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CAPÍTULO II – CAMINHOS CONCEITUAIS DAS PRÁTICAS RELIGIOSAS

2.5 Religião e Práticas Religiosas Japonesas

2.5.3 As faces do Budismo

Para Rafacho (2007, p. 52): ―A cultura japonesa é repleta de rituais e atividades que transmitem toda a dedicação e riqueza de suas crenças‖. Aludindo, ademais, ao fato de que os jardins japoneses possuem simbolismos, a arte dos arranjos florais, a cerimônia do chá entre várias outras, as quais, ouso acrescentar a religiosidade doméstica.

Para poder inferir a existência de uma religiosidade doméstica, tive que percorrer um caminho teórico sobre o tema das religiões japonesas tradicionais e as Novas Religiões Japonesas (NRJ).

A ressurreição das ―religiões japonesas‖ aconteceu na década de 1950, ―no seio da comunidade nikkei‖. Mori afirma que essa ressurreição ocorreu em consequência do sentimento de ―perda de sua pátria diante da derrota do Japão na II Guerra Mundial‖ (MORI, 1998, p. 57). Ele continua:

O desmoronamento da estrutura social simbólica sustentada pelo ‘simbolismo da veneração do imperador‘, a fermentação da ‗consciência de pseudofamília‘ que foi configurando o pensamento de residência permanente e definitiva neste país, e concretamente, com a vinda para o Brasil de novas seitas religiosas do Japão, e o culto ao antepassado , no lar, que tem muito haver com estas religiões. Todos esses aspectos têm direcionamento comum em abarcar o sistema de crença japonesa reinterpretado como sistema de símbolos representativos da niponicidade dos ―japoneses que residem definitivamente no Brasil‖ (1998, p. 57 Grifo meu).

Alguns conceitos parecem-me importantes para apresentar a religião de meus interlocutores, entres eles estão: o ―Budismo tradicional‖, o ―Budismo de imigração‖, o ―Budismo étnico‖ e o ―Budismo de conversão‖; que ainda possuem subdivisões, mas o tema será abordado somente para fins da compreensão da religiosidade apresentada pelos imigrantes em Santa Maria.

Shoji (2007) salienta que o Budismo, desde as suas origens, demonstrou uma atitude ―inclusivista de outras relgiões‖ e, durante sua expansão, apresentou um sincretismo histórico. ―No contexto japonês, a abordagem mais geral foi de um inclusivismo e mesmo um sincretismo com as religiões nativas, como o Xintoísmo‖ (p. 139). A afirmação de Shoji vem ao encontro dessa dissertação, pois observa que o Budismo, originalmente, permite ―sincretismos‖ ou inclusivismo de outras escolas, religiões ou culturas.

Shoji (2002 e 2011) aponta características comuns, que me permitem, inicialmente, descrever o grupo de estudo como praticantes de um Budismo étnico, pois é possível vislumbrar aspectos étnico-culturais. Inclusive por Shoji afirmar que o Budismo japonês é ancorado em influências familiares e de culto aos antepassados.

No caso do Budismo japonês é possível identificar aspectos étnicos a partir da religiosidade popular japonesa, que combina elementos do Xintoísmo e da religiosidade familiar chinesa. De uma forma geral, os japoneses nunca incorporaram as doutrinas budistas da reencarnação e sobre o sofrimento que estão presentes nas escrituras budistas mais antigas e que são o ponto de partida para muitos budistas ocidentais (2011, p. 48).

O mesmo autor (2002 e 2011) ainda diferencia os budistas entre ―imigrantes‖ e de ―conversão‖ da seguinte maneira:

O Budismo dos imigrantes teria como principal característica a preservação de uma identidade étnica a partir de rituais e devoções específicas. As principais características do Budismo dos convertidos seriam uma interpretação mais racionalizada do Budismo e uma estreita associação com a meditação, tendo como perfil social característico pessoas educadas e da classe média e alta da sociedade (2002, p. 50).

