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As concepções de saúde e de doença como estados absolutos, dentro do modelo biomédico tradicional, estão, actualmente, a ser questionados por algumas razões que passamos a explicitar. Por um lado, a identificação pelo sujeito do seu estado de saúde está impregnada de uma certa subjectividade, na medida em que depende, de certo modo, da maneira como cada um se considera saudável ou doente, em função da sua história de vida, dos seus valores, o que significa que a saúde é um construto individual e também social. Por outro lado, o modelo biomédico neglicenciou, de certa forma, o papel das emoções, das atitudes e das relações interpessoais, enquanto contextos psicológicos determinantes para as alterações dos estados de saúde e para a recuperação da doença.

Actualmente, atribui-se uma importância crescente aos factores sociais, económicos e culturais relacionados com a saúde e a doença. Este alargamento do campo de análise coloca alguns limites epistemológicos ao tradicional modelo biomédico e faz surgir a necessidade de recorrer a modelos mais abrangentes.

Os modelos psicossociais apresentam uma perspectiva mais integradora do indivíduo e do seu meio social, no contexto da saúde e da doença. Deste modo, o centro das atenções deslocou-se do espaço individual para o contexto psicossocial, o que implicou alterações na concepção da saúde e da doença. A Teoria Geral dos Sistemas, proposta por Bertalanffy em 1968, veio dar um contributo decisivo para a revisão das concepções do modelo biomédico (cf. Rosnay, 1977). Com efeito, esta teoria sugere que o ser humano é um conjunto integrado de sistemas, hierarquicamente organizados, onde o indivíduo constitui a célula de base da hierarquia e a sociedade o elemento do topo da hierarquia. As relações tornam-se mais complexas à medida que se ascende da pessoa para a família e para a sociedade. Os conceitos de saúde e de doença estão

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interdependentes desta constituição sistémica na medida em que este modelo é auto- organizado e atribui ao sujeito um estatuto de saúde ou doença pessoal como resultado da influência de um conjunto de sub-sistemas que vão desde a constituição genética ao meio social. A visão sistémica constitui, assim, uma abordagem ecológica em que organismo e meio estão em permanente interacção e interdependência.

Nesta linha de pensamento, a saúde e a doença não são mais do que o equilíbrio dinâmico / biológico entre o Homem e o seu Ambiente, ou seja, o resultado da recíproca acção ecológica entre o indivíduo e o mundo. A saúde é uma adaptação a esse meio e a doença um desajuste ou inadaptação. Portanto, a doença é parte da biologia no sentido lato do termo, ou seja, da ecologia humana, já que resulta do impacto entre o homem e o seu mundo circundante, do desequilíbrio ecológico na adaptação do indivíduo perante a multiplicidade de exigências provenientes do seu exterior e não só. Quer dizer que tanto a doença como a saúde são fenómenos ecológicos, sendo, por conseguinte, indissociáveis.

A saúde é um bem que deveria estar, certamente, ao alcance de todos os indivíduos em geral. Por isso, a Organização Mundial de Saúde estabeleceu o objectivo de saúde para todos no ano 2000 (W.H.O., 1990). A revolução global dos cuidados de Saúde, neste século, que começou oficialmente em Alma Ata, em 1978, ajudará a atingir este objectivo (Velji, 1991). Tal desiderato requer a implementação de adequados programas de Medicina Preventiva e de Saúde Pública, que devem começar o mais precocemente possível, desde a fase do desenvolvimento fetal, e prolongar-se ao longo de toda a vida. Os desafios da Saúde Pré-Natal requerem atitudes, crenças e práticas dos médicos e outros profissionais de saúde mais positivas acerca da prevenção e da avaliação dos factores de risco comportamental dos pacientes. Certos autores consideram, por um lado, indispensável a participação de profissionais de saúde não médicos (v.g., Psicólogos), nos serviços de medicina preventiva (Thier, 1990). Uma integração bem sucedida dos cuidados primários de Saúde Pré-Natal, nos Serviços Preventivos, requer, por seu turno, uma efectiva interacção entre pacientes, médicos e respectivos Serviços e Cuidados de Saúde. A mudança de perspectiva inerente à Medicina Preventiva implica alterações ao nível sócio-cognitivo (atitudes, crenças, expectativas), ao nível da prática médica (Scutchfield, 1989), bem como ao nível do comportamento face à saúde da população em geral. Ora, o comportamento face à saúde, quer em termos pessoais, quer em relação a terceiros, é particularmente relevante ao nível das políticas de saúde pré- natal. A Saúde Pré-Natal constitui, deste modo, um campo interdisciplinar privilegiado, respeitante ao desenvolvimento e integração dos conhecimentos das Ciências Biomédicas

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e das Ciências Sociais, bem como das técnicas relevantes na saúde e na doença, na medida em que permite a aplicação deste conhecimento e destas técnicas à prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação.

