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A Continuidade em Educação como um Processo Global da Formação do Indivíduo127


No documento Articulação vertical das ciências naturais (páginas 148-154)

2.4 Articulação do Currículo e Gestão Flexível das Ciências Naturais 126


2.4.1 A Continuidade em Educação como um Processo Global da Formação do Indivíduo127


O conceito de aprendizagem visto durante muito tempo como a acumulação passiva de saberes passa a conceber-se como uma construção dinâmica em contexto, onde os aprendentes devem assumir-se como sujeitos activos (Morgado & Tomaz, 2010), e onde as aprendizagens académicas não podem desligar-se das aprendizagens experienciais (Alonso, Peralta, & Alaiz, 2001). Mais do que um conhecimento espartilhado de saberes, torna-se indispensável a aquisição de um conhecimento globalizante, integrador e integrado (Morgado & Tomaz, 2010), onde a continuidade, articulação curricular e gestão flexível se assumem como pilares estruturantes do currículo.

A continuidade na educação é vista como um processo global de formação do indivíduo, que se desenvolve em etapas harmoniosamente conectadas, em que umas condicionam as outras, por recurso a estratégias de complementaridade de recursos físicos e humanos (Zabalza, 1994; Pacheco, 2000; Roldão, 1999a; Serra, 2004; Barbosa, 2009). Daqui resulta a concepção da escolaridade como um processo global e continuado, ao longo do qual os sujeitos vão crescendo com um sentido unitário (Zabalza, 1994). A articulação é uma forma de operacionalizar esta continuidade.

Assim, a articulação horizontal pretende garantir continuidade entre as respectivas práticas, com vista a facilitar a aquisição, por parte do aluno, de um conhecimento global, integrador e integrado, e a articulação vertical encaminha para a ideia da sequencialidade de conteúdos, procedimentos e atitudes, quer ao nível do mesmo ano de escolaridade ou anos subsequentes (Gimeno Sacristán, 1996; Strecht-Ribeiro, 2001; Morgado & Tomaz, 2010).

Segundo Strecht-Ribeiro (2001), a concretização da articulação vertical passa pela colaboração e pelo estabelecimento de linhas de comunicação abertas entre todos os professores envolvidos na transição entre diferentes anos ou ciclos de ensino, de forma a atenuar descontinuidades inerentes a uma mudança de ciclo ou de níveis de aprendizagem. Passa,

também, por valorizar as aprendizagens adquiridas, tornando-as a base para as aprendizagens posteriores e reajustar/rever conteúdos programáticos, estratégias e materiais de trabalho. De acordo com Gimeno Sacristán (1996), a continuidade deverá ter em atenção as aprendizagens passadas, presentes e futuras, para que os ciclos e níveis de ensino, embora diferenciados, mantenham entre si uma continuidade progressiva.

A expressão “sequencialidade em espiral” é utilizada por vários autores (Bruner, 1973; Giordan,1991; Gimeno Sacristán, 1996; Serra, 2004; Roldão, 2008) para defenderem a ideia que cada ciclo/nível de escolaridade assenta no anterior, aprofundando-o e alargando-o, atribuindo-se ao ciclo seguinte a responsabilidade de dar continuidade ao anterior.

Segundo Gimeno Sacristán (1996), só deixará de haver descontinuidade entre ciclos e níveis de aprendizagem se houver iniciativas concretas que promovam a construção de pontes entre os diferentes ciclos e níveis de aprendizagem. A nível de cada disciplina, os procedimentos devem passar por conexões/interdependências, quer ao nível dos saberes adquiridos, quer ao nível das competências, entre os diferentes anos da escolaridade; seguir uma sequência em espiral tratando os temas com uma profundidade gradual; ter continuidade de objectivos, atitudes e valores entre ciclos ao longo do tempo (Gimeno Sacristán, 1996); elaborar fichas de diagnóstico e de adaptação ao novo ciclo (Abrantes, 2008) e de reajuste/revisão dos conteúdos programáticos, estratégias e materiais de trabalho (Strecht-Ribeiro, 2001). Porém, para ser possível concretizar uma efectiva articulação do currículo, é necessário que a escola se reorganize pedagogicamente, isto é, que adopte os novos conceitos de currículo e gestão curricular: os professores devem desenvolver dinâmicas de trabalho mais consonantes com estas mudanças (Tomaz, 2007) e desenvolver uma cultura colaborativa nas escolas (Morgado & Tomaz, 2010). Assim, é necessário potencializar o desenvolvimento global dos professores. Neste sentido, Galvão (2002) defende que os professores de Ciências devem seguir uma metodologia de trabalho colaborativo e interdisciplinar, que implique uma integração de conteúdos, e passar de uma concepção fragmentária para uma concepção unitária do conhecimento.

