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Instanciações com verbos de ação-processo

4.2 Instanciações da construção transitiva nos corpora investigados

4.2.2 Verbos associados à construção transitiva

4.2.2.1 Instanciações com verbos de ação-processo

No conjunto de amostras textuais coletadas neste trabalho, 321 orações são compostas por verbos associados a elementos classificados como sujeito e objeto direto, respectivamente, consoante ilustra a ocorrência a seguir arrolada:

(46) D. Margarida tira os sapatos que lhe apertam os pés (Conto As mãos

do meu filho)55.

Em (46), observa-se um caso típico de transferência, em que uma entidade agente – humano e animado – (D. Margarida) intencionalmente afeta (ação expressa por tirar) e causa uma mudança de estado da entidade paciente (os sapatos) que é deslocado dos pés para outro lugar. Tal verbo (tirar) corresponde ao que Chafe (1979) e Borba (1996) classificam como verbo do tipo semântico ação-processo. A

55 Para facilitar a localização dos elementos na oração, o verbo está em negrito, o sujeito em itálico, e

característica desse verbo é expressar uma mudança de estado, condição ou locação de um paciente, causada por um sujeito animado e intencional.

Nos corpora sob análise, foram encontrados 161 casos de verbos do tipo ação-processo, o que corresponde a 50,1% dos dados. Desses, os verbos mais frequentes foram fazer (35 ocorrências) e pegar (23 ocorrências), os quais equivalem ao percentual 10,9% e 7,1% das amostras, respectivamente. Os dados arrolados a seguir são amostras de tokens desses verbos:

(47) Fizemos um levantamento, que mostrei ao Conselho Federal de Medicina, com mais de dez casos de mortes e complicações graves atribuídas a cirurgiões plásticos. (Revista Istoé 11Jul/2012).

(48) Eu simplesmente tranquei o professor na sala com a chave (Corpus D&G, Fala, p. 30).

Em (47), o sujeito-agente (Ø = nós) realiza uma ação (fazer) que causa a criação de uma entidade (um levantamento – objeto efetuado56), que não existia e

passa a existir. Na amostra em (48), a ação (trancar) deliberada pelo sujeito-agente (Eu) muda a condição do objeto-paciente (o professor) de livre para preso em uma sala.

Nos casos elencados até aqui (46-48), observa-se a ocorrência de uma transferência de fluxo de energia entre um agente e um paciente, a qual denota relação direta com o evento transitivo prototípico, cujo sentido está relacionado a uma entidade agente que causa uma mudança de estado, de condição ou localização de uma entidade paciente ou dá existência a uma entidade (objeto efetuado).

A hipótese é, pois, que tirar (46), fazer (47) e trancar (48) são perfilados pela construção transitiva, pois o tipo de evento codificado por esses verbos é compatível com o sentido da construção. Na perspectiva de Goldberg, a construção assinala de que modo o verbo combina-se com ela, bem como circunscreve a classe de verbos que pode integrar-se com ela. Além disso, a construção especifica a

56 Givón (1984; 2001) explica que o afetamento do objeto pode ocorrer de maneira parcial ou total como

em She washed his shirt (Ela lavou a camisa dele) e They demolished the house (Eles demoliram a casa), respectivamente; ou ainda, o objeto pode ser efetuado pela ação verbal, ou seja, criado a partir dessa ação She made a dress (Ela fez um vestido).

maneira como o tipo de evento codificado pelo verbo associa-se com o tipo de evento denotado por ela. Nesse viés, os eventos codificados por tirar, por fazer e por trancar são instanciações do tipo de evento atinente à construção transitiva.

A alta frequência dos verbos de ação-processo, 161 tokens distribuídos em 91 types, assinala que esse tipo semântico está associado à representação do evento transitivo prototípico. Um motivo para isso é o fato de esse verbo, geralmente, envolver um afetamento total na entidade paciente. A frequência de fazer ilustra essa afirmação: o verbo possui como sentido central a ideia de que um agente volitivo age criando algo, ou seja, um objeto efetuado pela ação do verbo. Isso posto, pode-se dizer que a moldura semântica de fazer é análoga à semântica da construção transitiva, de maneira que o evento denotado por fazer é uma instância do evento relacionado à construção transitiva.

