• Nenhum resultado encontrado

A interpretação lógico-formal da contradição

3 A contradição objetiva

3.3 Contradição: a quintessência de todas as realidades?

3.3.2 A interpretação lógico-formal da contradição

Tomamos Cirne-Lima como exemplo da leitura lógico-formal. Ele pretende criticar a noção de contradição de Hegel através da consideração das objeções de Popper e Trendelenburg. Seu intuito é restituir a razoabilidade da dialética hegeliana afirmando que a 557 COLLETTI, op. cit., p. 102.

141

“contradição em Hegel não é a contradição de Aristóteles e da Lógica formal, mas sim a contrariedade”.558 Seria, pois, um equívoco de Hegel afirmar a objetividade da contradição.

Para Cirne-Lima, a contrariedade é o “motor da dialética”. Mais do que uma resposta às críticas de Trendelenburg e Popper, sua interpretação pretende ser “uma exposição positiva de como se engendra a dinâmica que move o sistema” de Hegel.559 O que seria, pois, a dialética hegeliana para Cirne-Lima? Segundo ele, a dialética pode ser resumida através da fórmula “tese, antítese e síntese”; “fazer dialética” significaria, então, “demonstrar a falsidade da tese e da antítese, para, só então, passar à síntese”.560 Mas como demonstrar a falsidade de proposições contraditórias que são falsas e a verdade da síntese que resulta desses momentos contraditórios? A afirmação da contradição hegeliana significaria o abandono da própria lógica formal, ou seja, da base de todo pensamento filosófico; “desde o livro Gama de Aristóteles sabemos que quem fala uma contradição não diz absolutamente nada, pois contradição é o próprio non-sense”.561 Para Cirne-Lima, é preciso recuperar a legitimidade da filosofia de Hegel através de sua validação frente aos pressupostos lógicos elementares do cânone da filosofia formal:

O problema consiste no seguinte: segundo os dialéticos, em especial segundo Hegel, tese e antítese, na dialética, se opõem pela contradição e são ambas proposições falsas. É isso que põe o pensamento em movimento e obriga a abandonar o nível de tese e antítese e, fazendo a Aufhebung [suprassunção], elevar- se a um nível mais alto, no qual ambos os opostos então se conciliam. Os dialéticos afirmam que Aufhebung consiste num processo em que simultaneamente se supera um elemento e se guarda um outro. Aufheben [suprassumir] significaria, então, superar-guardar. A objeção de Trendelenburg e de Karl Popper, sem entrar no mérito de uma Aufhebung qualquer, se atém a um problema bem simples. Como foi afirmado acima, dialética começa com a oposição contraditória entre tese e antítese, que ambas têm que ser demonstradas como sendo proposições falsas. Ora,

558 CIRNE-LIMA, op. cit., p. 249. Uma contrariedade admite que duas proposições sejam falsas, enquanto na

contradição, se uma proposição é falsa, a outra é necessariamente verdadeira. Giannotti, por exemplo, diz que “nem todos têm consciência das dificuldades dessa tese [de que contradições reais existem] e dos pressupostos requeridos por ela”. Ele continua: “costuma-se dizer que toda mudança é contraditória, mas em geral se confundem antagonismo e contrariedade com a contradição no seu sentido estrito. A proposição contrária de ‘Todo homem é bípede’ é ‘Nenhum homem é bípede’, mas sua contraditória é ‘Algum homem não é bípede’. Duas proposições contrárias podem ser falsas, mantêm o falso em comum, mas duas proposições contraditórias perdem esse terreno, uma devendo ser verdadeira e a outra falsa”. GIANNOTTI, J. A. Certa herança marxista. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010, p. IX. O antagonismo, por sua vez, seria, por exemplo, a relação entre forças opostas que se anulam, ou o que Kant chama de “oposição real”.