Constrangimentos e Obstáculos nas Práticas de Articulação Curricular

A articulação curricular requer reformulações significativas no contexto organizativo dos Agrupamentos e também no modo de trabalhar dos professores. Também exige que a participação dos professores seja no sentido de desenvolver uma cultura colaborativa. A propósito dos

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constrangimentos e obstáculos sentidos nas práticas de articulação curricular, alguns autores (Thurler, 1994; Pereira & Neto-Mendes, 2004), enumeram as seguintes dificuldades na implementação e desenvolvimento de culturas colaborativas:

i) Questões técnicas e administrativas:

- Ausência de estruturas facilitadoras da colaboração: definição dos horários de trabalho dos professores e do horário do trabalho em equipa. Os horários de muitos professores são concebidos em função de lógicas e desejos individuais, sendo o trabalho em equipa sempre relegado para o domínio difuso do tempo livre, do voluntariado e das boas vontades individuais;

- Dificuldade ou inexistência de trabalho em equipa pedagógica ou de supervisão mútua: faltam salas e horários apropriados e os professores dispersam-se no cumprimento do exercício de diversas actividades na escola;

- Substituição do desenvolvimento de uma cultura entre os professores por parte dos órgãos de gestão por outras prioridades;

- Fragmentação dos horários de ensino: o elevado número de horários de professores contratados que não pertencem ao quadro de escola e a mobilidade dos professores. ii) Desconhecimento dos professores relativamente às implicações que a colaboração e a colegialidade transportam, bem como o significado e relevância que são atribuídas a estas formas de cultura docente. A prática reflexiva é pouco comum entre os professores.

Alonso (1998), por seu turno, sinaliza que estes constrangimentos e/ou obstáculos estão de acordo com a heterogeneidade docente e a diversidade de formas com que os professores encaram e exercem a sua profissão, bem como com a diversidade de identidades e organização escolar. Ou seja, horários, falta de tempo e espaços, e a cultura tradicional dominante em que o diálogo pedagógico se restringe normalmente a conversar sobre problemas de disciplina ou materiais e com o problema do isolamento que é suportado pelo horário, pela sobrecarga docente e pela história que o legitima.

Factores Facilitadores nas Práticas de Articulação Curricular

De acordo com Thurler (1991) e Alonso (1998), os factores facilitadores das práticas de articulação são:

- Os professores compreenderem que o desenvolvimento de trabalho em equipa constitui uma oportunidade de sobrevivência na profissão;

- Os professores percepcionarem a colaboração enquanto fonte de autonomia, permitindo uma participação mais inteligente, ajustada e concertada;

- O trabalho em equipa como recurso para potenciar a prática lectiva (os conhecimentos e talentos de cada um são uma mais valia);

- O factor tempo na estruturação do trabalho do professor, a disponibilidade de tempo para a planificação e discussão conjunta e para formação;

- O empowerment, que consiste na capacidade dos professores para tomarem conta do seu crescimento profissional e da resolução dos seus problemas.

A gestão flexível do currículo tem por objectivo melhorar a eficácia da resposta educativa aos problemas que surgem por existir uma grande diversidade de contextos escolares, assegurando que todos os alunos aprendam mais e de um modo mais significativo (Zabalza, 1998; Roldão, 1999a; Morgado, 2000). Assim, na próxima secção iremos abordar a gestão flexível nas Ciências Naturais.

