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7.2 A Crítica da Faculdade de Julgar

No documento A CONCEPÇÃO FILOSÓFICA DA IMAGINAÇÃO (páginas 198-200)

Nossa análise do tema da imaginação em Kant não poderia deixar de considerar a Crítica da Faculdade de Julgar171, pois, se a Crítica da Razão

Pura pode, de certo modo, ser considerada como a análise da maneira como o entendimento prescreve leis à natureza enquanto fenômeno, e se a Crítica da Razão Prática pode ser considerada como a análise da manei- ra como a razão prescreve leis a priori à vontade pura, a presente Crítica bem poderia ser entendida como a análise da maneira como a imagina- ção se relaciona, seja com a faculdade de prazer, seja com as faculdades do entendimento e da razão. Se, porém, a presente Crítica não é, de fato, considerada como tal, se ela não é uma “Crítica da Faculdade da Imagi- nação”, isto, em que pese as inúmeras ocasiões onde Kant, nela, parece tomar as expressões “faculdade de julgar” e “faculdade da imaginação” como sinônimas, parece atribuir uma mesma atividade, ora a uma, ora a outra dessas faculdades, isso se deve ao fato de que, ao menos na ocasião em que escreve essa Crítica, Kant difi cilmente admitiria a imaginação, “faculdade máxima da sensibilidade”, como sendo uma faculdade “su- perior” de conhecimento, mediadora entre o entendimento e a razão. Com efeito, e conforme vimos há pouco, na segunda edição da Crítica da Razão Pura, Kant, devido ao apego à tese da prioridade do tempo, acaba despojando a imaginação do caráter produtivo, da capacidade de promo- ver uma “unidade da síntese”, unidade esta que agora, na segunda edição daquela obra, Kant reserva ou atribui exclusivamente ao entendimento, tornando este, assim, e ao contrário do que ocorria na primeira edição, inteiramente independente da imaginação, imaginação esta que, desse modo, é “empurrada” para o domínio da sensibilidade. Antes, porém, de traçar a gênese desse apego de Kant à tese da prioridade do tempo, pre- tendemos demonstrar, a seguir, o quanto essa perda do caráter produtivo por parte da imaginação foi danosa à posterior elaboração teórica de Kant, quer dizer, procuraremos demonstrar que a Crítica da Faculdade 171 KANT. Kritik der Urteilskraft, (Juízo) SW. 1922, vol.II. Também foi utilizada a Crítica da Facul-

de Julgar só poderia ter tido êxito sob a condição da imaginação ser en- tendida como capaz de produzir, independentemente do entendimento, aquela unidade da síntese, quer dizer, sob a condição da imaginação ser entendida, tal como ocorre na primeira, mas não na segunda, edição da Crítica da Razão Pura, como uma imaginação produtiva.

Segundo Kant, essa Crítica da Faculdade de Julgar pretende investi- gar se, sendo a faculdade de julgar um termo médio entre o entendimen- to e a razão, e na medida em que entendimento e razão fornecem prin- cípios constitutivos para as faculdades de conhecimento e de apetição, respectivamente, se a faculdade de julgar fornece princípios, e quais, para a faculdade de prazer e desprazer, e se esses princípios são constitutivos ou meramente regulativos172. De início, Kant trata de traçar uma distin- ção bastante nítida entre os domínios nos quais entendimento e razão legislam, entre os domínios da razão teórica e da razão prática, e, nisso, ele se empenha em mostrar que as regras e prescrições tecno-práticas são apenas corolários da ciência da natureza, e, por isso, pertencem à ra- zão teórica e não à fi losofi a moral. Quaisquer que sejam os motivos que Kant tinha para, dessa maneira, acentuar o “formalismo” de sua doutrina da moral, o fato é que esse procedimento acaba excluindo da Crítica da Faculdade de Julgar considerações mais explícitas e detalhadas a respei- to da maneira como Kant pensa uma vontade, digamos, sensivelmente engajada. Segundo Kant, embora o domínio regido pelas leis da natureza esteja completamente separado do domínio regido pelas leis da liberda- de, é possível pensar numa transição entre ambos, já que o domínio da liberdade deve ter infl uência sobre o domínio da natureza, já que o con- ceito de liberdade deve tornar efetivo os fi ns, prescritos por suas leis, no mundo dos sentidos, de modo que a natureza tem que ser pensada de um modo tal que suas leis concordem com a possibilidade dos fi ns das leis da liberdade173. Kant espera, assim, que a crítica da faculdade de julgar forneça a transição entre os domínios da natureza e da liberdade, da razão teórica e da razão prática, na medida em que, além do juízo ser intermediário 172 KANT. Juízo, SW. vol.II, 1922, p. 6.

entre o entendimento e a razão, ele, por estar vinculado à faculdade de prazer e desprazer, é também intermediário entre a faculdade de conhe- cimento e a faculdade de apetição. A questão da transição entre razão teórica e razão prática é, porém, e como já assinalamos anteriormente, um dos “macroproblemas” da interpretação de Kant, que queremos evi- tar. Precisamos assinalar, no entanto, que o papel de “intermediário” em geral, que a Crítica da Razão Pura atribuía à imaginação, é agora alocado à faculdade de julgar, ao passo que a imaginação é considerada apenas como uma das faculdades inferiores de conhecimento. Isso, em parte, deve-se também ao formalismo da doutrina moral kantiana: é assim que, na “Típica” da Crítica da Razão Prática, Kant diz que

À lei natural, enquanto lei a que estão sujeitos os objetos da intuição sensível como tais, deve corresponder um es- quema, isto é, um procedimento geral da imaginação (...) Mas, à lei da liberdade (enquanto causalidade não sensivel- mente condicionada) (...) não se pode proporcionar como base nenhuma intuição, portanto, nenhum esquema, em vista de sua aplicação “in concreto”. Daí que a lei moral não disponha de nenhuma outra faculdade de conhecer, que permita sua aplicação a objetos da natureza, a não ser o entendimento (não a imaginação)...174 (Grifo nosso) É claro, então, que Kant não poderia pensar a imaginação como intermediária entre as faculdades de conhecimento e de apetição, já que ele acredita que a imaginação não mantém qualquer relação com esta última, entendida como vontade “pura”, e também não pode pensá-la como intermediária entre o entendimento e a razão, já que ele atribui ao entendimento a tarefa de fornecer o “esquema” para as ideias da razão. Dado esse quadro, é até mesmo surpreendente que o tema da imagina- ção ocupe, na Crítica da Faculdade de Julgar, um lugar tão privilegiado.

O papel de intermediário que Kant concede ao juízo, no entanto, não recai sobre o juízo enquanto tal, mas somente ao juízo enquanto ju- ízo refl exionante, enquanto contrastado ao juízo determinante. Este úl- timo apenas subsume intuições sob um universal, um conceito, já dado, 174 KANT. Kritik der Praktischen Vernunft, SW, vol.II, 1922, A-121-2.

No documento A CONCEPÇÃO FILOSÓFICA DA IMAGINAÇÃO (páginas 198-200)