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Tanto o §21 quanto o §26 relacionam cada um dos passos da prova a uma no¸c˜ao de intui¸c˜ao. O primeiro passo ´e definido por meio da rela¸c˜ao das categorias com a intui¸c˜ao em geral: “[...] a partir do que j´a foi dito anteriormente (§20), [a categoria] prescreve a uma intui¸c˜ao em geral dada [...]” (§21); “[...] apresenta-se a possibilidade delas [categorias] como cogni¸c˜oes a priori dos objetos de uma intui¸c˜ao em geral [...]” (§26). O segundo passo, por sua vez, ´e definido por meio da rela¸c˜ao das categorias com a intui¸c˜ao emp´ırica: “[...] [n]o que se segue (§26), ser´a demonstrado, a partir da maneira como a intui¸c˜ao emp´ırica ´e dada na sensibilidade [...]” (§21); “dever´a ser esclarecida, por meio das categorias, a pos- sibilidade dos objetos que s´o podem sempre aparecer em nossos sentidos [ou seja, aparecer por meio de uma intui¸c˜ao emp´ırica]”(§26). Cada uma dessas no¸c˜oes de intui¸c˜ao, tal como apresentada no §24, est´a associada a um modo espec´ıfico de considerar a s´ıntese:

Essa s´ıntese do m´ultiplo da intui¸c˜ao sens´ıvel, que ´e necess´aria e poss´ıvel a pri- ori , pode ser nomeada de figurativa (synthesis speciosa), em diferen¸ca daquela que foi pensada em vista do m´ultiplo de uma intui¸c˜ao em geral e se chama liga¸c˜ao do entendimento (); ambas s˜ao transcendentais, n˜ao apenas porque elas pr´oprias antecedem a priori , mas tamb´em porque fundam a possibilidade de outras cogni¸c˜oes14. (KrV, B151)

O §24 estabelece uma nomenclatura nova `a no¸c˜ao de s´ıntese. A s´ıntese que confere unidade ao m´ultiplo da intui¸c˜ao sens´ıvel chama-se s´ıntese figurativa. Essa denomina¸c˜ao ´e feita para diferenci´a-la da liga¸c˜ao do entendimento ou, como Kant tamb´em nomeia com base no termo latino, de s´ıntese intelectual (synthesis intellectualis). A s´ıntese intelectual unifica o m´ultiplo de uma intui¸c˜ao em geral.

A estrutura da prova do §21 estabelece o primeiro passo em referˆencia `a intui¸c˜ao em geral e o segundo em referˆencia `a intui¸c˜ao emp´ırica (intui¸c˜ao sens´ıvel humana). Por meio do §24, ent˜ao, ´e poss´ıvel que se recoloque a divis˜ao dos dois passos em fun¸c˜ao dos dois tipos de s´ınteses apresentados15. Desse modo, o primeiro passo deve ser considerado por meio da atividade de uma s´ıntese intelectual sobre o m´ultiplo da intui¸c˜ao em geral, enquanto o segundo passo deve ser considerado por meio da atividade da s´ıntese figurativa sobre o m´ultiplo da intui¸c˜ao emp´ırica.

Com base nessa passagem, ´e poss´ıvel retomar a quest˜ao proposta no in´ıcio do presente cap´ıtulo, a saber, a rela¸c˜ao entre a liga¸c˜ao apresentada no §15 e a s´ıntese apresentada no

14Diese Synthesis des Mannigfaltigen der sinnlichen Anschauung, die a priori m¨oglich und notwen-

dig ist, kann fig¨urlich ( synthesis speciosa) genannt werden, zum Unterschiede von derjenigen, welche in Ansehung des Mannigfaltigen einer Anschauung ¨uberhaupt in der bloßen Kategorie gedacht wurde, und Verstandesverbindung ( synthesis intellectualis) heißt; beide sind transzendental, nicht bloß weil sie selbst a priori vorgehen, sondern auch die M¨oglichkeit anderer Erkenntnis a priori gr¨unden.

15E preciso destacar que a reorienta¸´ ao da compreens˜ao dos dois passos em fun¸ao dos dois tipos de s´ıntese presentes na Dedu¸c˜ao Transcendental B, em larga medida, ´e influenciado pela interpreta¸c˜ao de Longuenesse (1993, pp.233-236). A comentadora compreende o segundo passo como uma radicaliza¸c˜ao do argumento proposto no primeiro, de modo que, ao cabo, torna-se necess´ario uma revis˜ao da Est´etica Transcendental pela Dedu¸c˜ao Transcendental B. Na presente tese, por´em, embora ela alcance um resultado aproximado ao de Longuenesse (1993), o intuito em se reconsiderar a estrutura argumentativa da Dedu¸c˜ao Transcendental B por interm´edio de duas s´ınteses consiste mais precisamente em reconsiderar a prova da validade objetiva das categorias n˜ao mais em fun¸c˜ao de representa¸c˜oes distintas – intui¸c˜ao em geral e intui¸c˜ao emp´ırica– mas em fun¸c˜ao de esferas de aplica¸c˜ao da mesma atividade do entendimento, o que se observa a partir dos dois tipos de s´ıntese assinalados pelo §24 – s´ıntese intelectual e s´ıntese figurativa.

