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A construção da Memória Imigrante na Manutenção das Práticas Religiosas

CAPÍTULO II – CAMINHOS CONCEITUAIS DAS PRÁTICAS RELIGIOSAS

2.4 A construção da Memória Imigrante na Manutenção das Práticas Religiosas

Na intenção de percorrer os caminhos que levaram os imigrantes de Santa Maria a manterem ou não suas práticas religiosas, eu precisei compreender as operações realizadas

pela memória desses sujeitos. Embora não seja enfocada essa literatura de forma exaustiva, pretendi demonstrar os processos pelos quais a memória foi construída, entendendo sua defesa como um construtor de identidade.

Ancorei-me em Halbwachs para elaborar meu entendimento sobre memória, pois, para o autor, "cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, [...] este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e (...) este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios" (1990, p. 51).

O conceito de memória, segundo Halbwachs, pode dividir-se em duas noções: a memória individual e a memória coletiva. Ambas relacionam-se e interferem entre si. A memória individual seria aquela que toda pessoa possui, que faz referência ao que ela viveu ao longo de sua vida, ou seja, faz referência às lembranças individuais. Já a memória coletiva:

Envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas. Ela evolui segundo suas leis, e se algumas lembranças individuais penetram algumas vezes nela, mudam de figura assim que sejam recolocadas num conjunto que não é mais uma consciência pessoal (HALBWACHS, 1990, p. 53).

Conforme o autor, a memória coletiva ocupa-se das memórias individuais, mas acaba por desprender-se delas, formando uma memória do grupo que exerce uma coerção sobre ele, na mesma perspectiva de Durkheim (1974). No entanto, entendo que a memória, a partir de Halbwachs (1990), é uma lembrança do passado realizada no presente, o que lhe confere um

status de reelaboração contínua.

Somente a partir do conteúdo que compõe as memórias do grupo pesquisado, pude interpretar o que há de significativo para ele e que pudesse ser tomado como sinais diacríticos na composição de sua identidade. Expresso em outras palavras, as memórias não se referem a uma realidade igual ao evento ocorrido, mas uma construtora da identidade do grupo.

Por memória coletiva, Halbwachs (Op.Cit.) entende a compreensão de quadros sociais de grupos que carregam lembranças, imagens, sentimentos, valores comuns, experiências compartilhadas por determinado grupo. A memória individual é vista como uma leitura de uma parte da memória coletiva, tendo menor peso em relação à memória coletiva.

Neste sentido, ―é tarefa do cientista social procurar esses vínculos de afinidades eletivas entre fenômenos distanciados no tempo‖ (BOSI, 2003, p. 31), sendo assim, reconhecer, nas narrativas, os aspectos que podem ser significativos e persistentes no tempo também fez parte dessa tarefa, na qual a memória pode ser enquadrada.

Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, ‗descola‘ estas últimas, ocupando

o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (BOSI, 2003, p. 36).

A partir da ―memória coletiva‖, tentei desvelar a continuidade e/ou reformulação das ―tradições‖, costumes ou habitus dos imigrantes japoneses, interpretando as narrativas de cada interlocutor. Dei importância não somente ao sentido das palavras (ideias ―escondidas‖ nas entrelinhas e silêncios), mas também às frequências das palavras e como contavam suas experiências com relação às práticas religiosas.

Giddens entende que ―a memória pode ser um modo de descrever a cognocitividade de agentes humanos. [...] A consciência discursiva implica as formas da recordação que o ator é capaz de expressar verbalmente‖ (2003, p. 56).

Nesse contexto, pude perceber, também, que algumas memórias são silenciadas – diferentemente de esquecidas. Há aquelas que são guardadas por algum motivo, vergonha, sofrimento, sobre esses silêncios ou lacunas nas narrativas das lembranças ou sobre a seleção das memórias contáveis, dizíveis, Pollak pondera que: ―A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade (...)‖ (1989, p. 08).

A positivação do passado é percebida quando o relato inicia na superação, no heroísmo em enfrentar as dificuldades que existiram, seja durante a viagem ao Brasil ou na chegada dos imigrantes e superando obstáculos culturais, as quais não são descritas.

Em muitos momentos, observei que solicitavam que desligasse o gravador, pois não se sentiam à vontade para registrar algumas memórias, visto que havia a possibilidade de ofender outros imigrantes, mesmo que falecidos. Assim, percebi que, também entre os japoneses, poderia se falar de um ―enquadramento da memória‖. Para Pollak (1989):

O trabalho de enquadramento da memória se alimenta do material fornecido pela história. Esse material pode sem dúvida ser interpretado e combinado a um sem- número de referências associadas; guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras sociais, mas também de modificá-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em função dos combates do presente e do futuro. [...] O trabalho permanente de reinterpretação do passado é contido por uma exigência de credibilidade que depende da coerência dos discursos sucessivos (1989, p. 10).

A tarefa de costurar as memórias dos sujeitos e ligar esses recortes da ―cognocitividade‖ de Giddens (2003) ao coletivo, com a intenção de salvaguardar e garantir a transmissão desses conhecimentos do passado é o papel do presente em relação ao futuro e, está sendo fonte de pesquisas em diversas áreas do conhecimento, como a antropologia por se tratar dos traços diacríticos que compõem a identidade do grupo.

Com relação ao grupo de meu estudo, os sujeitos são imigrantes moradores na cidade de Santa Maria, contam suas recordações sobre a família e as práticas religiosas especificamente, e, em meio a suas lembranças, recordam o trabalho na agricultura, as dificuldades na chegada ao Brasil, a época de sofrimento e o processo de superação. Evidentemente, quando se trata de história oral é impossível evitar o encontro com as análises e as críticas sobre a legitimidade das fontes consultadas.

De fato, alguns autores não desconsideram a parcialidade da fonte oral, no entanto, Joutard (1999) revida as críticas nesse sentido quando afirma que o verdadeiro para um sujeito o é com maior razão para uma coletividade, cuja capacidade para elaborar sua história oficial é muito forte.

Assim sendo, passo a relatar (no terceiro capítulo) as memórias contadas durante as entrevistas, como as visitas ocorreram, a convivência, as minhas percepções sobre as conversas e as atitudes dos entrevistados/colaboradores.