• Nenhum resultado encontrado

Independentemente da via interpretativa, a partir da qual se compreende a divis˜ao dos dois passos da Dedu¸c˜ao Transcendental B, ´e importante ter em mente que o segundo passo, embora represente um acr´escimo `a exposi¸c˜ao, alcan¸ca um resultado muito semelhante ao do primeiro. A diferen¸ca fundamental reside em compreender o ato de liga¸c˜ao em geral sob a restri¸c˜ao da especificidade da sensibilidade humana, em que os objetos emp´ıricos s˜ao dados. Por conseguinte, ´e poss´ıvel verificar que existe uma convergˆencia entre os dois passos, pois o segundo passo demonstra como a conclus˜ao do primeiro passo vale tamb´em para as condi¸c˜oes espec´ıficas do modo como os objetos emp´ıricos s˜ao dados na sensibilidade humana.

Essa convergˆencia dentre os dois passos pode ser verificada a partir da conclus˜ao do §26 em compara¸c˜ao com a conclus˜ao do §20. A conclus˜ao do §26 ´e a seguinte:

Possu´ımos formas a priori tanto da intui¸c˜ao sens´ıvel externa como da interna nas representa¸c˜oes de espa¸co e de tempo; e a essas sempre tem de ser conforme a s´ıntese de apreens˜ao do m´ultiplo do fenˆomeno, pois ele s´o pode acontecer por meio dessas formas. Por´em, espa¸co e tempo n˜ao s˜ao representados a priori me- ramente como formas, mas como intui¸c˜oes mesmas (que contˆem um m´ultiplo); e, assim, com a determina¸c˜ao da unidade desse m´ultiplo nelas (cf.. Est´etica Trans- cendental). Portanto, a unidade da s´ıntese do m´ultiplo, fora de n´os ou em n´os,

por meio do que tamb´em uma liga¸c˜ao de tudo que deve ser representado como de- terminado no espa¸co e no tempo, j´a ´e dada a priori como condi¸c˜ao da s´ıntese de toda apreens˜ao em concomitˆancia [zugleich] com (n˜ao em) essas intui¸c˜oes. Essa unidade sint´etica, por´em, n˜ao pode ser outra sen˜ao a da liga¸c˜ao do m´ultiplo de uma intui¸c˜ao em geral dada em uma consciˆencia origin´aria, conforme `as catego- rias, apenas aplicada a nossa intui¸c˜ao sens´ıvel. Consequentemente, toda s´ıntese, por meio da qual a pr´opria percep¸c˜ao se torna poss´ıvel, est´a sob as categorias e, visto que a experiˆencia ´e cogni¸c˜ao por meio de percep¸c˜oes concatenadas, ent˜ao as categorias s˜ao condi¸c˜oes de possibilidade da experiˆencia e, desse modo, tamb´em valem a priori a todos objetos da experiˆencia. (KrV, B160-161)

A conclus˜ao do §26 estabelece, por meio do espa¸co e do tempo, a rela¸c˜ao necess´aria entre a apreens˜ao do m´ultiplo sens´ıvel e a apercep¸c˜ao transcendental ou, ainda em outros termos, ela relaciona a consciˆencia do dado sens´ıvel com a autoconsciˆencia origin´aria. A despeito, por´em, das representa¸c˜oes do espa¸co e do tempo, esse resultado ´e semelhante ao obtido na conclus˜ao do §20, em que Kant afirma:

O dado m´ultiplo em uma intui¸c˜ao sens´ıvel est´a necessariamente sob a unidade origin´ario-sin´etica da apercep¸c˜ao, pois somente por meio dela a unidade da in- tui¸c˜ao ´e poss´ıvel (§17). Aquela opera¸c˜ao do entendimento, por´em, por meio da qual o m´ultiplo de representa¸c˜oes dadas (sejam elas intui¸c˜oes ou conceitos) ´

e trazido sob uma apercep¸c˜ao em geral, ´e a fun¸c˜ao l´ogica do julgar [Funktion der Urteile] (§19). Portanto, todo m´ultiplo, na medida em que ele ´e dado em Uma intui¸c˜ao emp´ırica, ´e determinado em vista de uma fun¸c˜ao l´ogica de julgar [Funktionen zu urteilen], por meio do que, ele ´e trazido a uma consciˆencia em geral. Ora, as categorias, por´em, n˜ao s˜ao outra coisa sen˜ao precisamente fun¸c˜oes da julgar , na medida em que o m´ultiplo de uma intui¸c˜ao dada ´e determinada em vista a elas (§13). Portanto, tamb´em, o m´ultiplo em uma intui¸c˜ao dada est´a necessariamente sob categorias17. (KrV, B143)

