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3 A contradição objetiva

3.3 Contradição: a quintessência de todas as realidades?

3.3.1 A crítica de Collett

Na crítica à noção de contradição de Hegel, Colletti procura recuperar a distinção kantiana entre “oposição real” e “oposição lógica”, ou seja, a afirmação de que “a oposição na realidade é algo diferente da oposição lógica”.542 Segundo Colletti, essa é uma das “conclusões básicas” de Kant “na sua crítica da confusão lógica-ontológica perpetrada por Leibniz e toda escola da metafísica antiga”.543

Para Kant, “quando a realidade nos é representada somente pelo entendimento puro (realitas noumenon)”, como no caso de Leibniz que — sempre de acordo com Kant — intelectualizou o mundo dos fenômenos, “não se pode pensar qualquer oposição entre as realidades, isto é, uma relação tal que, ligadas essas realidades num sujeito, anulem reciprocamente as suas consequências e que 3 – 3 = 0”.544 Noutras palavras, não se pode pensar a oposição real na medida em que toda realidade está fundada exclusivamente na tópica lógica.545 Mas, afirma Kant, deve-se afirmar no lugar da tópica lógica, a tópica transcendental:

Seja-me permitido dar o nome de lugar transcendental à posição que atribuímos a um conceito, quer na sensibilidade, quer no entendimento puro. Assim, a determinação do lugar que compete a cada conceito, conforme a diversidade do seu uso e as regras que ensinam a determinar o lugar de todos os conceitos, seria a tópica transcendental; constituiria uma doutrina que rigorosamente nos preservaria das surpresas do entendimento puro e das ilusões daí resultantes, porquanto sempre

que nega ao dado sensível qualquer autonomia e, portanto, que recusa a distinção de Kant entre a contradição lógica e a oposição real, uma recusa que resulta na simples e pura rejeição do princípio de não-contradição”. LONGUENESSE, op. cit., p. 79. Iremos, pois, tratar somente da visão de Colletti.

542 COLLETTI, L. Marxism and Hegel. Trad. L. Garner. London: NLB, 1973, p. 98. 543 Idem.

544 KrV, A 264-65, B 320, trad. p. 277.

545 “Todo o conceito, todo o título, que engloba vários conhecimentos, pode chamar-se um lugar lógico. Sobre

isso se funda a tópica lógica de Aristóteles, de que os mestres de retórica e os oradores se podiam servir, procurando em certos títulos de pensamento o que melhor convinha ao assunto proposto para sobre ele relacionar sutilmente ou falar largamente com aparência de profundidade”. Ibid., A 268-9, B 324-5, trad. p. 279.

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distinguiria a que faculdade de conhecimento pertenceriam propriamente os conceitos.546

Isso significa que apenas na ligação entre o entendimento e a sensibilidade, as duas fontes fornecedoras de representações, há a produção de “juízos objetivamente válidos acerca das coisas”, ou seja, apenas na tópica transcendental.547 Por isso, admite-se uma oposição real, pois “o real no fenômeno (realitas phaenomenon) pode certamente conter oposições e, reunida no mesmo sujeito, pode uma realidade aniquilar totalmente ou em parte a

consequência da outra”, como no caso de choque entre dois corpos em que duas forças

interagem — uma oposta a outra ou, classicamente, uma positiva e outra negativa — produzindo a anulação dessas forças (resultado zero ou, quando não há anulação, ocorre uma aceleração produzida pela força resultante).548 Para Kant, pois, a oposição real, “tal como duas forças motrizes, na medida em que atuam na mesma linha reta, atraem e impelem um ponto em direções opostas, ou como um prazer que contrabalança uma dor” acontece “em toda a parte onde A – B = 0”.549 Logo, a oposição real ocorre toda vez em que “estando uma realidade ligada a outra num sujeito, o efeito de uma anula o da outra, o que constantemente salta aos olhos em todos os obstáculos e reações da natureza, os quais, todavia, porque assentam em forças, devem ser chamados realitas phaenomena”.550

Resumindo, uma das conclusões de Kant é a de que “o princípio segundo o qual as realidades (como simples afirmações) nunca se contradizem logicamente é uma proposição verdadeira acerca das relações dos conceitos”, ou seja, admite-se o princípio de não- contradição, “mas nada significa em relação à natureza, nem com referência a qualquer coisa em si (de que não possuímos nenhum conceito)”.551 Esta é, em traços gerais, a discussão que Kant trava contra Leibniz. Colletti afirma, então, que o essencial é compreender a distinção apresentada por Kant: “a oposição na realidade é algo diferente da contradição lógica ou oposição”.552

Como Leibniz, Kant incorpora como sua premissa que a lei governante do pensamento é o princípio de (não-)contradição. Um conceito que se contradiz nega

546 Idem. 547 Ibid., A 271, B 327, trad. p. 281. 548 Idem. 549 KrV, A 265-74, B 321-30, trad. pp. 277-82. 550 Ibid., A 273, B 329, trad. p. 282. 551 Ibid., A 273, B 329, trad. pp. 281-2. 552 COLLETTI, op. cit., p. 98.