559 CIRNE-LIMA, op. cit., p. 247. 560 Ibid., p. 249.

561 Ibid., p. 248.

142

diz a objeção, proposições contraditórias nunca, jamais, podem ser simultaneamente falsas. A regra, desde Aristóteles conhecida e por todos aceita, diz que, sendo uma proposição verdadeira, a proposição contraditória a ela oposta é sempre falsa. E, vice-versa: sendo uma proposição falsa, a proposição contraditória a ela oposta é sempre e necessariamente verdadeira. O que significa que duas proposições contraditórias jamais podem ser simultaneamente verdadeiras ou simultaneamente falsas. Ora, Hegel e os dialéticos afirmam que tese e antítese são proposições opostas pela contradição e afirmam também que são ambas proposições falsas. Isso é logicamente impossível. Assim sendo, a dialética repousa sobre um pressuposto lógico falso e tem que ser abandonada como uma teoria falsa. Falsa exatamente por ser contraditória.562

Em busca de recuperar a legitimidade da filosofia hegeliana, Cirne-Lima propõe uma solução na qual a dialética passaria a atender às regras da lógica formal. Nesse sentido, ele sugere a tradução de contradição por contrariedade — reintroduzindo no pensamento de Hegel a heterogeneidade absoluta que sua filosofia pretendia superar: “quando Hegel diz contradição, ele quer sempre dizer contrariedade”.563 Consequentemente, estaria assegurado à dialética o título de uma teoria verdadeira, pois condizente com os pressupostos da lógica clássica: tese e antítese poderiam ser simultaneamente falsas se consideradas como proposições contrárias, e não contraditórias entre si — isto é, como proposições externas uma à outra. Logo, a “falsidade que impele o pensamento para a síntese” continuaria exercendo seu papel de conciliação entre dois opostos.564

Segundo Cirne-Lima, sua tese pode ser comprovada através da análise do quantificador que acompanha a tese e a antítese: “se o quantificador, em ambos os casos for universal, trata-se de proposições contrárias e não de proposições contraditórias”.565 Para ele, “o sujeito lógico de todas as proposições da Lógica de Hegel é sempre o mesmo e tem sempre o mesmo quantificador universal”: o absoluto.566 Por isso, se o sujeito lógico não se modifica e é permanentemente o mesmo universal, estaria correto, segundo Cirne-Lima, afirmar que “o que Hegel chama de contradição é sempre aquilo que os lógicos chamam de contrariedade”, pois a referência das proposições falsas, contrárias, é sempre a mesma. Esta solução que ele

562 Ibid., pp. 248-49, grifo nosso. 563 Ibid., p. 249. 564 Idem. 565 Ibid., p. 250. 566 Idem. 143

propõe salvaria a dialética de Hegel das acusações de Trendelenburg e Popper.567 Para Cirne- Lima, tese e antítese se referem, pois, sempre ao sujeito lógico “sistematicamente oculto”: o “Absoluto”.568

Desse modo, para ele, as proposições são contrárias e não contraditórias, pois igualmente falsas. É a falsidade da tese e da antítese que permite ao pensamento o avanço rumo à síntese que fornecerá sua verdade. Cirne-Lima interpreta a célebre afirmação hegeliana de que “a verdade é o todo”569 no sentido de que a verdade é a síntese, o absoluto como o quantificador universal das proposições contrárias. No entanto, como o conteúdo interno das partes — em sua interpretação, o conteúdo das proposições que servem como tese e antítese — não traz em si o negativo, não há nenhuma motivação racional imanente para a passagem de um conteúdo a outro. Disso se segue que a síntese que suprassume as partes deve ser, por sua vez, uma operação inteiramente subjetiva, no sentido de um pensamento que reconhece a falsidade desta e daquela proposições e, em seguida, atina com a proposição verdadeira. A contrariedade dos conteúdos corresponde, assim, à heterogeneidade absoluta entre sujeito e objeto. Se a tradução da contradição por contrariedade é capaz de corrigir Hegel, de acordo com o cânone da lógica formal, pode-se perguntar, porém, se não seria melhor rejeitar por completo o pensamento de Hegel.