O §20 tem in´ıcio com a afirma¸c˜ao expl´ıcita de que o dado sens´ıvel (dado m´ultiplo em uma intui¸c˜ao sens´ıvel) cai necessariamente sob a unidade origin´ario-sint´etica da apercep¸c˜ao.

17Das mannigfaltige in einer sinnlichen Anschauung Gegebene geh¨ort notwendig unter die urspr¨ungli-

che synthetische Einheit der Apperzeption, weil durch diese Einheit der Anschauung allein m¨oglich ist. (§17.) Diejenige Handlung des Verstandes aber, durch die das Mannigfaltige gegebener Vorstellungen (sie m¨ogen Anschauungen oder Begriffe sein) unter eine Apperzeption ¨uberhaupt gebracht wird, ist die logische Funktion der Urteile. (§19.) Also ist alles Mannigfaltige, so fern es in Einer empirischen Anschauung ge- geben ist, in Ansehung einer der logischen Funktionen zu urteilen bestimmt, durch die es n¨amlich zu einem Bewußtsein ¨uberhaupt gebracht wird. Nun sind aber die Kategorien nichts andres, als eben Funktionen zu urteilen, so fern das Mannigfaltige einer gegebenen Anschauung in Ansehung ihrer bestimmt ist. (§13.) Also steht auch das Mannigfaltige in einer gegebenen Anschauung notwendig unter Kategorien.

Esse resultado ´e idˆentico ao resultado geral. A partir dessa semelhan¸ca, torna-se poss´ıvel compreender a raz˜ao que leva algumas interpreta¸c˜oes a considerar a Dedu¸c˜ao Transcen- dental B como constitu´ıda de duas provas que alcan¸cam o mesmo resultado. Contudo, dentre as duas conclus˜oes contidas na Dedu¸c˜ao Transcendental B, reside uma diferen¸ca importante, que ´e precisamente o papel do espa¸co e do tempo na rela¸c˜ao da apercep¸c˜ao transcendental com o objeto dado por meio de um m´ultiplo na sensibilidade humana.

´

E admiss´ıvel que se verifique essa diferen¸ca a partir da segunda al´ınea do §21, em que Kant afirma que, no primeiro passo, ainda n˜ao foi considerado o modo como os objetos podem ser dados na sensibilidade humana (KrV, B145). De fato, essa passagem ´e funda- mental para a compreens˜ao do segundo passo, pois esclarece que a validade objetiva das categorias ainda tem de levar em considera¸c˜ao o espa¸co e o tempo. Por´em, a semelhan¸ca das conclus˜oes do §20 e do §26 assinala uma caracter´ıstica importante acerca do espa¸co e do tempo e que, somente a seu respeito, ´e que a conclus˜ao do §26 ser´a poss´ıvel. Essa caracter´ıstica ´e a identidade representacional entre o dado e o pensado, quando os objetos em quest˜ao s˜ao os pr´oprios espa¸co e tempo.