Assim, as linhas de força traçadas acerca da Saúde Pública implicam, directamente, não só a área da Psicologia Social, na medida em que envolvem crenças, atitudes e expectativas, mas também a área da Psicologia da Saúde. Com efeito, este último ramo da Psicologia diz especificamente respeito "ao agregado das contribuições educacionais, científicas e profissionais específicas da disciplina da Psicologia para a promoção e manutenção da Saúde, a prevenção e tratamento da doença, a identificação dos correlatos etiológicos e de diagnóstico da Saúde, doença e disfunções associadas, bem como a análise e melhoramento do sistema dos cuidados de Saúde e organização da política de Saúde" (Matarazzo, 1980).

O comportamento das pessoas face à saúde distribui-se ao longo de um vasto espectro que vai desde as acções para manter e promover positivamente a saúde até àquelas envolvidas na doença e na morte (Kasl e Cobb, 1966). Obviamente, esta actividade pode dizer respeito tanto à própria pessoa, tal como se passa na obtenção de imunizações, como a terceiras pessoas, tal como os pais que levam o seu filho ao pediatra para fazer um check-up ou os casais que procuram os cuidados pré-natais para o filho que está para não nascer. O comportamento orientado para a saúde envolve uma grande diversidade de acções. Algumas delas são de âmbito verdadeiramente preventivo (as imunizações são o melhor exemplo) e outras envolvem o rastreio ou detecção tal como o verdadeiro check-up, mas não previnem realmente nada (excepto, talvez, uma desnecessária ansiedade).

Podemos delinear algumas questões básicas acerca da decisão de adoptar comportamentos preventivos. Em primeiro lugar, quem age preventivamente ? Em segundo lugar, que características se relacionam com a tomada de uma determinada acção preventiva ? Em terceiro lugar, existirão relações positivas entre os comportamentos preventivos ?

No âmbito dos comportamentos preventivos que são medicamente orientados, os dados disponíveis parecem mostrar um certo grau de uniformidade geral, no que se refere a quem neles participa (Rosenstock, 1974). Habitualmente, os comportamentos preventivos deste tipo encontram-se fortemente associados ao estatuto sócio-económico, favorecendo os níveis sócio-económicos mais elevados, e apresentam marcadas diferenças entre sexos. Estas diferenças de estatuto sócio-económico persistem mesmo

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quando o custo dos cuidados é removido ou quando as diferenças de rendimento são parcialmente esbatidas. As diferenças entre os sexos persistem mesmo fora do contexto de qualquer comportamento relacionado especificamente com a saúde dos filhos (Rosenstock, 1974). Da constelação de variáveis reunidas sob o estatuto socio- económico, o rendimento é, sem dúvida, importante, quando os custos estão envolvidos, mas a educação constitui, por si só, um factor muito mais significativo.

Os diversos comportamentos face à saúde de um mesmo indivíduo não são, necessariamente, convergentes dado que ele poderá comportar-se de forma diferenciada consoante os cuidados de saúde a tomar. No entanto, a relação entre os diferentes comportamentos medicamente orientados parece ser relativamente consistente, ainda que as correlações respectivas sejam, habitualmente, moderadas, tal como sucede, por exemplo, entre a imunização das crianças e os cuidados maternos pré-natais.

Existem aspectos específicos, situacionais e normativos que podem influenciar a adopção de cada tipo particular de comportamento orientado para a saúde. Por um lado, não há um acesso uniforme e geral aos Serviços de Saúde, ou seja, alguns serviços mais diferenciados, sobretudo se envolvem encargos económicos elevados, nem sempre são oferecidos à população em geral. Por outro lado, a importância atribuída pelas pessoas aos diferentes aspectos da saúde podem ser muito desiguais: sejam quais forem os factores subjacentes às decisões de participar ou procurar os serviços médicos, tais factores podem não estar associados à continuação ou adesão às medidas preventivas, aos diagnósticos e aos tratamentos.

A questão da promoção da educação para a saúde, na população, levanta um conjunto de novos problemas e necessidades. Embora existam defensores da ideia de que as actividades de educação para a saúde podem alterar os comportamentos face à saúde e promover os comportamentos orientados para a saúde, na verdade, os mecanismos através das quais a educação para a saúde é bem sucedida estão longe de ser esclarecidos.

