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A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados

2 O CONFLITO ENTRE UM TRATADO INTERNACIONAL E UMA NORMA

2.1 A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados

Conforme Amin e Costa (2010, p. 1) (apud REZEK, 1982, p. 1-18), o direito internacional público foi por muito tempo essencialmente costumeiro, com regras que eram de alcance geral e não se encontravam transcritas para o papel. Em 1949, surge a Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas com o objetivo reunir de forma codificada esse regime consuetudinário de direito internacional e o fez por dezesseis anos. Após esse período, a Comissão enviou o texto final para a Assembleia-Geral das Nações Unidas que achou por bem convocar uma conferência para debater o trabalho. Esse evento ocorreu em duas fases, em 1968 e em 1969, em Viena e resultou na Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados.

Em setembro de 2009, o Brasil depositou perante o Secretário-Geral das Nações Unidas o instrumento de ratificação e a partir do decreto n.º 7.030, de 14 de dezembro de 2009, promulgou esse documento. A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados não ignora as legislações nacionais e se guia, conforme Amin e Costa (2010, p. 3) por cinco princípios: o livre consentimento dos signatários dos tratados, a boa-fé dos acordantes, o princípio rebus sic stantibus, o princípio favor contractus, e o princípio pacta sunt servanta.

Conforme o próprio Amin e Costa (2010, p. 3-5) acabam por elucidar, a expressão latina rebus sic stantibus, que significa “mesmo estado das coisas”, faz referência ao cumprimento dos acordos desde que mantidas as mesmas condições para as quais foi ele planejado. Já favor contractus significa “conservar o contrato”, basicamente uma referência de que os acordos devem ser preservados diante de problemas como de forma. Quanto ao princípio pacta sunt servanda seu significado é “os pactos devem ser respeitados”, uma ordem para que haja cumprimento do que foi acordado. A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados afirma dentre tantas coisas que normas internas não podem ser utilizadas para invalidar tratados internacionais e para isso literalmente prevê a aplicação da norma pacta sunt servanda, conforme na transcrição a seguir:

Artigo 26 Pacta sunt servanda

Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé.

Artigo 27 Direito Interno e Observância de Tratados

Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado. Esta regra não prejudica o artigo 46.

Conforme Amin e Costa (2010, p. 3), o livre consentimento consta no preâmbulo da Convenção e os Estados devem estar a concordar com o tema e o conteúdo do tratado, sem estar a sofrer nenhum tipo de pressão externa e também a pressionar os outros, ou possíveis, signatários, sendo importante esse último para se salientar que não é apenas o livre consentimento dos signatários do acordo que deve ser respeitado, mas também essa característica de quem não está vinculado ao tratado no momento da assinatura e que depois pode vir a se vincular direta ou indiretamente.

Ainda conforme Amin e Costa (2010, p. 3), tão importante quanto o livre consentimento é a necessidade de que os estados ajam de boa-fé para com todos, para que depois não sejam levantadas questões acerca de não ter ocorrido um sincero consentimento por parte de quem é signatário, ou seja, para que não haja a má-fé e se coloque em perigo os objetivos de entidades internacionais promovedoras da paz e que atuam como intermediadoras na resolução de conflitos e na assinatura de tratados, como é o caso das Nações Unidas.

Os outros dois princípios enumerados por Amin e Costa (2010, p. 4) são o rebus sic stantibus e o favor contractus. Aquele visa a permitir que em casos específicos um tratado possa ser extinto, como dito no artigo 60 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados que prevê que uma situação em que tal fato pode ocorrer é quando um dos Estados contratantes viola seriamente o tratado, e no artigo 61 que diz que se desaparecer o objeto indispensável para a execução do tratado, e no artigo 62 em que casa ocorra uma mudança fundamental de circunstâncias, até se no princípio de atitudes hostis pelos Estados, conforme no artigo 73, além de se acontecer uma mudança essencial no direito internacional em desacordo com o tratado; este expressa que se o tratado expirar por razão de forma, que seja dada preferência para o direito internacional para a manutenção e a conclusão, e pode ser encontrado no artigo 55 que informa que tratados multilaterais não são extintos por que não se obteve o número necessário de signatários a não ser que previsto, bem como no artigo 74 que não permite que a demissão nem a ausência de relações diplomáticas entre os Estados seja um impeditivo para a negociação e assinatura dos tratados.