Uma vez que o §26 alcan¸ca, pela via sens´ıvel, um resultado semelhante ao obtido no §20, isto ´e, a de que a consciˆencia do dado sens´ıvel, ou, ainda, a apercep¸c˜ao emp´ırica, est´a necessariamente sob a unidade origin´ario-sint´etica da apercep¸c˜ao, por que raz˜ao, ent˜ao, um segundo passo se faz necess´ario? Embora o §21 esclare¸ca que ainda n˜ao foi levado em considera¸c˜ao o modo como as intui¸c˜oes s˜ao dadas na sensibilidade humana, ´e preciso ter em mente que, em certa medida, primeiro passo j´a estabeleceu os limites do uso cognitivo do entendimento e j´a deixou expl´ıcito que toda intui¸c˜ao sens´ıvel est´a necessariamente sob as categorias. Desse modo, o §21 n˜ao anuncia um passo al´em dos resultados obtidos, mas sim um passo que deve convergir com o primeiro pela via sens´ıvel. Por esse motivo, o §21 esclarece que ainda n˜ao se considerou o espa¸co e o tempo. Ent˜ao, ´e preciso compreen- der que esse esclarecimento n˜ao implica na necessidade de um passo suplementar ao que j´a foi dado no primeiro, mas ele precisa demonstrar que a determina¸c˜ao do espa¸co e do tempo, mediante a s´ıntese transcendental da imagina¸c˜ao, desempenha, na esfera sens´ıvel, a mesma fun¸c˜ao, e em dependˆencia, das fun¸c˜oes l´ogicas do julgar. Em outros termos, a

segunda al´ınea do §21 n˜ao estabelece um segundo passo que vai al´em, mas sim um que con- verge ao resultado obtido no primeiro, por´em, pela via sens´ıvel. O segundo passo pressup˜oe o primeiro na medida em que tem por fundamento as regras judicativas estabelecidas no §19, mas realiza essa convergˆencia demonstrando que essas regras s˜ao expressas no sens´ıvel por meio das representa¸c˜oes do espa¸co e do tempo, que resultam da s´ıntese transcendental da imagina¸c˜ao.

´

E importante notar que a imagina¸c˜ao como efeito do entendimento na sensibilidade tamb´em consiste em uma faculdade de ligar representa¸c˜oes. A sua esfera produtiva, por- tanto, consiste em representar os objetos n˜ao como se d˜ao `a sensibilidade, mas que podem ser nela representados por um ato da imagina¸c˜ao. Esses objetos s˜ao o espa¸co e o tempo. Por conseguinte, a s´ıntese transcendental da imagina¸c˜ao n˜ao tem outra fun¸c˜ao sen˜ao uni- ficar as representa¸c˜oes do pr´oprio espa¸co e do pr´oprio tempo.

A partir dessa caracter´ıstica da s´ıntese transcendental da imagina¸c˜ao, o segundo passo n˜ao converge apenas argumentativamente com o primeiro, mas, tamb´em, na medida em que relaciona, mediante a s´ıntese transcendental da imagina¸c˜ao, as representa¸c˜oes do espa¸co e do tempo com a unidade origin´ario-sint´etica da apercep¸c˜ao. De modo mais expl´ıcito, as unidades sint´eticas do espa¸co e do tempo s˜ao expressas como o resultado de um ato de s´ıntese, em conformidade com unidade origin´ario-sint´etica da apercep¸c˜ao, nos sentidos externo e interno, respectivamente.

Com base nisso, ´e preciso compreender o fundamento que rege a liga¸c˜ao em geral (cap´ıtulo 2) e como esse fundamento se aplica `a apreens˜ao do objeto dado nas repre- senta¸c˜oes do espa¸co e do tempo por interm´edio da s´ıntese transcendental da imagina¸c˜ao (cap´ıtulo 3).

Cap´ıtulo 2

A unifica¸c˜ao do m´ultiplo da intui¸c˜ao

em geral pela s´ıntese intelectual

O cap´ıtulo anterior discutiu diversas interpreta¸c˜oes da estrutura argumentativa da Dedu¸c˜ao Transcendental B para poder, por fim, propor uma interpreta¸c˜ao pr´opria. Basi- camente, o cap´ıtulo procurou demonstrar que os dois passos da prova da Dedu¸c˜ao Trans- cendental B devem ser articulados em fun¸c˜ao de dois tipos de s´ıntese. O primeiro passo deve ser considerado por meio da s´ıntese intelectual que unifica o m´ultiplo de uma intui¸c˜ao em geral. O segundo passo deve ser considerado por meio da s´ıntese figurativa que unifica o m´ultiplo de uma intui¸c˜ao emp´ırica. Esses dois tipos de s´ıntese, por´em, n˜ao representam duas atividades distintas do entendimento, mas sim duas perspectivas distintas do mesmo ato. A s´ıntese intelectual do primeiro passo corresponde ao ato de unifica¸c˜ao do m´ultiplo considerado a partir de seu fundamento intelectual, ou seja, a partir do entendimento como mera faculdade de ligar representa¸c˜oes. Em complemento, a s´ıntese figurativa do segundo passo corresponde ao mesmo ato de unifica¸c˜ao, por´em, considerado na sua aplica¸c˜ao `a sensibilidade e, assim, ao objeto empiricamente dado.

