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Transgressões ou Dívidas?

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3.1 O CONTEÚDO DE MATEUS 6,12.14-15

3.1.1 Transgressões ou Dívidas?

Depois de apontar o sentido do conteúdo expresso no texto de Mateus 6,12, mas antes de entrar na análise propriamente dita das expressões ofeilémata e afêkamen, considero importante indicar duas linhas de pensamento presentes ao longo da História, mediante meu referencial hermenêutico, com relação à interpretação e aplicação do perdão das dívidas a partir do Pai Nosso.

O principal questionamento que comumente se levanta, como faço também aqui, é quanto à natureza das dívidas referidas no Pai Nosso. Que dívidas são essas? O texto fala apenas de pecado, ofensa, transgressão, ou fala também de dívida financeira, monetária?

O primeiro grupo apresentado esboça a tendência de não aplicar um sentido propriamente pecuniário aos seus comentários no que tange tal petição. Como se

poderá atestar, tal linha de pensamento conserva um maior número de anotações, o que manifesta uma extensa tradição subjacente a ela.

Inicio com um dos principais teólogos da História Cristã, Pai da Igreja, ainda no século III. Como demonstrei na crítica textual, Orígenes atestava como leitura original para Mateus 6,12 a construção que continha a expressão ta paraptômata ³DV WUDQVJUHVV}HV´,Vto refletia uma provável tentativa de harmonização com o texto de Lucas e com o texto dos versículos subseqüentes.

Assim como Orígenes, um dos teólogos mais importantes no século XVI, ícone da Reforma Protestante, Martinho Lutero (1995, p. 126), em seu comentário do Pai Nosso, aponta também claramente para o sentido de transgressão:

Ao formular particularmente esta petição desta maneira, vinculando o perdão do pecado ao nosso perdão, [Jesus] quis comprometer os cristãos a se amarem entre si e que para eles o primeiro e mais importante artigo depois da fé e do perdão recebido fosse: perdoem igualmente e sem cessar ao próximo, para que, como nós vivemos perante ele na fé, também vivamos perante o próximo com amor; que não incomodemos nem ofendamos um ao outro, mas pensemos em perdoar sempre, mesmo que tenhamos sido ofendidos (o que, afinal de contas, necessariamente acontece muitas vezes nesta vida), e saibamos que, caso contrário, também a nós não estará perdoado. Pois onde a raiva e o rancor estão no caminho, eles botam a perder toda a oração, de modo a não se poder orar nem desejar nenhum dos pontos anteriores tampouco.

Na seqüência temos ainda Karl Barth (2006, p. 59), teólogo protestante do século XX. Também para ele as dívidas oradas por Jesus no Pai Nosso são pecados dos quais precisamos ser perdoados tão somente no âmbito espiritual:

,VWR TXH QyV WUDGX]LPRV QR µ3DL 1RVVR¶ µQRV RIIHQVHV¶ HP IUDQFrV  SRU µQRVVDVRIHQVDV¶VLJQLILFDOLWHUDOPHQWHQRVVDVIDOWDVGtYLGDVLVWRpLVWRHP que estamos em falta, em nossa relação com Deus, nisto que Lhe devemos. Temos uma dívida com Ele.

E quanto à segunda parte da petição, para ele, estamos diante de transgressões que precisam ser perdoadas, tomando

nosso devedor como se ele não nos tivesse feito nada errado. Não lhe imputar a falta, não usar de rigor nesta culpabilidade, na qual ele se acha, onde ele mesmo se vê. Ao contrário, recomeçar com ele numa página em branco. Dar-lhe uma nova oportunidade. (BARTH, 2006, p.61).

Uma quarta interpretação convergente com as anteriores é a de William Hendriksen que tenta esclarecer o sentido próprio da petição pelo perdão das dívidas enquanto perdão de ofensas. Defende que, para sermos perdoados por nossas transgressões ³QHFHVVLWDPRVLJXDOPHQWHFRQFHGHUSHUGmRGHIRUPD DOHJUHJHQHURVDHGHILQLWLYD´ (HENDRIKSEN, 2001, p.472). Esta seria a mais apropriada interpretação para o texto de Mateus 6,12 e Lucas 11,4:

Por causa do sangue de Cristo, por favor, não nos imputes, a nós míseros pecadores, as nossas transgressões nem a maldade que se acha entranhada em nosso coração, assim como sentimos, pelo testemunho de tua graça em nós, o firme propósito de perdoar de coração o nosso próximo. (HENDRIKSEN, 2001, p.472).

De outro lado, temos, entretanto, um leque de autores que, não descartando o sentido empregado pelo grupo anterior, toma as dívidas referidas no Pai Nosso inicialmente em seu aspecto econômico-social.

