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A génese das representações da saúde e da doença comporta não somente as dimensões biológicas que as caracterizam, mas também um conjunto de aspectos psicossociológicos. Assim, o conhecimento quotidiano, evidenciado pelas representações da saúde e da doença, é fruto, por um lado, de crenças culturalmente enraizadas e, por outro lado, de informações científicas veiculadas quer pela comunicação social, quer pela instituição escolar. Estes vários elementos confluem na formação das representações, que variam consoante são instituídas novas práticas de saúde.

Num primeiro momento, tentaremos evidenciar as representações da saúde e da doença a partir dos resultados de estudos empíricos, para depois analisar, brevemente, o papel da informação científica na construção dessas representações. Antes, contudo, tentaremos justificar a importância do estudo das representações sociais.

O modo como apreendemos a realidade, nos seus múltiplos aspectos, não se pode dissociar do modo como a representamos. Assim, o real existe, para nós, na medida em que construímos representações. Estas permitem-nos obter uma rede de significados, na qual assentam os códigos de interpretação e de conduta que medeiam as nossas relações

Capítulo 111 - Psicologia social: A significação pessoal e social das representações de saúde e de doença

interpessoais. O processo de construção e de reconstrução da realidade é partilhado e veiculado no seio dos grupos sociais a propósito de determinados objectos. A delimitação desse processo é, por vezes, difícil, na medida em que está sujeita a uma transformação permanente.

A linguagem, tão aperfeiçoada na espécie humana, é portadora de emoções, de ideias e de imagens que são mediadas por uma actividade simbólica criadora. É através da linguagem que se representam os "objectos" presentes e, até, passados e futuros. As sociedades passam grande parte do tempo a comunicar e o grande desenvolvimento das tecnologias tem incidido, precisamente, na melhoria das comunicações entre os povos. Parece, então, desejável que as ciências humanas se interessem pelos conteúdos dessas interacções. No século passado, alguns autores apontaram a importância da comunicação na transformação das sociedades humanas. Mais tarde, foi o próprio Moscovici a caracterizar a nossa época como a era das representações sociais. O aparecimento das representações sociais, na comunicação humana, ultrapassa a esfera das simples opiniões, imagens ou atitudes. Como diz Moscovici (1976), trata-se de sistemas cognitivos que têm uma lógica e uma linguagem particulares, teorias, ciências sui generis, destinadas à descoberta do real e ao seu ordenamento.

Diversos autores (Farr, 1984; Herzlich, 1986; Jodelet, 1986), analisaram as representações da saúde e da doença: uns centrados nas doenças físicas e outros centrados nas "doenças mentais", chegando a conclusões parcialmente convergentes. A metodologia seguida pela maioria dos autores foi o recurso a entrevistas não directivas, com a duração média de uma hora e meia, realizadas, principalmente, com parisienses e com um pequeno grupo de aldeões provenientes da Normandia. Segundo Herzlich (1986), são três os pontos de interesse específico para o estudo das representações da saúde e da doença: (1) a exigência de discursos interpretativos acerca da saúde e da doença, que levam à cristalização de representações bem estruturadas; (2) o carácter de mundivisão destes discursos interpretativos, que relacionam os aspectos biológicos e os aspectos de ordem social; (3) o ponto de encontro entre a ciência e o senso comum e entre o conhecimento profissional e o do cidadão comum.

No estudo desta autora, a representação da saúde não evidenciou a existência de causas específicas para a mesma, parecendo que não precisa de ser explicada: se tem a sorte de ter nascido com uma boa constituição, então, ir-se-á gozar de uma boa saúde. No caso da doença, já há necessidade de explicação, visto ser um elemento perturbador com uma certa relevância para a vida dos indivíduos e dos grupos. Assim, as causas de