No que se segue, deve-se compreender em que precisamente consiste o ato de unifica¸c˜ao do m´ultiplo das representa¸c˜oes. O presente cap´ıtulo procura investigar mais detalhada- mente a esfera do ato de unifica¸c˜ao do m´ultiplo contido no primeiro passo. Procura, assim,

esclarecer os fundamentos da liga¸c˜ao em geral e como eles se aplicam ao m´ultiplo de uma intui¸c˜ao em geral.

No §20, que encerra o primeiro passo da prova, encontra-se a seguinte conclus˜ao:

O dado m´ultiplo em uma intui¸c˜ao sens´ıvel est´a necessariamente sob a unidade origin´ario-sin´etica da apercep¸c˜ao, pois somente por meio dela a unidade da in- tui¸c˜ao ´e poss´ıvel (§17). Aquela opera¸c˜ao do entendimento, por´em, por meio da qual o m´ultiplo de representa¸c˜oes dadas (sejam elas intui¸c˜oes ou conceitos) ´

e trazido sob uma apercep¸c˜ao em geral, ´e a fun¸c˜ao l´ogica do julgar [Funktion der Urteile] (§19). Portanto, todo m´ultiplo, na medida em que ele ´e dado em Uma intui¸c˜ao emp´ırica, ´e determinado em vista de uma fun¸c˜ao l´ogica de julgar [Funktionen zu urteilen], por meio do que, ele ´e trazido a uma consciˆencia em geral. Ora, as categorias, por´em, n˜ao s˜ao outra coisa sen˜ao precisamente fun¸c˜oes da julgar , na medida em que o m´ultiplo de uma intui¸c˜ao dada ´e determinada em vista a elas (§13). Portanto, tamb´em, o m´ultiplo em uma intui¸c˜ao dada est´a necessariamente sob categorias. (KrV, B143)

O §20 afirma, como conclus˜ao do primeiro passo, que o m´ultiplo de uma intui¸c˜ao dada est´a necessariamente sob as categorias. O mesmo ´e afirmar que o m´ultiplo dado sob uma unidade na intui¸c˜ao est´a necessariamente sujeito `a unidade origin´ario-sint´etica da aper- cep¸c˜ao mediante a determina¸c˜ao das categorias.

O §20 consiste em cinco afirma¸c˜oes estruturadas em um polissilogismo1. As afirma¸c˜oes s˜ao as seguintes: (1) o dado m´ultiplo em uma intui¸c˜ao tem rela¸c˜ao necess´aria com a uni- dade origin´ario-sint´etica da apercep¸c˜ao, pois a sua unidade s´o ´e poss´ıvel em fun¸c˜ao dela; (2) todo m´ultiplo ´e trazido sob uma apercep¸c˜ao, isto ´e, todo m´ultiplo ´e unificado em uma consciˆencia por meio das fun¸c˜oes l´ogicas do julgar e em conformidade com a unidade ori- gin´ario-sint´etica da apercep¸c˜ao; (3) se o m´ultiplo ´e dado em uma intui¸c˜ao, ent˜ao, ele ´e determinado com base nas fun¸c˜oes l´ogicas do julgar; (4) As categorias s˜ao as fun¸c˜oes logi- cas do julgar na sua rela¸c˜ao com o m´ultiplo de uma intui¸c˜ao dada; (5) o m´ultiplo em uma intui¸c˜ao dada est´a necessariamente sob categorias.

A estrutura polissilog´ıstica do §20 consiste em um arranjo de dois silogismos. O pros- silogismo, S1, tem por premissas as afirma¸c˜oes (1) e (2) e por conclus˜ao a afirma¸c˜ao (3).