Cabe destacar que os verbos podem ser tomados em termos de prototipicidade, de modo que há verbos que denotam +/- agentividade e +/-afetamento das entidades que o acompanham.

Assim, há instanciações, como em (46), em que a entidade classificada como sujeito é [+ agente] (D. Margarida) e a entidade tomada como objeto direto (os

sapatos) é [+ afetada]. Observe-se, nesse caso, que o sujeito é animado57 e dotado

de intencionalidade; já o objeto é não-humano e individuado. Além do mais, um verbo como tirar evoca uma cena em que existe um “tirador” e uma coisa “tirada”. Na mesma linha, a construção transitiva está relacionada aos papéis argumentais de agente e paciente. Isso posto, para que a construção transitiva instancie tirar, deve haver uma inter-relação entre os papéis participantes do verbo e os papéis argumentais da construção. Em outras palavras, a inter-relação ocorre por compatibilidade semântica, uma vez que os papéis de agente e paciente correspondem, respectivamente, a “tirador” e “coisa tirada”. Conclui-se, então, que esses papéis se fundem e possibilitam que o verbo seja instanciado pela construção.

Há instanciações, porém, em que o elemento sujeito é [- agente], pois possui menos atributos do agente prototípico, como em (41), sendo uma entidade – não animada e ausente de intencionalidade – ou instrumento causativo:

57 Na literatura linguística, a animacidade pode ser definida em termos de uma hierarquia cujos

componentes são: humano > animal > inanimado. Essa hierarquia, conhecida como hierarquia de animacidade (animacy hierarchy), ou hierarquia de agentividade (agentivity hierarchy), pode ser estabelecida, em algumas línguas, através da distinção entre entidade humana x não-humana ou animada x inanimada (COMRIE, 1989; PAYNE, 1997).

(49) Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem (Conto

Passeio noturno).

Nessa ocorrência, a construção licencia um verbo, bloquear, cuja entidade na posição de sujeito (Os carros dos meninos) é um causativo, ou ainda, um instrumento manipulado pelos meninos, causa uma mudança de condição, a porta da

garagem, que passa de desimpedida para bloqueada.

Casos como em (46-49), com verbos de ação-processo, são mais frequentes nos corpora sob consulta, como já mencionado anteriormente. Nesse aspecto, no que tange a esse tipo semântico de verbo, uma ocorrência como (46) é menos marcada e mais frequente do que aquela em (49).

Sob a ótica de Langacker (2008), as línguas humanas podem codificar eventos a partir de duas orientações, uma agentiva e outra temática58, de maneira que

cada língua recorta qual dessas orientações será prototípica. No caso do português, a orientação agentiva é predominante - a tendência é de que o agente seja foco de atenção e preencha, ainda, a posição de sujeito. Segundo Bybee (2010), a alta frequência de uso de um construto é o que contribui para modelar a representação mental da construção que ele instancia.

Na perspectiva de Goldberg (1995), a interação entre verbos e construções segue dois princípios: o princípio da coerência semântica e o princípio da correspondência. O primeiro ressalta que somente papéis semanticamente compatíveis podem ser fundidos, implicando, assim, que o sentido do verbo seja compatível com o da construção. O segundo destaca que cada papel desempenhado pelo(s) argumento(s) do verbo deve corresponder e ser fundido com um papel argumental da construção.

Quando se trata de verbos de ação-processo, rastrear a fusão entre os papéis do verbo e os papéis argumentais da construção torna-se mais simples, pois esse verbo prototipicamente implica uma moldura semântica em que um agente causa mudança de estado/condição/localização de um paciente, moldura essa análoga ao sentido da construção transitiva, como demonstrado pelas instanciações discutidas até aqui.

58 “Agent orientation” e “theme orientation”, nos termos do autor. Segundo ele, “tema” está associado a

uma série de papéis semânticos, tais como: paciente, experienciador e zero. Para maior detalhamento, consultar Langacker (2008, p. 366).

Contudo, como rastrear essa fusão em instâncias cuja noção de agentividade/afetamento é menos saliente? Para responder essa questão, discuto os casos com outros tipos semânticos de verbos.