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Hipótese para uma definição de contradição

3 A contradição objetiva

3.1 A autossubsistência e a determinação essencial do negativo

3.1.1 Hipótese para uma definição de contradição

Alcançamos o ápice expositivo da Doutrina da essência com a emergência e a dissolução da contradição no (conceito de) fundamento. Neste processo, a essência se autodeterminou como fundamento através da dialética da contradição; ganhamos, pois, o fundamento da essência, ou a essência como fundamento. Se até aqui apanhamos o processo de surgimento e desaparecimento da determinação de reflexão de contradição, trata-se agora, então, de estabelecer a especificidade de seu conceito. Portanto, já está posto o processo mediante o qual a contradição se torna constitutiva do pensamento objetivo; ela mesma é objetiva. Mas o que é propriamente a contradição, considerada a mais importante determinação de reflexão da essência?

Antes de tudo, julgamos fundamental mencionar que Hegel não nos fornece uma definição positiva do conceito de contradição. É fundamental, pois, encontrar o caminho para uma possível definição. Hegel nos fornece diversos apontamentos sobre seu conceito nas três observações que estão no item da contradição, principalmente na terceira observação sobre o enunciado da contradição (“Observação 1: Unidade do positivo e do negativo”; “Observação 2: O enunciado do terceiro excluído”; “Observação 3: O enunciado da contradição”). Então cabe a nós a tentativa de formular uma definição positiva do conceito de contradição, uma vez que Hegel afirma que o desconhecimento da natureza da contradição “forma a opinião de que” ela é “algo ilegítimo, que não deveria ocorrer”, sendo afinal considerada “uma falha subjetiva”.468

A contradição atravessa todas as determinações de reflexão, desde a identidade até a oposição. Hegel afirma que “a contradição que surge na oposição é apenas o nada desenvolvido”, nada que, por sua vez, “está contido na identidade” quando ela enuncia, por exemplo, que “uma casa é — uma casa”.469 É o nada que surgiu “na expressão de que o enunciado da identidade não diz nada. Essa negação, mais adiante”, é determinada na 466 Cf. Idem; SPARBY, op. cit., p. 229.

467 Ou “vai ao fundo”, “arruína-se”. 468 WdL II, trad. p. 161.

469 Ibid., trad. p. 165.

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diversidade e na oposição, cujo desfecho é “então a contradição posta”.470 O nada desenvolvido leva à contradição que produz uma nova unidade, o zero. Porém, como procuramos mostrar, a contradição não é só o negativo, ela é o positivo e o negativo. Se ela mantém juntas todas as determinações de reflexão, ela é a determinação “mais profunda e a mais essencial”.471 É a contradição que é a “raiz de todo movimento e vitalidade”, ela vivifica o esqueleto morto das determinações transformadas em meros enunciados. As categorias da

Doutrina da essência recebem seu impulso e atividade unicamente do seu conteúdo

contraditório. Não é, pois, a identidade, largamente expressa nas filosofias de Kant e Fichte, a determinação mais essencial e imanente a tudo, mas a contradição. A força por trás da suprassunção do nada da identidade vem da própria contradição; ela é a autodeterminação e a exposição de todo automovimento.

Além disso, porém, a contradição não tem de ser tomada meramente como uma anormalidade, que apenas apareceria aqui e ali, mas ela é o negativo em sua determinação essencial, o princípio de todo automovimento [das Prinzip aller Selbstbewegung], que não consiste em nada mais senão na exposição deste. O próprio movimento exterior sensível é seu ser-aí imediato [Dasein]. Algo apenas se move não pelo fato de estar aqui nesse agora e ali num outro agora, e sim na medida em que está e não está aqui em um e mesmo agora, na medida em que nesse aqui ao mesmo tempo está e não está. Temos de conceder aos antigos dialéticos as contradições que eles apontam no movimento, mas disso não decorre que então o movimento não é, e sim antes que o movimento é a própria contradição aí-essente [daseiende].472

A explicação para tudo aquilo que é, sua essência, seu fundamento, encerra-se na contradição, pois ela é a condição de possibilidade de tudo aquilo que é vivo. Tudo que é vivo possui “essa força de apreender e suportar em si a contradição”.473 Que o pensamento seja vivo significa que ele não é um agregado de leis mortas, enunciados fixos, construções formais e proposicionais que não levam em conta o seu conteúdo específico, isto é, no limite, que não levam em conta a relação entre o sujeito e o objeto do pensamento.

O pensamento vivo, assim esboçado, é também e por isso objetivo, sendo o resultado de relações contraditórias; é construção simultânea do a priori e do a posteriori. Essa 470 Idem.

471 Idem.

472 Ibid., trad. modificada, p. 166, grifo nosso. 473 Idem.

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construção aponta para o núcleo especulativo da contradição. Hegel afirma que “o

pensamento especulativo consiste apenas no fato de que o pensamento apreende a contradição e nela a si mesmo”.474 Isso significa que o fundamento da filosofia hegeliana é a contradição e que somente através da contradição o pensamento avança; a contradição é, pois, o núcleo da lógica dialética.