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a si mesmo. [...] Nesse sentido, as posições de Kant e Leibniz coincidem. Ambos estão vinculados ao princípio Eleático; para ambos, a revolução na lógica trazida (ou trazida à tona) por Hegel continua estranha — isto é, a expansão do Eleatismo, o reconhecimento de que a razão é a ‘identidade da identidade e da não- identidade’, uma tauto-heterologia ou dialética.553 Dessa base comum, contudo, os caminhos de Leibniz e de Kant seguem direções opostas. Para Leibniz, o princípio do pensamento é também o princípio da realidade: a possibilidade lógica é ela mesma possibilidade real. Consequentemente, aquilo que é logicamente impossível (oposição) também é impossível na realidade. Para Kant, ao contrário, o princípio de não-contradição é puramente um principium rationis; a consistência do pensamento com ele mesmo é algo outro do que a coincidência do pensamento com a realidade. Logo, a não-existência da contradição lógica não deve levar à conclusão da não-existência da oposição na realidade.554

Colletti defende, pois, que há uma relação de exterioridade e heterogeneidade entre o princípio de não-contradição e o dado empírico com respeito ao sujeito do conhecimento. Para ele é necessário manter uma distância entre o pensamento e a realidade, uma vez que a realidade afirmada pela filosofia hegeliana seria uma mera hipóstase do capital e do Estado moderno.555 Com isso Colletti pretende sustentar uma posição transcendental, mais próxima de Kant, recuperando a noção de oposição real. Pois aceitar a noção de contradição hegeliana, na medida em que ela absorve a oposição como determinação da reflexão, significaria a aniquilação da heterogeneidade entre o dado empírico e o conceito, a formulação sobre a coisa que cabe ao sujeito e o índice de reconhecimento do real como algo outro.556

553 Segundo Longuenesse e Colletti, “tauto-heterologia” é como Della Volpe nomeia a dialética do pensamento,

ou seja, da identidade da identidade e da não-identidade. Essa dialética do pensamento seria “a relação do mesmo (o universal) e do outro (as diferenciações entre esse universal) que se poderia, se se quisesse, chamar de contradição. Mas Della Volpe prefere o termo ‘tauto-heterologia’ que, na visão dele, melhor expressa a dialética dos momentos da unidade e da distinção como momentos radicalmente distintos; ele cita, para ilustrar o que ele chama de ‘funcionalidade-dialética do pensamento’, a ‘categoria como uma função e a heterogeneidade da intuição e do conceito’ de Kant.” LONGUENESSE, op. cit., pp. 80-81. Porém, enquanto Longuenesse critica a posição do princípio de tauto-heterologia de Della Volpe, Colletti concorda com Della Volpe e afirma a sua importância na construção da explicitação da heterogeneidade entre ser e pensamento.

554 COLLETTI, op. cit., pp. 99-100.

555 Cf. COLLETTI, op. cit., p. 195. Não entraremos nessa discussão sobre a interpretação marxista de Colletti da

filosofia de Hegel, ela é apenas mencionada em vista de elucidar a própria posição do autor.

556 Cf. LONGUENESSE, op. cit., p. 81. Cabe justificar a posição de Colletti de acordo com a sua crítica ao

marxismo tradicional: “Segundo Colletti, e ao contrário do que defende o ‘materialismo dialético’, não é a realidade em geral (física, biológica, social, etc.) que é dialética, mas é o capitalismo que é uma ‘metafísica real’, sendo daqui que decorre a relevância do método dialético para o estudo desta sociedade. Hegel efetuou inadvertidamente a descrição ‘correta’ de uma ‘realidade falsa’, invertida: a sociedade capitalista moderna.” MACHADO, op. cit., p. 29.

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Portanto, a importância de retomar a distinção kantiana entre “oposição real” e “contradição lógica” contra a noção de contradição objetiva de Hegel recai numa crítica mais ampla ao próprio pensamento hegeliano, considerado por Colletti como o espelhamento lógico e político, ou a descrição filosófica, da realidade moderna, capitalista. Abandonar o conceito de contradição hegeliano significaria restaurar o (não-)lugar da própria realidade, da materialidade, ou seja, das oposições que fundamentam as relações sociais na ordem capitalista. Logo, a oposição real e o princípio de não-contradição devem ser recuperados para que seja assegurada a heterogeneidade entre ser e pensamento nessa configuração social que tende à homogeneização de ambos.

Aquela distinção [entre oposição lógica e oposição real], na verdade, ao implicar a irredutibilidade da oposição ‘real’ à oposição ‘lógica’, ou da existência (o ‘algo mais’ de Kant) ao conceito, também implica a irredutibilidade de sua particularidade ou especificidade frente a um universal ou a uma oposição genérica; isto é, ela implica o fato de que aquela existência adquire sua determinidade de ser o que ela ‘é’ precisamente através da exclusão ou negação de tudo aquilo que não é. Tudo isso confirma, eu penso — apesar do quanto isso possa se chocar com hábitos arraigados do pensamento —, que é impossível desconsiderar o princípio de não-contradição precisamente quando se quer apontar para oposições materiais ou contradições, isto é, aquelas específicas (pois nada é mais pobremente garantido pela lógica dialética de Hegel do que a específica ‘espécie’ de uma coisa, noutras palavras, as entidades naturais ou finitas; é uma questão — e aqui Labriola vem à mente — de deixar ‘aberta a questão sobre a natureza empírica de cada formação particular’). Vice-versa, ela [a distinção] também confirma que é precisamente a rejeição ou a ‘suprassunção’ da não- contradição, sua substituição pela chamada ‘dialética da matéria’, que implica na diluição ou negação das oposições na realidade, isto é, na sua resolução pacífica com a razão.557