Antes de prosseguir, é importante ressaltar que apesar de somente em 2009 ter ocorrido a ratificação da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados pelo Brasil, esse já a aplicava conforme Rezek (2011, p. 37)

O Brasil ratificou a Convenção em 25 de outubro de 2009, mais de quarenta anos depois de havê-la assinado. Durante esse tempo nenhum preceito da Convenção deixou de ser aplicado no Brasil sob o pretexto de não sermos ainda comprometidos, visto que tanto no terreno da administração quanto no da Justiça havia perfeita consciência do preexistente caráter costumeiro dessas normas.

Além de afirmar a boa-fé e promover a ideia de que normas internas não devem ser mecanismos para desconsideração de acordos feitos, a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados regula que eventuais conflitos devem ser solucionados mediante instrumentos que tenham aspecto pacífico e que respeitem princípios de Justiça e de Direito Internacional, além dos regulamentos tipicamente associados ao Direito Internacional consuetudinário, ou seja, práticas reiteradas pelos agentes internacionais em suas ações. A questão da resolução de discordâncias entre as leis nacionais e os acordos firmados pelo país não deixou de ser complexa a partir da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados porque essa não trouxe uma definição exata de qual é o procedimento a ser seguido para resolver os conflitos, apenas diretrizes. De acordo com Fraga (2001, p. XIII):

A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados não consagrou a supremacia de norma de uma outra ordem. Preferiu a solução conciliatória. O estudo do problema deve ser feito à luz da Constituição de cada Estado e dos princípios gerais do Direito, sem transplantar conceitos ou soluções de sistema jurídico diverso.

Como se percebe, a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados não traz explicitamente a solução da questão do conflito entre norma interna e tratado internacional, pelo contrário, compartilha com os Estados e as constituições a solução mais adequada para cada caso, então, cada nação pode verificar qual das teorias melhor se coaduna com suas próprias regras e com as que se submete por força de tratado.

Voltando as regras dos artigos 26 e 27, conforme Piloni (2001, p 71), são complementares uma da outra e assim se evita que os Estados utilizem o artifício de se comprometerem perante um parceiro estrangeiro, ou de mais membros da comunidade internacional, a fazerem algo ao tomarem parte num tratado internacional para posteriormente descumprir o pactuado a informar que o conteúdo do acordo fere as leis internas, o que evidencia ferimento à boa-fé.

Como visto na transcrição do artigo 27 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, há uma exceção no próprio texto: a referência ao artigo 46. Essa restrição que permite a invocação da lei interna para evitar a aplicação do tratado internacional tem o objetivo de evitar, conforme Piloni (2001, p. 71), que crueldades possam ocorrer. Ao se restringir em absoluto a utilização da legislação nacional em todos os casos em que

essas são contestadas por acordos internacionais, pode-se desencadear em radicalismo e na impossibilidade de cada conflito ser analisado em suas particularidades. Eis o artigo 46:

Artigo 46 Disposições do Direito Interno sobre Competência para Concluir Tratados

1. Um Estado não pode invocar o fato de que seu consentimento em obrigar-se por um tratado foi expresso em violação de uma disposição de seu direito interno sobre competência para concluir tratados, a não ser que essa violação fosse manifesta e dissesse respeito a uma norma de seu direito interno de importância fundamental.

2. Uma violação é manifesta se for objetivamente evidente para qualquer Estado que proceda, na matéria, de conformidade com a prática normal e de boa fé.