Segundo Scutchfield e More (1989), os clínicos gerais dos Serviços Públicos de Saúde {Health Maintenance Organization - H.M.O.) estão menos predispostos a ter crenças, atitudes e práticas preventivas positivas do que os médicos do regime livre ou da iniciativa privada. Estes dados, de proveniência Norte-Americana, confrontam-nos, ainda que por extrapolação, com uma séria barreira à implementação de programas de educação para a saúde da população (Henri, Ogle e Snellman, 1987), na medida em que os agentes mais directamente implicados na Saúde Pública parecem menos predispostos a aceitá-los. Na verdade, o reconhecimento das prioridades acerca da educação para a Saúde apenas se pode revestir de um real interesse prático se for partilhado não só pela população mas

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também pelos profissionais de saúde. Nesta linha de considerações é importante reter que, embora os médicos possam expressar uma atitude positiva face ao comportamento orientado para a saúde, a sua atenção e recomendação de medidas preventivas é, por vezes, escassa. A orientação para a doença, inerente ao próprio modelo médico tradicional, é um poderoso obstáculo que os médicos mais motivados para a saúde pré- natal têm de ultrapassar (Scutchfield, 1992).

Em resumo, a integração bem sucedida dos programas de educação para a Saúde da população requer uma interacção efectiva entre a própria população, os profissionais de saúde (médicos, psicólogos, etc.) e o próprio Sistema de Saúde. A essência da Saúde Pública Pré-Natal é, por si só, um novo desafio para a educação médica (cf. Groff, 1988), tanto mais que há dados que sugerem influências dos curricula nas atitudes dos médicos face aos cuidados preventivos (cf. Scott, Greig e Neighbon, 1986).

Geralmente, sugere-se que a implementação da educação para a saúde poderia traduzir-se pelo fornecimento de uma maior quantidade e qualidade de informação à população acerca de todas as áreas da saúde, como, por exemplo, doenças do coração, alcoolismo, cancro ou planeamento familiar, quer a um nível formal, por exemplo, nas escolas ou outras instituições, quer a um nível informal, por exemplo, através de campanhas publicitárias. Todavia, pensamos que há fortes razões impeditivas desta "desmultiplicação da informação". Segundo Rogers (1973), exceptuando algumas mensagens específicas, a maior parte dos profissionais de saúde não dominam as estratégias de comunicação adequadas para atingir tais objectivos. De um modo científico, não conhecemos nada de muito concreto acerca destas estratégias. Com efeito, quanto mais vastas forem as questões públicas envolvidas, menos seguras serão as informações e as recomendações que podem ser feitas. Além disso, algumas vezes, as questões de saúde são objecto de controvérsia, tais como a questão da política nacional de rastreios e Diagnósticos Pré-Natais ou o abortamento. Numa sociedade pluralista, quanto mais os assuntos de saúde tocam valores e crenças implantadas, mais provável é que a controvérsia se desenvolva. Finalmente, as crenças das pessoas nos benefícios resultantes da adopção de comportamentos orientados para a saúde são, frequentemente, bastante específicas. O papel e a pessoa do profissional que presta os cuidados preventivos, contribui decisivamente para a percepção do valor destes cuidados, parecendo um dado adquirido que as pessoas doentes seguem mais facilmente as recomendações feitas pelo seu próprio médico assistente.

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Para concluir, é de salientar que as tarefas de promoção da saúde só poderão ser levadas a cabo com o concurso de um esforço interdisciplinar, no qual se destaca o papel da Psicologia Social. O contributo desta disciplina, no domínio do estudo dos conhecimentos, das atitudes, das crenças (e outras variáveis sócio-cognitivas) e dos comportamentos face à Saúde, reveste uma importância decisiva para alcançar o objectivo proposto pela O.M.S.: saúde para todos no ano 2000 ou, talvez, de forma menos idealista saúde para todos no ano 2050! Contudo os contributos da comunidade científica, se bem que indispensáveis, não são suficientes. Para aumentar a eficácia das medidas adoptadas e suscitar mudanças de comportamentos e de estilos de vida, as vantagens e os benefícios da promoção da saúde e da prevenção da doença, devem ser considerados e ponderados, quer pelo Estado, através das organizações de Saúde Pública, quer pela comunidade médica, quer pela população. Assim, a implicação dos diversos intervenientes, - o estado, o público e os profissionais de Saúde -, é necessária para o reconhecimento do valor dos comportamentos orientados para a saúde e para a sua generalização a médio prazo.

2. AS REPRESENTAÇÕES DA SAÚDE E DA DOENÇA: O CASO