2.4.2 Gestão Flexível nas Ciências Naturais e Trabalho Docente

Por gestão flexível do currículo entende-se a possibilidade de cada escola organizar e gerir autonomamente o processo de ensino/aprendizagem, tomando como referência os saberes e as competências nucleares a desenvolver pelos alunos no final de cada ciclo e no final da escolaridade básica, adequando-os às necessidades diferenciadas de cada contexto escolar e podendo contemplar a introdução no currículo de componentes locais e regionais (Roldão, 1999a; Leite, 2001; Morgado, 2000). Ressalve-se, no entanto, que a gestão curricular não consiste em fazer uns cortes nos programas para os tornar mais simples e mais acessíveis, pois essa ideia corresponderia a um empobrecimento do currículo, a uma diminuição e abaixamento de nível que não se coadunam com a ideia de gerir para melhorar (Leite, 2001), pois, tal como afirma Roldão (1999a), “adequa-se para ampliar e melhorar, não para restringir ou empobrecer a aprendizagem” (p.54). Assim, a gestão curricular pressupõe reconstruir o currículo proposto a nível nacional, trabalhar em equipa, tomar iniciativas que conduzam à configuração e desenvolvimento de um currículo mais rico do que aquele que é proposto no currículo nacional e avaliar o projecto curricular concebido e

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realizado (Leite, 2001). Tais atribuições implicam, segundo Roldão (1999a), o reforço de competências de gestão dos professores, competências essas que se podem resumir no seguinte perfil: analisar/diagnosticar situações de alunos no que diz respeito às suas formas e condições de aprendizagem; analisar/comparar crítica e fundamentadamente escolhas quanto aos conteúdos de aprendizagem curricular, não só a nível nacional e global, mas também a nível de cada contexto escolar e individual e possuir uma visão prospectiva das finalidades da educação face às dinâmicas sociais.

Deste modo, aos professores de Ciências Naturais é concedida autonomia para, no quadro de uma gestão flexível e integradora do currículo, optarem e adequarem, de acordo com o contexto educativo e o grupo de alunos, as aprendizagens a realizar e as experiências educativas a promover de modo a desenvolverem “nos” e “com” os alunos as competências específicas da área disciplinar (Abelha et al., 2007). O currículo actual das Ciências, diferente do tradicional, desafia os professores a mudarem as perspectivas acerca do seu papel e da sua relação com os outros e a quebrar com o tradicional trabalho isolado e permite a decisão na gestão dos conteúdos e a planificação conjunta das actividades para os alunos (Galvão et al., 2004).

Actualmente, é necessária uma forma continuada de trabalho em equipa, de tomada de decisões conjuntas, de partilha de ideias, de interesses e de pontos de vista sem que os interesses individuais sejam anulados, mas antes potenciados, tendo em conta valores que se partilham (Pereira, Costa, & Neto-Mendes, 2004). Porém, apesar de serem inúmeros os indícios que apontam para a colaboração entre docentes como uma das formas de enfrentar as mudanças e a evolução da escola, intervindo com impacto na incerteza, muitos professores ainda não se consciencializaram das mais-valias do trabalho colaborativo, justamente porque foram socializados numa cultura marcadamente individualista e funcionária (Abelha et al., 2007).

Cultura Colaborativa e Colegialidade

Segundo Hargreaves (1998), as culturas docentes podem assumir quatro formas gerais distintas: o individualismo, a colaboração, a balcanização e a colegialidade artificial.

O individualismo está muito associado a sentimentos como a incerteza, o receio, a desconfiança e a ansiedade por parte dos professores, e é sinónimo dos professores que trabalham isolados uns dos outros e independentemente (Hargreaves, 1998; Lima, 2002; Morgado, 2005). De

acordo com Neto-Mendes (2005), o individualismo é uma forma de cultura docente que se pode subdividir em individualismo constrangido, individualismo estratégico e individualismo electivo.