Esta opção interpretativa do texto toma como referência a redação presente no evangelho de Mateus e empresta à expressmR µGtYLGD¶ R VHQWLGR SHFXQLiULR ,VVR ocorre justamente mediante a palavra que é utilizada para se referir às dívidas, conforme exposto anteriormente. Esta é a linha de entendimento assumida por Reimer e Richter Reimer:

Os termos gregos e aramaicos são claros e evidenciam o conteúdo das dívidas. Na versão de Mateus encontram-se apenas as duas palavras gregas ofeilémata/³GtYLGDV´ H ofeilétais/³GHYHGRUHV´ ³GHYHGRUDV´ (VVH

termo é comumente usado para caracterizar dívidas monetárias, pecuniárias, de ordem econômica. Nesse sentido, os termos também aparecem na parábola do credor incompassivo (Mateus 18,23-25), que elucida o Pai-Nosso. A temática e a realidade da dívida econômica, oriunda de empréstimos, nos colocam o pano de fundo da oração de Jesus. (REIMER; RICHTER REIMER, 1999, p. 129).

6HJXLQGR HVWH MXt]R D H[SUHVVmR µGtYLGDV¶ QR WH[WR PDWHDQR VXJHUH XP endividamento pecuniário. Se a tomamos com este sentido a discussão em torno da expressão ganha contornos diferenciados, visto que a orientação pela qual devemos perdoar as transgressões e pecados dos outros pode ser configurada em uma realidade não só espiritual/moral, mas também sócio-econômica.

Essa identificação agrega um valor comunitário destacado, não totalmente percebido quando tomamos as transgressões somente em seu aspecto moral. Isto porque, ainda que nesta maneira de pensar seja contemplada uma preocupação no âmbito das relações sociais, ela não é concebida a partir de um referencial de coletividade. Será um problema individual com conseqüências coletivas, mas não um problema coletivo que atinge as individualidades. A questão da dívida econômica é um problema que tem como princípio gerador a estrutura social que nos envolve e não pode, por esta razão, ser tomado apenas em sua vertente individual.

Uma interpretação nesta linha de pensamento é a de Paulo Lockmann. Ele acredita que o que necessita ser perdoado na perspectiva das relações humanas são precisamente as dívidas contraídas como fruto de um sistema político-econômico que desfavorece a igualdade social. Para Lockmann (1990, p.13), esta situação está criada com a chamada dívida externa presente nos países do Terceiro Mundo, ou países em desenvolvimento, visto que a mesma

tem tornado milhões de trabalhadores em verdadeiros escravos. Temos de fabricar dólar com o sangue e o suor dos trabalhadores. Para pagar uma dívida de que nem vimos o dinheiro, e que é impagável, pois seus juros

tornam-se no meio pelo qual a dívida permanece sendo cobrada, e assim mantém-se a dominação. Hoje, ao orarmos o pai-nosso, não devemos pensar tão-somente no alívio que precisamos para nossa consciência culpada, mas sim nas formas de encontrar alívio para os trabalhadores que, esmagados pela dívida externa, não alcançam o mínimo de condições de saúde, educação e alimentação para si e suas famílias. Dívida assim tem que ser cancelada.

Num primeiro momento, muitos podem ficar incomodados ou desconfortáveis com esta perspectiva, ou com esta interpretação, mas Leif Vaage (1992, p.118), nos lembra que a própria prática da oração representa uma forma de atividade econômica, isto é,

um modo de pedir e de reclamar. Pratica-se a oração, primeiro, para conseguir algum benefício particular. No caso bíblico, a oração pertence ao regulamento interno do contrato (ou seja, o pacto) de Deus para com o seu povo no tocante aos serviços recíprocos e o intercâmbio mútuo.

E ele diz mais. Afirma que a intenção principal de Jesus era propor que esta questão do perdão das dívidas financeiras está no centro da preocupação de Deus para conosco:

1DKRUDGHRUDU-HVXVWRUQDDOYRGHVXD³UHQRYDomROLW~UJLFD´RSUREOHPD do soldo que não é suficiente e da dívida que não pode ser paga e propõe TXHDSUHRFXSDomRSULQFLSDOGH'HXVSHORPHQRVHPUHODomRD³QyV´VHMD D UHWLILFDomR LPHGLDWD GHVWHV SUREOHPDV 3RU LVVR VH GL] ³R SmR QRVVR GH cada dia dá-QRVKRMH´  H³SHUGRD-nos as nossas dívidas como também nós perdoamos aos nossos devedores´   9$$*(S 

Temos, portanto, duas vertentes que se estabelecem a partir das maneiras como SRGHPRVLQWHUSUHWDURµSHUGmRGDVGtYLGDV¶SUHVHQWHQR3DL1RVVR'HVVDPDQHLUDD seqüência de minha análise concentrar-se-á nos termos componentes dos versos 12 e 15 de Mateus, bem como em seus textos paralelos em Lucas e Marcos, a fim de postularmos a segunda linha de pensamento como preferível à primeira.

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