A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados com esse artigo tenta proteger as legislações nacionais nas suas regras mais fundamentais, que possivelmente por estarem no texto legal do país são queridas pela sociedade que formulou a regra, então, evita-se que equivocadamente uma norma oriunda de um acordo estrangeiro adentre nos ordenamentos nacionais a abalar estruturas básicas sobre o qual se formulou as leis dos países, conforme Piloni (2001, p. 77). Percebe-se nesse caso que a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados estabelece a exigência de que os pactos sejam cumpridos, que os Estados ajam de boa-fé e não violem arbitrariamente as regras para as quais se submeteram, mas concomitantemente busca um equilíbrio para que isso tudo não seja um mecanismo de descaracterização das normas nacionais. Mazzuoli (2001, p. 56) aborda o artigo 46:

O art. 46 da Convenção de Viena de 1969, passou a estabelecer, assim, um meio termo entre as teorias constitucionalista e internacionalista, impedindo a invocação da norma de direito interno para justificar o não cumprimento do tratado (concepção internacionalista), salvo o caso de tratar-se de violação manifesta de norma constitucional de fundamental importância (concepção constitucionalista), entendendo-se por manifesta a violação objetivamente evidente para qualquer Estado que proceda, na matéria, de conformidade com a prática normal e de boa-fé. Ou seja, o art. 46 da Convenção procurou manter um equilíbrio entre a segurança jurídica, necessária ao bom funcionamento do direito internacional, e o respeito à democracia [...].

Segundo Chiappini (2011, p. 24), o motivo que levou o Brasil a ratificar somente quarenta anos depois a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados foi,

basicamente, a demora de envio pela Presidência da República para apreciação pelo Congresso Nacional do projeto e em seguida, a demora na apreciação. Em 1992, no governo de Fernando Collor de Mello, o Congresso Nacional recebeu para apreciação o documento e em 1995 foi aprovado pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, mas ficou sendo discutida a necessidade de referendo parcial pelo Congresso Nacional dos tratados internacionais celebrados pelo chefe do Executivo federal até se decidir que o Legislativo pode apresentar emendas aos acordos. Então, em 2009, chegou ao Senado e em seguida a promulgação com reservas aos artigos 25, que dá possibilidade para que tratados internacionais sejam provisoriamente aplicados, e 66, que dá para a Corte Internacional de Justiça a competência para resolver as lides entre os Estados acerca da forma como aplicar tratados internacionais. Conforme Chiappini (2011, p. 24-25) as ressalvas ocorreram pelo seguinte:

O artigo 25 da Convenção, [...] não se encontra em vigor no Brasil. Segundo voto do relator da Comissão de Relações Exteriores, deputado Antonio Carlos Mendes Thame, esse dispositivo contraria o 49, I, da Constituição Federal que trata da competência do Congresso Nacional acerca da resolução definitiva dos tratados. De fato, a Carta Magna impede que o procedimento de incorporação.

O artigo 66 [...] foi amplamente discutido no Congresso Nacional, uma vez que existiam dúvidas sobre a compatibilidade desse dispositivo com o ordenamento jurídico brasileiro. A posição que prevaleceu foi a que o país deveria opor reserva a esse artigo justamente por não se vincular a cláusula facultativa de jurisdição obrigatória, ou cláusula opcional, consagrada pelo artigo 36 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça.

Há ainda a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais de 1986, que funciona como uma complementação da Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados, que lida somente com os acordos firmados entre Estados. Conforme Rezek (2011, p. 38)

Na última assertiva do preâmbulo, a Convenção de Viena declara, implicitamente, sua insuficiência para a cobertura de todos os aspectos do direito dos tratados, ao lembrar que o direito internacional costumeiro prosseguirá regendo as questões não versadas no texto. A Convenção de 1969 diz respeito apenas ao vínculo convencional entre Estados. Outra Convenção de igual substância celebrou-se, também em Viena, em 1986, sobre tratados entre Estados e organizações internacionais, ou somente

entre estas últimas. No início de 2010 essa convenção, ratificada por menos que trinta países, ainda não havia entrado em vigor.

A importância do documento de 1986 é abranger a mais de uma espécie de tratado internacional, ficando mais completa a regulação dessa espécie de legislação. Ocorre que o Brasil é signatário desde a formulação e até hoje ainda não a ratificou, aliás, para a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais viger, necessárias são as ratificações de 35 Estados, número que não foi alcançado ainda, fato que a torna inaplicável.

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