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Organização hierárquica da construção transitiva

4.2 Instanciações da construção transitiva nos corpora investigados

4.2.4 Organização hierárquica da construção transitiva

Consoante já examinado até aqui, na manifestação discursiva da construção transitiva, existem sentidos distintos que se relacionam. Desse modo, o objetivo desta seção é retomar esses sentidos, organizando-os hierarquicamente em termos de esquema, subesquema e microconstrução, a fim de atestar a hipótese levantada no Capítulo 1.

Diante disso, os laços polissêmicos entre as instanciações da construção transitiva podem ser interpretados em termos de uma rede hierárquica, à luz da proposta de Traugott e Trousdale (2013)78. Conforme esses autores orientam, a

construção pode ser ordenada hierarquicamente nos três níveis já citados: esquemas, subesquemas e microconstruções.

Em geral, os esquemas são padrões da experiência essencialmente rotinizados e cognitivamente entrincheirados. Dito de outra forma, as construções são esquemas cognitivos que implicam procedimentos em grande parte automatizados para atingir objetivos comunicativos específicos (TOMASELLO, 2003; TRAUGOTT; TROUSDALE 2013).

A partir da hierarquia proposta por Traugott e Trousdale, pode-se dizer que os esquemas são generalizações mais abstratas que se situam no nível mais alto. Assim, a construção transitiva em si está associada a esse nível. Os subesquemas, menos esquemáticos, estão num nível abaixo dos esquemas e estão relacionados ao sentido central da construção. Nesse nível, situam-se as orações que configuram o sentido central da construção, bem como as extensões desse sentido. Finalmente, as microconstruções contemplam tipos individuais de construção, instanciadas por construtos (tokens) que correspondem a ocorrências empíricas, ou seja, instâncias de uso em uma ocasião específica, produzidas por um falante específico com um objetivo específico.

A Figura79 a seguir ilustra uma proposta de organização hierárquica da

construção transitiva80:

79 Para a Figura em tamanho maior, consultar Apêndice.

80 Após reformulações diversas, a presente organização pareceu ilustrar melhor a configuração da

construção transitiva. No entanto, isso não significa que essa configuração está fechada, ao contrário, a construção transitiva é produtiva o suficiente para permitir a emergência de novos sentidos.

FIGURA 6 - Hierarquia da construção transitiva

CONSTRUÇÃO TRANSITIVA

Suj V Obj

Ag AÇÃO/PROCESSO Pac

Fonte: elaboração própria – baseada em Traugott e Trousdale (2013).

A representação da construção transitiva em termos de hierarquia levou em conta, primeiramente, que a noção de esquema é abstrata. Isso significa que o esquema é virtual e, em alguma medida, imagético. O esquema possui, assim, informação sobre a forma e o sentido da construção. No caso da construção transitiva, em síntese, trata-se de uma construção cujo padrão sintático é [Suj V Obj] e cujo sentido central é Ag Ação/Processo Pac (cf. seção 4.2.1).

No ângulo dos subesquemas, que se relacionam ao sentido central da construção, optei por associá-los aos sentidos postulados para suas extensões, assim, são quatro subesquemas que se conectam aos sentidos relacionados anteriormente, sendo: X AFETAR/EFETUAR Y, X AGIR/EXPERIENCIAR/DIZER Y, X ACONTECER Y, X POSSUIR Y. Esses subesquemas se desdobram em seis microconstruções. Cada microconstrução foi atrelada aos tipos semânticos de verbo Subesquema 1

X AFETAR/EFETUAR Y X AGIR/EXPERIENCIAR/DIZER Y Subesquema 2 Subesquema 3 X ACONTECER Y

Subesquema 4 X POSSUIR Y

Microconstrução 1 Verbo do tipo ação-

processo Microconstrução 2 Verbo do tipo ação Microconstrução 6 Verbo do tipo estado Microconstrução 5 Verbo do tipo processo Apaguei as luzes do carro Ouvimos o coraçãozinho do bebê Diamond divulgou dados

Eu tenho uma série de plantas Microconstrução 3 Verbo do tipo ação percepção Microconstrução 4 Verbo do tipo ação dicendi

Subimos uma duna O Brasil enfrenta

encontrados nos corpora, a fim de representar a integração entre a construção e os verbos. Estas correspondem às ocorrências empíricas (construtos ou tokens) atestadas nos dados sob consulta.