A Doutrina da essência, nesse sentido, pode ser resumida como a reconstrução do conceito tradicional de essência e de reflexão através da posição da contradição como fundamento. Pode-se afirmar, pois, que a contradição é a determinação de reflexão mais essencial e profunda, a estrutura interna da própria efetividade (Wirklichkeit). O fundamento da coisa mesma, que nada mais é que a autoposição da essência, é a contradição. Hegel afirma que ela só aparece como essencial quando as determinações estão relacionadas. Se as determinações fossem consideradas unicamente em sua simplicidade — identidade como identidade, diferença como diferença, etc. —, não teríamos acesso à determinação que realiza o movimento entre as determinações.475 No entanto, as determinações só poderiam ser relacionadas se houvesse uma reconstrução no conceito de reflexão. A própria reflexão passou por uma transformação essencial: da ponente, passando pela exterior, à determinante. O pensamento especulativo contém em si essa reflexão absoluta da essência. “A reflexão rica de

espírito, para mencioná-la aqui, consiste [...] na apreensão e na expressão da contradição”.476 A reflexão da razão incorpora a contradição, ela reconhece, pois, o seu lado positivo. Se a contradição não é vista como um mero erro subjetivo, ela se torna uma parte essencial do pensamento: “atividade absoluta e fundamento absoluto”.477

Portanto, “cada determinação, cada concreto, cada conceito é essencialmente uma unidade de momentos distintos e distinguíveis, que por meio da diferença determinada,

essencial passam para momentos contraditórios”.478 Isso significa que a contradição é

objetiva, ela está na consideração da coisa mesma e não é nenhum “prejuízo, deficiência ou falha”.479 A contradição é a expressão de todo automovimento da razão. Logo, “a coisa, o sujeito, o conceito é então justamente essa unidade negativa mesma”, a contradição; “é algo em si mesmo contraditório, mas da mesma maneira” é a contradição dissolvida, ou seja, “é o

fundamento, que contém e carrega suas determinações”.480 474 Idem. 475 Cf. Ibid., trad. p. 167. 476 Idem. 477 Ibid., trad. p. 168. 478 Idem. 479 Idem. 480 Ibid., trad. pp. 168-69. 124

Qual é, pois, a diferença entre a contradição lógica e a contradição objetiva? Hegel concebe a emergência da contradição objetiva a partir da relação entre as determinações de reflexão. O que deve ficar claro é que a essência se move autonomamente e se determina por meio de suas essencialidades por causa da contradição, mas a posição desta só se dá na unidade de oposição autossubsistente. Longuenesse, por exemplo, afirma que Hegel não está preocupado em restaurar a legitimidade da contradição para a lógica formal, mas em mostrar a dupla incapacidade da lógica formal: primeiramente, essa lógica consegue lidar com a contradição, e, em segundo lugar, ela não consegue resolvê-la.481

Quando Hegel trata das determinações na forma de enunciados ele procura desenvolver a crítica de cada consideração formal no interior das determinações. Ele faz o mesmo procedimento com a contradição. Em outras palavras, ele também a considera em sua forma de enunciado. Ele afirma, porém, que o desprezo pela contradição é “um dos preconceitos fundamentais da lógica tradicional e do representar comum”.482 A contradição é “empurrada para a reflexão subjetiva, que primeiramente a poria por meio de sua relação e comparação. Mas também nessa reflexão ela não estaria propriamente dada, pois o

contraditório não poderia ser representado nem pensado”.483

Segundo Sparby, deve ficar claro que a contradição objetiva “não é a relação entre dois julgamentos em que um julgamento afirma o que o outro nega, resultando em nada”.484 Esta é a compreensão tradicional, meramente lógica, da contradição. Não há como compreender a contradição dialética se não se abandona a consideração da contradição nos termos tradicionais da lógica. Pode-se então encaminhar uma definição positiva da contradição em Hegel nos seguintes termos. Ao demonstrar que a contradição é o produto desestabilizador da unidade de oposição, Hegel indica o momento sintético já implicado na identidade dos polos opostos. Isso porque, através do momento analítico, que reconhece a autossubsistência do positivo e do negativo, encontra-se a dependência mútua e interna a cada um deles como sua natureza própria. Esse caráter sintético, por sua vez, transparece por completo na dissolução da contradição no (conceito de) fundamento. Trata-se, de acordo com nossa formulação acima, de uma construção simultânea do a priori e do a posteriori. Nesse sentido, não se trata apenas de uma reconstrução legitimadora das condições lógicas já dadas dos conceitos, mas de uma construção positiva e ontológica que transforma seus conteúdos. Trataremos disso em seguida.

481 Cf. LONGUENESSE, op. cit., p. 43. 482 WdL II, trad. p. 165.

483 Idem.

484 SPARBY, op. cit., p. 246.

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Isso significa que a razão mesma das próprias coisas contém a contradição em si. Para Sparby, a contradição em Hegel é uma contradição objetiva, e “é difícil evitar essa conclusão”.485 Para ele, e de fato em nosso entendimento, isso se evidencia quando Hegel afirma que a contradição seria não só pensada, mas também efetiva (wirklich). “É como se Hegel criasse duas esferas de existência, uma que é morta e outra que é viva. A viva pode entrar na esfera morta e, quando isso acontece, ela se mostra como contradição e movimento”.486

3.2 A força da contradição e a dissolução lógico-ontológica do pensamento