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A contribuição do Funcionalismo norte-americano

2.2 Transitividade: sinopse histórica

2.2.3 A contribuição do Funcionalismo norte-americano

Para ampliar a análise da transitividade, o funcionalismo norte-americano propõe outro caminho. A alternativa é de que a transitividade não é uma propriedade inerente ao verbo, mas uma propriedade escalar da oração como um todo. Apenas na oração é possível observar as relações entre o verbo e seus argumentos, isto é, a gramática da oração.

De acordo com essa alternativa, no fenômeno da transitividade, interagem os componentes semântico e sintático (GIVÓN, 2001). Em outras palavras, a oração transitiva apresenta, no mínimo, dois participantes: um agente e um paciente. O primeiro, codificado sintaticamente como sujeito, é o responsável pela ação; o segundo, codificado sintaticamente como objeto direto, é o paciente da ação verbal. Como já mencionado no Capítulo 1, essa configuração caracteriza o protótipo de um evento transitivo, no qual um agente age para causar uma mudança de estado ou de condição num paciente (GIVÓN, 1984; SLOBIN, 1982).

A caracterização desse evento tem influência bastante significativa no tratamento da construção transitiva. Desse modo, este trabalho19 pressupõe que essa

ideia está atrelada ao esquema geral da construção.

Para o funcionalismo norte-americano, o modo como um verbo se configura depende de fatores discursivos – componente pragmático –, ou seja, o modo como o falante interpreta e comunica o evento. Isso pode ser mostrado na escolha entre uma oração ativa ou passiva: a perspectiva do evento pode ser comunicada a partir do ponto de vista do agente (voz ativa), como em O menino quebrou a vidraça; ou do ponto de vista do paciente (voz passiva), como em A vidraça foi quebrada pelo menino (FURTADO DA CUNHA; SOUZA, 2007). Para Lima (2009), a diferença entre voz ativa e passiva analítica é motivada mais pragmática do que semanticamente, em relação à definição de tópico. Já a voz média tem mais motivação semântica e representa uma estratégia de demoção do agente, de não atribuição da causalidade.

O estudo de Hopper e Thompson (1980) é pioneiro na análise da transitividade escalar. Os autores propõem que a transitividade pode ser aferida

através do conjunto de dez parâmetros sintático-semânticos que, juntos, determinam se a oração é mais ou menos transitiva20. Esses parâmetros são:

QUADRO 2 –Parâmetros da transitividade

Parâmetros Transitividade alta Transitividade baixa

1. Participantes 2. Cinese 3. Aspecto do verbo 4. Pontualidade do verbo 5. Intencionalidade do Sujeito 6. Polaridade da oração 7. Modalidade da oração 8. Agentividade do Sujeito 9. Afetamento do objeto 10. Individuação do objeto dois ou mais ação perfectivo pontual intencional afirmativa modo realis agentivo afetado individuado um não-ação não-perfectivo não-pontual não-intencional negativa modo irrealis não-agentivo não-afetado não-individuado

Fonte: Furtado da Cunha, Oliveira e Martelotta (2003, p. 37), traduzido de Hopper e Thompson (1980)

Cada parâmetro revela um traço do modo como a transferência da ação de um participante para outro acontece, assim: uma oração ter dois ou mais participantes é um indício de transitividade alta, pois só pode haver transferência com mais de um participante; do mesmo modo, ações podem ser transferidas, mas estados não (cinese); ações concluídas revelam que a transferência foi mais efetivamente realizada do que ações que não foram concluídas (aspecto); ações com um fim imediato tem efeito mais marcante em relação àquelas contínuas (pontualidade); a intenção do sujeito pode causar um efeito maior no afetamento do objeto

20 Embora não examine os parâmetros propostos por Hopper e Thompson (1980), listo-os aqui para

(intencionalidade); orações afirmativas mostram que pode haver transferência, o mesmo não acontece com orações negativas (polaridade); ações que correspondem a eventos reais, e não hipotéticos, são mais efetivas (modalidade); participantes agentivos podem efetuar uma ação de modo que participantes não-agentivos não podem (agentividade); uma ação é transferida em termos de gradualidade, assim quanto mais afetado o paciente, mais alta a transitividade (afetamento); um paciente individuado pode ser mais afetado em relação a outro menos individuado (individuação).

Em perspectiva mais recente, Givón (2001) explica que o evento transitivo prototípico é definido em termos de: a) agentividade – ter um agente intencional ativo; b) afetamento – ter um paciente concreto afetado; e c) perfectividade – envolver um evento concluído, pontual, como mostram os exemplos (7) e (8), selecionados por Furtado da Cunha e Souza (2007, p. 32):

(7) They demolished the house (Eles demoliram a casa)

(8) She sliced the salami (Ela fatiou o salame)

Em ambos os exemplos, o agente é intencional (they / she), o objeto é afetado (the house / the salami) e os verbos são perfectivos, pois denotam um evento já concluído. Todavia, Givón ressalta que os traços semânticos – agentividade, afetamento e perfectividade – são graduais, uma vez que o afetamento do objeto pode ocorrer de maneira parcial ou total, como mostram os exemplos de Givón (1984 apud FURTADO DA CUNHA; SOUZA, 2007, p. 32-33):

(9) Objeto criado: a. He built a house

(Ele construiu uma casa)

b. She made a dress (Ela fez um vestido)

(10) Objeto totalmente destruído: a. They demolished the house

(Eles demoliram a casa)

b. They evaporated the water (Eles evaporaram a água)

(11) Mudança física no objeto: a. She sliced the salami

(Ela fatiou o salame)

b. They bleached his hair (Eles tingiram o cabelo dele)

(12) Mudança de lugar do paciente: a. They moved the barn

(Eles mudaram o celeiro)

b. He rolled the wheelbarrow

(Ele empurrou o carrinho de mão)

(13) Mudança superficial: a. She washed his shirt

(Ela lavou a camisa dele)

b. He bathed the baby (Ele banhou o bebê)

(14) Mudança interna: a. They heated the solution

(Eles aqueceram a solução)

b. He chilled the meat (Eles resfriaram a carne)

(15) Mudança com um instrumento implicado: a. He hammered the nail [hammer]

(Ela martelou o prego [martelo])

b. She kicked the wall [foot] (Ela chutou a parede [pé])

(16) Mudança com modo implicado: a. They murdered her [kill with intention]

(Eles a assassinaram [matar com intenção]).

b. She smashed the cup [break completely] (Ela espatifou a xícara [quebrar com intenção])

As ocorrências registradas por Givón mostram que o grau de afetamento do objeto é fator variável e traz consequências na análise do fenômeno da transitividade, que é gradiente, como explicam Furtado da Cunha e Souza (2007):

a transitividade prototípica reflete o afetamento total do objeto. Os verbos cujo significado não implica mudança de estado ou localização do objeto se afastam do padrão prototípico e, consequentemente, exibem menor grau de transitividade (p. 36).

A proposta de Hopper e Thompson (1980) compartilha similaridades com a proposta de Givón (2001), na medida em que ambos levam em conta aspectos como a agentividade, o afetamento e a perfectividade como essenciais para concepção da transitividade.

O funcionalismo norte-americano oferece uma alternativa para o tratamento da transitividade, considerando aspectos semântico-sintáticos, influenciados pela pragmática da comunicação. Ao conceber a transitividade como um contínuo, esse quadro teórico corrobora o caráter maleável da língua, como também as pressões oriundas do seu uso.