Mesmo que os dois grupos de budistas, imigrantes e de conversão, venham, por vezes, a utilizar o mesmo espaço, eles têm práticas autônomas e independentes, inclusive, em função da língua no Brasil, visto que os imigrantes realizam suas práticas em língua japonesa e os convertidos são, em sua maioria, ocidentais em busca do conhecimento budista. Tal diferenciação entre convertidos e imigrantes tem, para Shoji (2002), fundamentado em Balmann (2001), ―um tempo curto de duração, já que essa categoria não faria mais sentido

tanto para a segunda geração de imigrantes quanto para a segunda geração de convertidos‖ (SHOJI, 2002, p. 52).

Usarski (2002) também faz referência à divisão ―Budismo de Imigração‖ e ―Budismo de Conversão‖, sendo que esse segundo tem atraído, em especial, os brasileiros. Gonçalves (1990, p.178) refere a atração dos brasileiros pelo Budismo, salienta que é mais comum ver brasileiros e descendentes nipo-brasileiros procurando o Instituto Budista de Estudos Missionários, do que descendentes de japoneses. E também atribui a esses brasileiros as características de pessoas intelectualizadas, normalmente de nível universitário.

Rocha afirma: ―longe dos meios japoneses, desde o começo do século XX, alguns intelectuais brasileiros já se interessavam pelo Budismo por meio de leituras de obras inglesas, francesas, e, posteriormente, americanas‖ (2011, p. 88). A autora também explica a divisão do Budismo no ocidente:

O Budismo no Ocidente é geralmente visto como dividido entre ‗étnico‘ e ‗de conversão‘, Budismo ‗étnico‘ é definido como devocional ou o repositório da identidade cultural do grupo, e Budismo ‘de conversão‘ é caracterizado pela meditação e estudo racional dos sûtra (textos budistas) (Ibid., p. 90).

A divisão entre Budismo étnico e de conversão é mencionada também por Tanaka quando estuda o Budismo japonês nos Estados Unidos: ―os ―budistas étnicos‖ são aqueles que trouxeram o Budismo como parte de sua ―bagagem‖ quando imigraram para os Estados Unidos‖ (2011, p. 37). A mesma premissa de ―trazer na bagagem‖ pode ser traduzida para os budistas étnicos no Brasil, no entanto, vejo como uma definição acadêmica, pois meus interlocutores não se definem como ―budistas étnicos‖. Tanaka (2011) também propõe uma divisão entre ―novo‖ e ―velho‖, referindo-se aos convertidos e aos imigrantes japoneses nos Estados Unidos da América.

Ainda que o Budismo passe por essas subdivisões, existe também o processo contrário, há de se considerar que ele também se reelabora. É Rocha (2001 e 2011) que representa o processo de convivência, dinamismo e de interação dos imigrantes com a sociedade brasileira, com o conceito de crioulização dos rituais Zen no Brasil:

As múltiplas influências que as práticas religiosas dos nikkeis sofreram desde que chegaram ao Brasil, o fato de que muitos deles já se tornaram católicos, juntamente com o recente forte interesse pelo Budismo na sociedade brasileira, deram origem às práticas religiosas ‗crioulizadas‘. Utilizo o conceito de crioulização para enfatizar a ideia de que a identidade não é formada por uma síntese perfeita de duas ou mais culturas, mas emerge de um processo dinâmico de troca e interação. Assim, o conceito de crioulização ilumina as várias maneiras em que os imigrantes japoneses e seus descendentes sobrepõem um ‗vocabulário‘ religioso brasileiro sobre sua ‗gramática‘ budista. Por exemplo, rituais são chamados de ‗missas‘, abade de ‗bispo‘ e fala-se de ‗paraíso‘, ‗inferno‘ e ‗rezar‘ (2011, p. 90).

No entanto, o termo crioulização precisa ser compreendido como um processo em um contexto de continuidade e dinamismo, que abrange as combinações entre o Budismo trazido pelos imigrantes e a religiosidade brasileira. Além disso, praticar duas religiões não é privilégio do nikkei, isso é costumeiro no Japão e, de certa forma, também o é no Brasil, considerando a relação do catolicismo com as crenças afro-brasileiras, sobre as quais não vou me aprofundar.

No Japão, é comum ser budista e xintoísta. Da mesma maneira, para os nikkeis, ser católico não exclui manter suas tradições culturais, que incluem o Budismo. Acredito que, para a maioria dos nikkeis que se converteram ao Catolicismo, o Budismo e o templo budista são ainda vistos como repositórios de antigas tradições culturais japonesas, há muito esquecidas. Como o Butsudan, que contém memórias já nem mesmo identificadas pelos membros da família, o Budismo não é visto somente como uma religião, mas também como um nicho de memórias e tradições ‗esquecidas‘ (Ibid., 93-94).