Os subesquemas foram organizados sem, necessariamente, levar em conta ordem de importância, exceto pelo subesquema 1 que corresponde ao sentido mais prototípico da construção transitiva, por esse motivo o tracejado está com uma cor diferenciada (azul). Os demais subesquemas (2-4) são extensões, em maior ou menor medida, desse protótipo. Os sentidos apresentam diferenças, em geral, relacionadas ao fluxo de energia do primeiro participante para o segundo participante na cena evocada pela instanciação da construção transitiva. Para esclarecer essas semelhanças e/ou diferenças, já delineadas na seção anterior, resumo-os a partir do quadro a seguir:

QUADRO 5 – Semelhanças/diferenças semânticas entre os subesquemas.

Subesquema Traços semânticos do

sujeito Traços semânticos do objeto Subesquema 1 X AFETAR Y + Agente + Animado + Paciente - Animado Subesquema 2 X AGIR/EXPERIENCIAR/DIZER Y +/- Agente + Animado - Paciente (Tema / Estímulo) - Animado Subesquema 3 X ACONTECER Y - Agente (Paciente) + Animado - Paciente (Tema) - Animado Subesquema 4 X POSSUIR Y - Agente (Suporte de propriedade) + Animado - Paciente (estativo) - Animado

Fonte: elaboração própria.

Conforme demonstra o Quadro 5, é razoável dizer que há graus de agentividade assim como graus de afetamento, do [+] para o [-], de modo que o participante sujeito pode ser [+/-] agente, ao passo que o participante objeto pode ser [+/-] paciente. De modo análogo, a animacidade pode ser interpretada em termos do [+] para o [-]; todavia, cabe destacar que, em relação a esse traço, levei em conta a frequência nos dados analisados. Isso não significa que é uma classificação rígida, há casos em que o referente do sujeito é [- animado] e o do objeto é [+ animado].

Tomando por base a organização hierárquica da construção transitiva, as instanciações a seguir ilustram o sentido prototípico da construção transitiva (69),

relacionado ao subesquema 1 e à microconstrução 1, bem como extensões desse sentido (70-74).

(69) Unto uma forma, redonda e furada no meio, com manteiga e ponho o arroz ainda quente socando-o (Corpus D&G, Escrita, p. 69-70).

(70) Inocêncio arranjava empreguinhos de ordenado pequeno. (Conto As

mãos do meu filho).

(71) Mas no entanto, todos se calam ao ver a crise, se acomodam em frente a uma televisão sonhando um mundo melhor de fantasias e esquece do seu mísero salário minimo. (Corpus D&G, Escrita, p. 93).

Como se pode observar, (70) é um caso que se enquadra no subesquema 2, cujo sentido X AGIR Y é denotado pelo verbo arranjar. A ação de Inocêncio não causa mudança de estado no segundo participante, que é tema do processo denotado pelo verbo.

Ainda relacionado ao subesquema 2, observa-se o sentido X EXPERIENCIAR Y, uma vez que a atividade de sonhar em (71) denota uma experiência. Note-se que o referente do objeto (um mundo melhor de fantasias) não sofre afetamento por parte sujeito, e sim é o estímulo da experiência. Agora, observe- as ocorrências a seguir:

(72) O velho começou a conversar e falou a istória do cemitério maldito (Corpus D&G, Escrita, p. 45)

(73) [O Brasil] Ele enfrenta uma transformação muito grande. (Corpus D&G, Fala, p. 85).

(74) Os seres humanos têm a mesma composição das plantas... (Banco

Conversacional de Natal, Conversa 2).

Em (72), cujo sentido é X DIZER Y, relacionado ao subesquema 2, há um verbo de enunciação, falar, cujo referente do sujeito (O velho), humano e volitivo,

pratica a ação de dizer. Aquilo que é dito (a istória do cemitério maldito) é tradicionalmente classificado como tema, pois preexiste à enunciação. No entanto, pode ser interpretado como um paciente efetuado, via metáfora.

Em (73), X ACONTECER Y, que está associado ao subesquema 3, há a expressão de um acontecer, um processo (enfrentar) em que o referente do sujeito (Ele = O Brasil) é o paciente desse caso. O referente do objeto, uma transformação, é tema.

Na amostra em (74), atrelada ao subesquema 4, X POSSUIR Y, há um predicado estativo que denota uma propriedade (a mesma composição das plantas) do sujeito (os seres humanos), que é seu suporte.

Resgatando a hipótese inicial e tendo em vista o elevado número de verbos transitivos que são recrutados pela construção transitiva bem como a grande frequência de instanciações dessa construção, ela pode ser organizada em termos esquema, subesquemas e microconstruções. É importante frisar que os sentidos relacionados aqui são aqueles atestados nos corpora consultados. Dessa forma, há que se levantar a hipótese de que outros sentidos podem estar associados à construção transitiva, sendo importante, portanto, considerar a ampliação dos dados examinados. As motivações para que os subesquemas se desdobrem em sentidos diversos está conectada a operações cognitivas, como as descritas na próxima seção.