1.1 A Construção Mítica por trás do Jubileu

Conforme discutido no capítulo dois, quando da aplicação da análise histórico- traditiva às tradições jubilares encontradas na Bíblia, dispostas em normatizações do Antigo Testamento, encontramos o chamado ano do Jubileu que, de acordo com o registro de Levítico 25, deveria englobar as tradições jubilares anteriores, a saber, o descanso sabático da terra ou o ano sabático (v.1-7), o perdão das dívidas e a proibição da cobrança de juros (v.35-38) e a libertação dos escravos (v. 39-55). Neste ano, o qüinquagésimo, em função da multiplicação de sete anos sabáticos vezes sete ± o número que simboliza a perfeição de Deus na numerologia judaica ± deveria ocorrer uma série de mudanças de cunho social.

É interessante resgatar agora, o conceito do Jubileu discutido anteriormente, que LGHQWLILFDHVWHDFRQWHFLPHQWRDSDUWLUGRWRTXHGRµ\REHO¶LVWRpRDQRMXELODULQLFLD RXpSURFODPDGR FRPRWRTXHGRµFKLIUHGRFDUQHLUR¶RµEHUUDQWH¶GH'HXV9LPRV que o ano do Jubileu era uma determinação sumária para o povo de Israel, uma nação que anteriormente sofrera a dura experiência da escravidão e do exílio interno e externo.

Diante da necessidade e do desafio da reconstrução da identidade social e religiosa, o povo viu-VH GHVVH PRGR µREULJDGR¶ D FRQVWUXLU UHODWRV PtWLFos que dessem

fundamento ao momento histórico pelo qual atravessava. Segundo o meu MXOJDPHQWRRTXHDEDOL]DWRGDDFRQVWUXomRGHVWDVWUDGLo}HVpRµPLWRGDFULDomR¶ conforme apresentado no livro do Gênesis (cap. 1-2). A classificação desse texto como um relato mítico é uma opção hermenêutica que adota o mito como categoria de análise19, buscando a possível, embora difícil, aproximação entre texto estruturado miticamente (mito) e textos bíblicos. E caminhando um pouco mais, tomando textos bíblicos como míticos. Aqui também minha tentativa se dá em uma perspectiva de análise histórico-crítica e fenomenológica. Concordo nessa direção, com o pensamento de Haroldo Reimer (2009, p. 19-20), quando afirma que

mito é um relato de um acontecimento originário, no qual os deuses (ou heróis fundantes) agem e cuja finalidade é dar sentido a uma realidade significativa (a atualidade de quem constrói o mito e de quem, por meio do ULWRVHDSURSULDHVHVXEPHWHDHVWHFRQWH~GRFRPRµYHUGDGHLUR¶ 

No texto de Gênesis nós lemos (Gn. 2,2- TXH³'HXVFRQFOXLXQRVpWLPRGLDDREUD que fizera e no sétimo dia descansou, depois de toda a obra que fizera. Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nele descansou depois de toda a sua obra GH FULDomR´ Entendo que o relato do Gênesis, ao mesmo tempo em que surgiu a partir do momento histórico pelo qual o povo israelita passava, defendendo sua ocorrência no período pós-exílico, consolidou-se como um texto fundante para o estabelecimento das tradições jubilares do Antigo Testamento, mesmo as anteriores à sua formulação. Mais uma vez sigo Reimer (2006, p. 25), ao apontar

o nascedouro de Gênesis 1 no contexto do exílio babilônico. Essa poesia genealógica do cosmos pode ter incorporado algumas tradições anteriores (Jr 31,35) e sofrido algumas adaptações quando veio a fazer parte da Torá ou Pentateuco, o que provavelmente ocorreu durante a época persa, em torno do ano 400 a.C. O texto base, portanto, brotou da experiência de israelitas no exílio, sofrendo posteriormente adaptações para servir de introdução geral a toda a obra da Torá (Pentateuco).