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doença, em geral, são largamente atribuídas ao meio ambiente, ao ritmo de vida pouco natural das cidades, a uma alimentação pouco equilibrada e "não natural". A autora concluiu que "a génese da doença se dá numa luta entre o indivíduo saudável e o modo de vida doentio. A representação elabora-se numa dupla oposição entre o indivíduo saudável e o seu modo de vida nocivo" (Herzlich ,1972, p. 314). Mas, em contrapartida, tem sido atribuído um papel muito importante aos avanços da ciência médica, nomeadamente, para o aumento da longevidade. A credulidade das pessoas inquiridas, pela autora, nos avanços da medicina moderna, parece ser de tal ordem que descoraram a contradição entre as causas de doença que identificaram e o facto de elas próprias viverem sob essas condições sem adoecer. Nas representações, surge um estado médio entre a saúde e a doença caracterizado por noções como "mal-estar", "depressão" e "fadiga". Estas descrições indicam que algo não está bem no organismo, que o corpo está "intoxicado", mas que não se está verdadeiramente doente (Herlzlich, 1986). Por outro lado, a representação da doença apoia-se, frequentemente, na noção de "germe", como se o meio ocultasse substâncias perigosas; talvez se possa ver aqui a influência da descoberta dos "micróbios" pelos cientistas franceses do século XIX. Pelo contrário, a ausência quase total da teoria da doença baseada na culpabilidade poderá revelar que as teorias psicanalíticas (que consideram o homem como fonte de doença) não deixaram vestígios muito relevantes (Farr, 1984).

No seu estudo sobre as representações sociais da saúde e da doença, Herzlich não encontrou, ao contrário daquilo que é referido por Farr (1984), qualquer referência espontânea à doença mental. A doença mental estaria incluída numa categoria decorrente de uma situação agravada das categorias intermédias de "depressão" ou "fadiga". Os resultados parecem evidenciar uma certa semelhança entre as respostas relativamente às doenças mentais e físicas. Jodelet (1986) desenvolveu um estudo numa comunidade rural de França que, desde o início do século, acolhe, de forma institucional, doentes mentais. Recorrendo a entrevistas realizadas com profissionais que acompanhavam os "doentes" e com as famílias de acolhimento, a autora analisou a constituição de uma representação específica da "doença mental" e explicou a interdependência entre esta elaboração cognitiva e a adopção de comportamentos concretos. Deste modo, Jodelet verificou que o estatuto das famílias de acolhimento se baseava numa diferenciação constante em relação aos "doentes" e que a principal preocupação residia em evitar o contágio (as refeições eram tomadas separadamente, as roupas eram lavadas à parte, as crianças eram afastadas, etc.). Assim, esta tentativa de "reinserção" deparou-se com a emergência de um código de discriminação social emergente, no domínio específico da "saúde/doença mental".

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Deste modo, podemos verificar como certas informações científicas, embora alteradas, parecem ter sido integradas nas representações do senso comum. No caso da popularização da ciência, Moscovici (1976), ao investigar as representações da psicanálise, introduziu o conceito de representação social para designar os aspectos específicos do conhecimento quotidiano, em cuja construção a ciência desempenha um papel determinante. Podemos mesmo afirmar que, enquanto noutros tempos a Igreja e, possivelmente, alguns filósofos ou políticos foram considerados como fontes legítimas de conhecimento, na moderna sociedade ocidental a ciência tem tomado esse papel. Este fenómeno é uma consequência da secularização crescente de amplos sectores da sociedade. Com a progressiva escolarização, os indivíduos das sociedades modernas entram em contacto com as descobertas e as teorias científicas, o que implica que a ciência assuma um importante papel como fonte de conhecimento quotidiano e, ao mesmo tempo, como oportunidade e autoridade para legitimar e justificar as decisões quotidianas e certas posições ideológicas (Wagner e Elejabarrieta, 1994). A Medicina aparece como um exemplo paradigmático do conhecimento científico, revestindo-se de uma autoridade social quase irrefutável. A chegada das informações provenientes dos meios científicos à população, em geral, faz-se, frequentemente, através dos meios de comunicação. Assim, as mensagens são, habitualmente, "descodificadas" para se tornarem inteligíveis pelos leigos e aparecem, frequentemente, como mensagens mais ou menos sensacionalistas e bastante afastadas das suas fontes originais. A população, ávida do saber dito científico e desprovida de critérios que lhe permitam julgar, criticamente, as informações científicas, aceita os argumentos "quase científicos" e utiliza-os, selectivamente, para legitimar crenças já existentes. Ainda segundo Wagner e Elejabarrieta (1994), "as teorias científicas raramente, se é que sucede alguma vez, se vulgarizam integralmente (...) Na maioria das vezes, os aspectos e os conceitos da ciência, que podem ser facilmente imaginados de forma icónica e metafórica e projectados sobre os problemas práticos, são reciclados no conhecimento quotidiano" (p. 824).