§10. Uma das dificuldades era o fato do §10 definir a s´ıntese como uma fun¸c˜ao da ima- gina¸c˜ao, enquanto a liga¸c˜ao ´e definida como um ato do entendimento. A esse respeito, o §24 tamb´em esclarece que a imagina¸c˜ao ´e uma efeito do entendimento na sensibilidade:

Apenas a s´ıntese figurativa, quando se refere `a unidade origin´ario-sint´etica da apercep¸c˜ao, isto ´e, `a unidade transcendental que ´e pensada nas categorias, tem de chamar-se de s´ıntese transcendental da imagina¸c˜ao, para diferenciar-se da mera liga¸c˜ao intelectual. Imagina¸c˜ao ´e a faculdade de se representar objetos na intui¸c˜ao tamb´em sem a sua presen¸ca. Ora, visto que toda intui¸c˜ao nossa ´

e sens´ıvel, ent˜ao a imagina¸c˜ao pertence `a sensibilidade, devido `a condi¸c˜ao sub- jetiva sob a qual ela exclusivamente pode dar aos conceitos do entendimento uma intui¸c˜ao correspondente; na medida em que, por´em, a sua s´ıntese ´e um exerc´ıcio da espontaneidade – que ´e determinante, e n˜ao como o sentido, que ´e meramente determin´avel –, por meio do que pode determinar a priori o sentido de sua forma em conformidade `a unidade da apercep¸c˜ao, ent˜ao a imagina¸c˜ao ´e a faculdade de determinar a priori a sensibilidade; e sua s´ıntese das intui¸c˜oes, em conformidade `as categorias, tem de ser a s´ıntese transcendental da imagina¸c˜ao, que ´e um efeito do entendimento na sensibilidade e que ´e a primeira aplica¸c˜ao sua (ao mesmo tempo o fundamento de todas as demais) a objetos da intui¸c˜ao poss´ıvel para n´os. [...]16. (KrV, B151-152)

A imagina¸c˜ao ´e definida por Kant como a faculdade de representar objetos tamb´em sem sua presen¸ca na intui¸c˜ao. Por essa raz˜ao, a imagina¸c˜ao ´e, por um lado, sens´ıvel, mas, por outro, tamb´em se refere ao entendimento, uma vez que sua s´ıntese ´e um efeito da espontaneidade. Desse modo, a s´ıntese do §10 atribu´ıda `a imagina¸c˜ao, no §24, ´e elucidada como resultante do ato do entendimento na sensibilidade.

Como consequˆencia, no primeiro passo da prova, ´e poss´ıvel considerar a liga¸c˜ao do en- tendimento como o ato em geral de unificar o m´ultiplo de uma intui¸c˜ao. Com base nesse

16Allein die fig¨urliche Synthesis, wenn sie bloß auf die urspr¨unglich synthetische Einheit der Apperzep-

tion, d. i. diese transzendentale Einheit geht, welche in den Kategorien gedacht wird, muß, zum Unters- chiede von der bloß intellektuellen Verbindung, die transzendentale Synthesis der Einbildungskraft heißen. Einbildungskraft ist das Verm¨ogen, einen Gegenstand auch ohne dessen Gegenwart in der Anschauung vorzustellen. Da nun alle unsere Anschauung sinnlich ist, so geh¨ort die Einbildungskraft, der subjektiven Bedingung wegen, unter der sie allein den Verstandesbegriffen eine korrespondierende Anschauung geben kann, zur Sinnlichkeit; sofern aber doch ihre Synthesis eine Aus¨ubung der Spontaneit¨at ist, welche bes- timmend, und nicht, wie der Sinn, bloß bestimmbar ist, mithin a priori den Sinn seiner Form nach der Einheit der Apperzeption gem¨aß bestimmen kann, so ist die Einbildungskraft sofern ein Verm¨ogen, die Sinnlichkeit a priori zu bestimmen, und ihre Synthesis der Anschauungen, den Kategorien gem¨aß, muß die transzendentale Synthesis der Einbildungskraft sein, welches eine Wirkung des Verstandes auf die Sinn- lichkeit und die erste Anwendung desselben (zugleich der Grund aller ¨ubrigen) auf Gegenst¨ande der uns m¨oglichen Anschauung ist.[...]

prop´osito, ainda n˜ao ´e necess´ario considerar a natureza espec´ıfica da sensibilidade humana. No segundo passo, portanto, tem de se demonstrar como esse ato, que foi pensado na esfera meramente intelectual, ´e aplicado `a especificidade da sensibilidade humana. O emprego desse ato, em raz˜ao da sensibilidade humana, traduz-se em s´ıntese figurativa, cujo corres- pondente transcendental ´e a s´ıntese transcendental da imagina¸c˜ao.

A compreens˜ao dos dois passos da Dedu¸c˜ao Transcendental B com base nesses modos de considerar a s´ıntese permite compreender que o segundo passo alcan¸ca o mesmo resul- tado obtido no primeiro, por´em, pela via sens´ıvel. Essa rela¸c˜ao pode ser considerada por meio de uma convergˆencia entre os dois passos.