1Cabe observar que Allison (2015, p.369) ´e um comentador que chama aten¸ao para a estrutura polis-

O epissilogismo, S2, tem por premissas as afirma¸c˜oes (3) e (4) e por conclus˜ao a afirma¸c˜ao

(5). De modo mais ilustrativo, os silogismos presentes no §20 s˜ao os seguintes:

S1

(1) A unidade do m´ultiplo em uma intui¸c˜ao s´o ´e poss´ıvel com rela¸c˜ao `a unidade origin´ario- sint´etica da apercep¸c˜ao (Autoconsciˆencia)

(2) Uma representa¸c˜ao ´e trazida `a unidade da consciˆencia por meio das fun¸c˜oes l´ogicas do julgar.

(3) Se o m´ultiplo ´e dado em intui¸c˜ao unificada, ent˜ao ele ´e determinado com base nas fun¸c˜oes l´ogicas do julgar

,

S2

(3) Se o m´ultiplo ´e dado em uma intui¸c˜ao, ent˜ao ele ´e determinado com base nas fun¸c˜oes l´ogicas do julgar

(4) As categorias s˜ao as fun¸c˜oes logicas do julgar na sua rela¸c˜ao com o m´ultiplo de uma intui¸c˜ao dada.

(5) o m´ultiplo em uma intui¸c˜ao dada est´a necessariamente sob categorias

Esse polissilogismo n˜ao apenas exp˜oe a estrutura argumentativa do §20, mas apresenta tamb´em a estrutura argumentativa de todo o primeiro passo da Dedu¸c˜ao Transcendental B. Em S1, encontram-se duas referˆencias: a premissa (1) alude ao §17, enquanto a pre-

missa (2) alude ao §19. Com base nessas alus˜oes, ´e poss´ıvel notar que o primeiro passo est´a quase todo contido em S1. Em contrapartida, a contribui¸c˜ao efetiva do §20 ao argumento

da prova est´a contido apenas em S2.

Essa divis˜ao permite compreender que o primeiro passo da prova da Dedu¸c˜ao Trans- cendental B, cujo objetivo ´e demonstrar o ato de unifica¸c˜ao do m´ultiplo dado por meio de uma s´ıntese intelectual, consiste na consecu¸c˜ao de trˆes etapas. A primeira etapa consiste em demonstrar que a unidade da intui¸c˜ao tem uma rela¸c˜ao necess´aria com a unidade ori- gin´ario-sint´etica da apercep¸c˜ao. A segunda etapa consiste em demonstrar que as fun¸c˜oes l´ogicas do julgar d˜ao o modo como essa rela¸c˜ao necess´aria ocorre. Por fim, a terceira etapa consiste em demonstrar que, uma vez que as categorias s˜ao o modo de aplica¸c˜ao das fun¸c˜oes l´ogicas do julgar ao m´ultiplo sens´ıvel, ent˜ao ´e por meio delas que o m´ultiplo da intui¸c˜ao ´e trazido `a unidade origin´ario-sint´etica da apercep¸c˜ao, ou seja, ´e representado sob a unidade na intui¸c˜ao.

cada uma delas. O primeiro fundamento diz respeito ao entendimento como faculdade de liga¸c˜ao. O segundo diz respeito `a unidade origin´ario-sint´etica da apercep¸c˜ao, de que deriva toda unidade poss´ıvel das demais representa¸c˜oes.

2.1

O entendimento como a faculdade de liga¸c˜ao

Ao longo da Cr´ıtica da Raz˜ao Pura, ´e poss´ıvel encontrar mais de uma defini¸c˜ao de entendimento. Exemplo de algumas defini¸c˜oes podem ser encontrados no cap´ıtulo “Do uso l´ogico em geral do entendimento”, onde ele ´e definido como a faculdade de julgar (KrV, A69/B94), e no §17, onde ele ´e definido como a faculdade de cogni¸c˜oes (KrV, B137). Essas defini¸c˜oes de entendimento levantam a quest˜ao acerca de sua rela¸c˜ao e da primazia dentre elas2. A partir dessa pergunta, surge uma quest˜ao muito mais fundamental: a quest˜ao