É neste pano de fundo que julgamos ser importante fazer uma análise da difusão social do conhecimento dito científico relativo às doenças genéticas e hereditárias. Com efeito, a introdução de novas práticas biomédicas de detecção de doenças genéticas e hereditárias, nos cuidados de saúde pré-natal, reaviva a velha questão das representações mais ou menos preconceituosas e rodeadas de falsas crenças culturais simbólicas, que levam a interpretações equívocas sobre a hereditariedade. Por exemplo, a detecção de cromosomopatias, através do Diagnóstico Pré-Natal, veio evidenciar a existência de certas

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representações deterministas em relação às doenças genéticas e alterar, de alguma forma, nessas representações, os aspectos associados ao fatalismo. Considerando que "as representações no sentido do conhecimento científico vulgarizado têm funções declarativas, instrumentais e explicativas" (Wagner e Elejabarrieta, 1994, p.824), justifica-se que a ignorância, associada à falta de recursos médicos para enfrentar as doenças genéticas e hereditárias, pode estar na base das representações sociais que dizem respeito à confusa distinção entre hereditário e congénito, à aceitação de bases genéticas simplistas para as semelhanças com os progenitores, à aceitação pouco crítica da hereditariedade do adquirido e à crença na incurabilidade das doenças hereditárias. Ao longo dos tempos, as doenças genéticas parecem ter sido representadas socialmente como "punição" ou "castigo", justos ou injustos, que se abatiam sobre as famílias, estabelecendo-se relações com o "bom" ou "mau" sangue. Essa punição ia além da simples presença, nos indivíduos, de substâncias ou genes defeituosos, sendo eles mesmos considerados socialmente indesejáveis e propagadores de doenças.

A difusão de informações, mais ou menos alarmantes e sensasionalistas, sobre descobertas, no contexto biomédico, de genes que provocariam determinados comportamentos, leva a construir representações que objectivam os conteúdos socialmente relevantes no sentido da discriminação social. A ciência, neste caso a genética, serve de base para explicar determinados comportamentos ditos desviantes. Como exemplos ilustrativos desta situação, podemos referir, para citar apenas alguns, as supostas descobertas do gene responsável pela esquizofrenia, do gene responsável pela homossexualidade, do gene responsável pelo alcoolismo e, ainda, da controversa descoberta do cromosoma Y supranumerário, que foi alegadamente considerado responsável por comportamentos agressivos e anti-sociais ("o cromosoma do crime" ou "o cromosoma assassino").

No sentido de ilustrar este tipo de representações, em torno das questões genéticas, vale a pena determo-nos, com mais algum pormenor, na descoberta do cromosoma Y supranumerário. Para o efeito, seguiremos de perto a informação colhida na obra de Lewontin, Rose e Kamin de 1984, intitulada, originalmente, Not in Our Genes: Biology, ideology and human nature. O primeiro caso XYY foi descoberto numa investigação de anomalias cromosómicas, em 1961. Nos anos seguintes, publicaram-se referências a outros casos descobertos, sem que fosse estabelecida qualquer relação de tais achados com problemas de comportamento. Em 1965, P. Jacobs e a sua equipa observaram a existência de uma proporção considerável de homens com o cariótipo 47, XYY, nos indivíduos presos numa instituição escocesa destinada a prisioneiros