É de Shoji (2011) o estudo do Budismo nikkeis48, no qual apresenta uma preocupação com a manutenção do Budismo tradicional, aquele que veio na bagagem dos imigrantes em função do desaparecimento da primeira geração e da crescente integração da segunda e terceira geração de japoneses com a sociedade brasileira. Sua afirmação vem ao encontro do presente estudo, pois, em Santa Maria, os imigrantes que praticam uma religiosidade familiar de culto aos antepassados são de primeira geração, correndo o risco das futuras gerações não terem essa prática, sobretudo, porque o Budismo japonês tem, em suas bases, o culto aos antepassados, em âmbito familiar, e pode fornecer subsídios que podem ser utilizados como traços de diferenciação cultural49, ―para uma identificação étnica por meio da valorização da origem e dos laços de parentesco‖ (SHOJI, 2011, p. 69). Assim sendo, os descendentes dos imigrantes podem vivenciar essas práticas religiosas dentro da família, para o autor, essa religiosidade ―derivada de uma vivência como comunidade étnica, pode ser prolongada por diversas gerações‖ (Ibid., p. 69).

É do mesmo autor o termo ―convivência religiosa múltipla‖, atribuindo a conversão ao Cristianismo como tentativa de adaptação, e do sentimento de pertencimento:

Essa prática budista vem ao encontro de uma convivência religiosa múltipla, frequentemente encontrada tanto no Brasil quanto no Japão. Apesar de estar em contraste com o ambiente de recepção na maioria dos países ocidentais, no Japão e no Brasil as religiões assumem constantemente aspectos funcionais e contextuais na vida dos adeptos. Simplificadamente, se no Japão o Xintoísmo é a religião que representa o pertencimento étnico e é usado nas cerimônias de nascimento, no caso, do Brasil o pertencimento nacional ocorreu por meio do batismo católico e, em

48

O termo nikkei, nesse estudo, foi utilizado no singular, porém o Dossiê Temático da Revista REVER 2011 faz uso da palavra sempre no plural.

muitos casos uma identidade nikkeis se deu por intermédio do Budismo. O Budismo tradicional, tanto no Japão quanto no Brasil, é reservado para os rituais funerários e culto aos antepassados da religiosidade familiar (2011, p. 64 Grifo meu).

Há, conforme Mori (1998, p. 57), uma construção de um mundo religioso adequado às necessidades dos japoneses, advindo de uma interpretação e modificação cultural no ―processo da experiência do contato com a cultura distinta‖.

A questão das particularidades da religiosidade dos imigrantes japoneses e seus descendentes compreendida como religiosidade múltipla é encontrada também em Usarski (2002):

Em vários casos particulares pode ser presumida uma atitude multirreligiosa cuja complexidade esta longe de ser representada adequadamente por uma simples cruz em um questionário [no caso das pesquisas quantitativas]. Não há, por exemplo, nenhum recurso que permita avaliar quantas das pessoas que se declararam budistas seguem exclusivamente esta religião ou a seguem em combinação com outras crenças e práticas. É desconhecido também se descendentes japoneses, oficialmente convertidos ao Catolicismo, a outras Igrejas cristãs e a religiões como a Umbanda, têm mantido os preceitos budistas e ainda participam dos ritos tradicionais na intimidade da família (2002, p. 02).

A ideia de uma acomodação e adaptação estratégica das práticas religiosas japonesas, relacionadas ao Budismo, está presente também em Pereira (2008a), que estabelece relação com a invenção das tradições e a memória, aspectos que compõem a identidade do grupo da

Sôka Gakkai, por ele estudado, bem como pretendo fazer a partir das narrativas de meus

interlocutores.

Tendo como base os conceitos dos diferentes Budismos, suas divisões e combinações até aqui apresentadas, interpretei as práticas religiosas de meus interlocutores de modo a tentar compreendê-las. No terceiro e último capítulo, exponho os dados empíricos coletados durante a pesquisa, bem como os métodos utilizados e a trajetória construída nesse caminho.