Muito embora, devido à moderna divisão capitular da Bíblia, o texto do descanso pertença ao capítulo 2 e não ao capítulo 1 do Gênesis, ele seguramente faz parte do relato mítico estruturado acerca da criação. Eis a estrutura literária de Gênesis 120:

Introdução Geral: v.1-2 1º Dia

Luz (v. 1-5) 2º Dia

Separação: águas e firmamento (v. 6-7) 3º Dia

Terra seca, água e plantas (verde) (v. 9-13) bom! (v. 12)

4º Dia

LUZEIROS no firmamento (v. 14-19) Îbom! (v.18)

5º Dia

Animais marinhos, anfíbios e aves (v. 20-23)

- bênção para animais: ser fecundos, multiplicar-se, encher águas e terra Îbom! (v. 21) 6º Dia $QLPDLVYLYHQWHVµVDtGRV¶GDWHUUD Y-31) - selvagens (v. 25) - domésticos (v. 25) - répteis terrestres (v. 25) Îbom! (v. 25) HUMANOS (v. 26-28)

- imagem e semelhança do criador (v. 26)

- domínio sobre: peixes, aves, animais domésticos, terra e répteis terrestres - criação do Adam: homem e mulher (simultaneamente) (v. 27)

- bênção aos humanos (v. 28) - fecundidade (multiplicar e encher) - sujeitar a terra

- dominar (peixes, aves, répteis)

- tipo de alimentação: vegetais (v. 29) - alimentação dos animais: vegetais (v. 30) Î - visão de conjunto: muito bom (v. 31) 7º Dia

SHABAT (2,1-3)

bênção (barak) e santificação (qadash) de um tempo

&RQFOXVmRµHVWDpDJrQHVH¶ toledot) de céus e terra (2,4a)

Isso explica o fato do número referência constante nessas tradições ser o mesmo utilizado neste texto para apresentar o modus operandi de Deus na obra da criação do mundo. O número sete, na cultura judaica, simboliza, além da perfeição, a figura do próprio Deus. Se o mundo foi criado em seis dias e no sétimo, a própria divindade descansou, assim também deveria ocorrer entre o povo que a tinha como o seu Deus. Dever-se-ia trabalhar seis dias, tendo o dia de descanso na contagem de sete. A partir do estabelecimento desta cultura, e com o passar do tempo, a idéia do descanso amadureceu para outras esferas e interpretações. A terra também necessitava descansar a cada sete anos, os escravos deveriam ser alforriados a cada sete anos e as dívidas deveriam ser anistiadas a cada sete anos. E é a evolução deste entendimento, reforçado pela experiência de aproximadamente 50 anos de exílio, que culminará com o estabelecimento do ano do Jubileu.

Exatamente por isso este ano configurava-se como uma profunda experiência da manifestação da graça e misericórdia de Deus. Esta se tornava a realidade a cada sete anos, e principalmente, esta seria a única realidade aceitável no qüinquagésimo ano de contagem, o Jubileu. Este seria um ano santo para o povo de Israel. Essa leitura coaduna-se com a concepção de Malinowski (apud REIMER, 2009, p. 20) acerca da realidade mítica:

[...] o mito, tal como encontramos numa comunidade [...] quer dizer, na sua forma primitiva, não é unicamente uma história contada, mas uma realidade vivida. Não é a natureza de uma ficção, tal como lemos hoje em dia num romance, mas é uma realidade vivida, que se crê ter acontecido nos termos recuados, e que continua a influenciar o mundo, e os destinos humanos.

A tradição do Jubileu é montada após a dura realidade vivida com a experiência do exílio. Ao criar o relato mítico da criação, culminando com o descanso sabático, o SRYR MXGHX SUHWHQGLDGHVFRUWLQDU D SRVVLELOLGDGH GH µUHFULDomR¶ GR VHXPXQGR HP um momento marcante de sua trajetória. E tal coisa seria alcançada mediante a benevolência e compaixão divinas.

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