sobre a rela¸c˜ao entre a l´ogica formal e a l´ogica transcendental. Aqui, por´em, como o ob- jetivo consiste em demonstrar o papel do entendimento como na unifica¸c˜ao do m´ultiplo sens´ıvel (objetivo do cap´ıtulo) e em demonstrar como ele opera sobre as representa¸c˜oes do espa¸co e do tempo (objetivo geral da tese), procura-se centrar a presente investiga¸c˜ao no papel do entendimento como faculdade meramente capaz de unificar o m´ultiplo dado das representa¸c˜oes. Para isso, ´e poss´ıvel investigar a fun¸c˜ao cognitiva do entendimento como a faculdade respons´avel pelo ato de liga¸c˜ao.

Todavia, ´e importante destacar que, ao longo mesmo do primeiro passo Dedu¸c˜ao Trans- cendental B, ´e poss´ıvel notar que essas trˆes defini¸c˜oes assentam-se na mesma caracter´ıstica do entendimento. A cogni¸c˜ao, enquanto ato de conhecer, consiste na liga¸c˜ao de um m´ultiplo sob um conceito e o modo como essa liga¸c˜ao ocorre se d´a em rela¸c˜ao `as fun¸c˜oes l´ogicas do julgar. Por conseguinte, essas trˆes defini¸c˜oes assinalam o entendimento como uma facul- dade meramente ativa.

Com base nessa considera¸c˜ao, a Dedu¸c˜ao Transcendental B tem in´ıcio no §15, quando

2Longuenesse (1993, pp. xvi-ss.), por exemplo, trata dessa quest˜ao logo no in´ıcio de sua obra e atribui

Kant introduz a no¸c˜ao de liga¸c˜ao em geral:

O m´ultiplo das representa¸c˜oes pode ser dado em uma intui¸c˜ao que ´e mera- mente sens´ıvel, isto ´e, que n˜ao ´e nada al´em da receptividade; e a forma dessa intui¸c˜ao pode residir a priori em nossa capacidade de representa¸c˜ao, sem que seja outro modo al´em de como o sujeito ´e afetado. Isolada, a liga¸c˜ao (conjuctio) de um m´ultiplo em geral nunca pode vir a n´os por meio dos sentidos e, por- tanto, ao mesmo tempo tamb´em n˜ao pode estar contida na forma da intui¸c˜ao sens´ıvel; pois ela ´e um ato da espontaneidade do poder de representa¸c˜ao e, visto que se tem de nome´a-la de entendimento, `a diferen¸ca da sensibilidade, ent˜ao toda liga¸c˜ao, possamos ser-nos conscientes dela ou n˜ao, possa ser uma liga¸c˜ao do m´ultiplo da intui¸c˜ao ou de v´arios conceitos e, no caso da primeira, da intui¸c˜ao sens´ıvel ou da n˜ao sens´ıvel, ´e uma a¸c˜ao do entendimento, que estabelecer´ıamos com a denomina¸c˜ao geral de s´ıntese, para, por meio disso, assinalar, ao mesmo tempo, que n˜ao podemos nos representar como no objeto, sem que antes tenha- mos ligado; e, sob todas representa¸c˜oes, a liga¸c˜ao ´e a ´unica que n˜ao ´e dada por meio de objetos, mas s´o pode ser verificada no pr´oprio sujeito, porque ela ´e um ato de sua autoatividade. Aqui, torna-se f´acil de notar que esse ato tem de ser originariamente uno e tem de valer igualmente para toda liga¸c˜ao; e que a an´alise (Analysis), que parece ser seu oposto, sempre a pressup˜oe; pois, onde o entendi- mento nada ligou anteriormente, ele nada pode analisar, porque apenas por meio dele algo pˆode ser dado como ligado ao poder de representa¸c˜ao3(KrV, B129-130)

Dentre as afirma¸c˜oes contidas na al´ınea de abertura do §15, a que merece maior des- taque ´e a de que a liga¸c˜ao ´e um ato da autoatividade do sujeito. Todas as afirma¸c˜oes