A cultura que assenta na colaboração, ou colaborativa, parte do pressuposto de que a partilha de sentimentos, problemas, ideias e planos onde estão implícitas tomadas de decisão comuns, é mobilizadora de actuações colectivas, onde o conflito poderá e deverá estar presente (Hargraves, 1998; Day, 2001; Lima, 2002). Assim, na colaboração a incerteza e o insucesso não são protegidos nem defendidos mas, antes, partilhados e discutidos, com o objectivo final de auferir ajuda e apoio (Morgado, 2005). Os professores que têm de intervir em decisões curriculares têm de trabalhar cooperativamente, o que supõe um esforço para alcançar consensos com base na partilha de responsabilidades e de liderança (Freitas, 1995). Segundo Roldão (2003), o trabalho colaborativo sustenta a gestão do currículo.

Na balcanização, uma forma de pseudo-colaboração, os grupos distintos competem entre si lutando pela ocupação de posições (Fullan, & Hargreaves, 2001). O próprio comportamento do grupo de docência e do Departamento a que o professor pertence poderá também exercer influência na sua postura, normalmente balcanizada, estruturada na base da luta pelo poder da sua disciplina, na base dos anos de permanência na escola, etc., opondo-se a um trabalho de cariz mais colaborativo (Hargraves, 1998). Neste contexto, é urgente que se desenvolva uma comunidade de professores cujas experiências e empenhamentos não se limitem, puramente, a um único ano, ciclo ou disciplina, mas se estendam à escola como um todo para que se evitem lacunas ou duplicações escusadas na aprendizagem dos alunos, à medida que transitam de um ano para o seguinte (Fullan & Hargreaves, 2001).

A colegialidade artificial, outra das formas de pseudo-colaboração, tem como principal objectivo aumentar a atenção destinada à planificação em grupo e à consulta entre colegas, bem como a outras formas de trabalho em conjunto (Fullan & Hargreaves, 2001). Nos seus aspectos mais positivos, a colegialidade artificial poderá ser útil como fase prévia na preparação de relações colaborativas mais sólidas entre os docentes, uma vez que as culturas colaborativas não surgem por si próprias. Já no que concerne aos aspectos mais negativos da colegialidade artificial, Hargreaves (1998) refere vários aspectos: não evolui espontaneamente a partir da iniciativas dos professores, sendo antes uma imposição administrativa, a qual impõe que os professores se encontrem e trabalhem em conjunto; a colegialidade artificial consagra pouca margem de reserva à individualidade ou à solidão; os professores são compelidos ou “convencidos” a trabalhar em conjunto, tendo como objectivo implementar as ordens de outros mais directamente, as do director

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de escola ou, indirectamente, as do Ministério da Educação; decorre em locais e tempos pré- determinados (há salas marcadas para reuniões, há convocatórias, há controlo de presenças…) e é concebida para produzir resultados que se esperam que sejam relativamente previsíveis.

Assim, são duas das principais consequências da colegialidade artificial: a inflexibilidade e a ineficiência, dado que os professores não se encontram quando deviam, mas uma grande parte das vezes quando não há nada para discutir, e estão envolvidos em esquemas de treino com pares que não percebem bem ou que não conseguem fazer operar com os colegas adequados (Hargraves, 1998; Lima, 2002).

A revisão de literatura diz-nos que a construção de um verdadeiro trabalho colaborativo, no que ao currículo diz respeito, que contribua efectivamente para um desenvolvimento profissional, dependerá da compreensão por parte do Ministério de que são necessárias várias condições como a existência de tempo e espaço efectivos para a experimentação de práticas de comunhão de ideias, bem como a fomentação de apoio externo para o acompanhamento e resolução de diversa ordem de conflitos (Alonso, Peralta & Alaiz, 2001; Hargreaves, 1998; Louden, 1991). Em simultâneo, cada professor terá que percorrer um caminho em direcção à partilha. Como tal, “a dinâmica relacional entre os professores será viável através da assunção de três competências: saber cooperar eficazmente; saber distinguir os problemas que exigem cooperação dos que não exigem; saber perceber, analisar e combater as resistências, obstáculos e paradoxos” (Pacheco, 2000, p. 32).

Concluindo, as culturas escolares podem representar a promoção ou inibição da predisposição e capacidade dos professores para o seu desenvolvimento (Day, 2001).

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