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considerados perigosos. O fruto destas investigações deu origem a um artigo com o título algo provocativo de "Comportamento agressivo, deficiência mental e o homem XYY". A esta investigação seguiram-se variados estudos, que também foram realizados em prisões, manicómios e instituições para deficientes mentais, sem qualquer grupo de controlo. Em 1967, um grupo de investigadores britânicos considerou lógico que o comportamento anti-social resultasse da presença do cromosoma Y extra. A publicação destes artigos conferiu à síndrome XYY um aspecto de autenticidade científica, no qual se baseou a legitimidade do estereótipo da agressividade que lhe foi associado. O cariótipo XYY foi, injustificavelmente, estereotipado por causa do tipo de instituições nas quais foi, inicialmente, fácil de encontrar alguns casos, apesar da inexistência de qualquer tipo de evidência sólida que estabelecesse uma relação entre o cariótipo XYY e o comportamento anti-social. Os meios de comunicação social divulgaram, amplamente, o estereótipo com títulos sugestivos que deram azo à impressão geral do público de que tal relação existia de facto. Apareciam artigos de ficção na imprensa popular com títulos sensacionalistas, como, por exemplo, "Criminosos congénitos". De um dia para o outro o cromosoma Y supranumerário foi convertido no cromosoma do crime. Por outro lado, estas noções foram também rapidamente incorporadas nos textos e nos programas do ensino secundário e, até, universitário, nos quais eram apresentadas de um modo incontroverso. No contexto do Diagnóstico Pré-Natal, tivemos conhecimento de que, apesar das equipas médicas se recusarem, à face da lei portuguesa, a efectuar a interrupção da gravidez nos casos XYY diagnosticados, grande parte dos casais, nessas circunstâncias, tem concretizado essa opção recorrendo a serviços estrangeiros. Em muitos casos é difícil corrigir, através da actual e credível informação científica, as ideias que estes casais têm acerca do cariótipo XYY, que construíram com base nas crenças falsas em torno deste problema. Parece-nos que a análise do exemplo do cariótipo XYY revela a importância do impacto da credibilidade e autoridade da ciência, da divulgação simplista da investigação científica, do papel e poder da comunicação social e das falsas crenças, na construção do conhecimento quotidiano.

A visão acerca do papel dos genes no comportamento humano assume uma feição claramente totalitária, segundo a qual existiria um gene para cada comportamento desviante. No entanto, será curioso reflectir sobre o facto de não ser considerada a possibilidade de descobrir genes para comportamentos socialmente desejáveis, como, por exemplo, o gene para a generosidade. De certo modo, isto está de acordo com as representações sociais de saúde e de doença. Como referimos, atrás, apenas têm sido evidenciadas atribuições causais para a doença e não para a saúde. Este tipo de

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representação evidencia, ainda, uma dimensão antropomórfica, com a atribuição de características humanas, como o egoísmo, aos agentes causais (v.g., os genes egoístas).

Em relação à materialização dos agentes de doença do passado, que atribuía aos microorganismos a causalidade de doenças físicas, nomeadamente, infecciosas, a materialização presente dos genes estende o seu determinismo ao comportamento e à vida mental. Isto significa que se prefigura a materialização de agentes que, de um modo mecanicista e automático, controlariam, pura e simplesmente, a vida humana.

Recentemente, têm-se estabelecido grandes debates na comunicação social, em torno dos problemas bioéticos da manipulação genética Mais uma vez, têm sido veiculadas informações, com carácter especulativo, sobre as potenciais acções da genética, por exemplo, no aperfeiçoamento da espécie humana. Desta forma, são patentes representações acerca da genética que lhe conferem, por exemplo, a possibilidade de "criar super-homens" ou de fazer "cópias de seres humanos". Aqui, a genética já não representa a fonte na qual podemos confiar para explicar os comportamentos desviantes, mas constitui ela própria uma ameaça para a nossa civilização ou para a nossa espécie.

Alguns rastreios genéticos com vista à detecção de portadores heterozigóticos de genes de certas doenças hereditárias tiveram graves repercussões ao nível social, levando a processos intergrupais de "discriminação genética", ou seja, à discriminação social dirigida a uma pessoa, uma família ou um grupo, baseada, apenas, numa variação real ou aparente do genótipo humano ou nas características de um genótipo particular. Estas pessoas sofreram graves prejuízos da auto-estima e desenvolveram uma grande culpabilização ao tomar conhecimento que, apesar de serem perfeitamente saudáveis, possuíam um "gene defeituoso" que as fazia sentir-se "anormais", levando a dificuldades suplementares, nomeadamente, quanto aos seus planos procriativos.

Em síntese, parece-nos que a construção social da representação das doenças genéticas é influenciada por múltiplos condicionalismos confluentes. As representações das doenças genéticas, tal como foi já referido, estão envolvidas por um misto de informação médica e de informação popular. Neste quadro de referência, existem, por vezes, duas perspectivas "concorrentes": por um lado, a confiança no saber médico, que deverá ter a solução para a doença, por outro, as dificuldades sociais inerentes ao facto de ter um gene da doença e não se poder dar solução a esse problema, bem como a consequente vergonha de assumir o estatuto de doente. No ponto seguinte, analisaremos, mais pormenorizadamente, o fenómeno de discriminação social associado às doenças genéticas e hereditárias.

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3. O IMPACTO SOCIAL DAS DOENÇAS GENÉTICAS: DA ESTIGMA-