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A TEORIA DA IMAGINAÇÃO DE SARTRE

No documento A CONCEPÇÃO FILOSÓFICA DA IMAGINAÇÃO (páginas 34-64)

Vimos que Ryle, mesmo partindo de uma crítica legítima da con- cepção humeana da imaginação, que concebia esta como uma espécie de percepção, acaba, por meio da admissão de uma apreensão de imagem puramente perceptiva, promovendo uma desvinculação entre essa apre- ensão de imagem e a imaginação, e, por meio dessa desvinculação, acaba caracterizando a imaginação de uma forma negativa. Mas, além do caso dos sonhos e da alucinação deporem contra esta caracterização negativa da imaginação, vimos também que, em Ryle, aquela desvinculação entre imaginação e apreensão de imagem, assim como a caracterização negati- va da imaginação dela decorrente, são motivadas pelo caráter “evidente” da proposição, e essa proposição é tão “evidente” que já não precisa se- quer ser tematizada nem mencionada, segundo a qual a mente não é ex- tensa, pois, dada a implicação espacial inerente à imagem, segue-se que a imaginação não poderia consistir na contemplação de imagens, e, se a imaginação já não se refere às imagens, ela não se refere a nada. Passare- mos a demonstrar agora que exatamente os mesmos procedimentos que encontramos na análise ryleana da imaginação encontram-se também na análise sartreana da imaginação.

Desde L’imagination12, Sartre contrapunha às teorias dos fi lósofos (Descartes, Leibniz e Hume) e psicólogos (Escola de Wüzburg, Ribot e Taine) que, segundo ele, teriam sucumbido à teoria coisicista da ima- gem, a experiência da distinção imediata, a partir de caracteres intrín- secos, entre imagem e percepção (“Je ne m’y trompe jamais”, repetia Sar- tre)13: com efeito, dizia Sartre, ao formular suas teorias sobre as imagens e a imaginação, tais fi lósofos e psicólogos negligenciaram o modo como, na apreensão imediata da imagem, esta se dá, desde o início, como di- ferindo, em natureza, da percepção. Daí que, inadvertidamente, tais te- 12 SARTRE, 1950, p.13 e ss.

orias passaram da afi rmação, legítima, da identidade de essência entre imagem e objeto da imagem, para a afi rmação, ilegítima, da identidade de existência entre ambos. Assim, continua Sartre, ao invés de conceber um mesmo objeto sob dois planos de existência, acabou-se por conceber dois objetos sob um único e mesmo plano de existência. A imagem men- tal, desse modo, teria, segundo Sartre, adquirido a inércia, a opacidade, a capacidade de impor limites à espontaneidade e à transparência da consciência, e seu modo de existência seria agora aquele do ser-em-si. Assim se teria formado, segundo Sartre, a teoria coisicista de imagem. Segundo Sartre, essa teoria já estaria inteiramente formulada desde a época dos fi lósofos clássicos: Descartes, Leibniz e Hume. No âmbito de suas concepções a respeito do pensamento puro, esses três fi lósofos for- neceram um tripé de soluções ao problema da imaginação que, uma vez assumida a teoria coisicista da imagem, seria, segundo Sartre, as únicas soluções possíveis: Descartes, em primeiro lugar, teria aberto um fosso intransponível entre pensamento puro e imagem; nele a imagem é re- legada aos movimentos mecânicos do corpo que, como coisa extensa, contrapõe-se irredutivelmente à coisa pensante. Leibniz, em segundo lugar, teria pretendido encontrar, sob as imagens-fato, sujeitas ainda ao mecanicismo cartesiano, o pensamento puro que unicamente poderia fornecer a razão última de seu encadeamento, acabando, assim, por im- pregnar de intelectualidade a imagem, absorvendo esta no pensamento puro. Hume, em terceiro lugar, teria procurado reduzir todo o pensa- mento puro às imagens – nada haveria no espírito a não ser impressões e cópias de impressões, cópias estas que constituiriam o conjunto total das ideias, ideias e imagens que, portanto, não distinguir-se-iam, por natureza, das percepções.

Não precisamos, aqui, entrar em detalhes a respeito da apreciação que Sartre faz de cada um desses fi lósofos, pois eles constituirão um objeto de estudo em separado nesta pesquisa. Devemos notar, apenas, que é em contraposição a essas teorias coisicistas da imagem que Sartre, ainda em L’imagination, afi rma a possibilidade de desenvolver-se, a partir da fenomenologia de Husserl, uma verdadeira psicologia fenomenoló-

gica da imaginação. Com efeito, dizia lá Sartre, ao conceber a intencio- nalidade como sendo a estrutura essencial da consciência, ao afi rmar que “toda consciência é consciência de alguma coisa”, a fenomenologia de Husserl, segundo Sartre, constata que é da natureza mesma da cons- ciência o transcender-se em direção a algo que já não é, ou não perten- ce a, ela mesma. Desde esse instante, segundo Sartre, faz-se necessário distinguir entre a consciência e aquilo de que ela é consciência, entre a noese (que compreende os atos intencionais da consciência e a “hylè” que ela anima de modo a visar o objeto) e o noema, que compreeende o correlato transcendente a essa consciência, o sentido visado por ela. No caso da imaginação, igualmente, será necessário distinguir entre a in- tenção imaginante e o imaginado por seu intermédio. Segundo Sartre, o fato de a primeira pertencer à consciência não deve levar-nos a crer que o segundo também pertença: ao contrário, como correlato noemático da intenção imaginante, ele transcende-a, ele não pertence nem está na consciência de forma alguma. Por outro lado, esse objeto transcenden- te, visado pela intenção imaginante, não deve ser confundido com os objetos que posicionamos como existentes no mundo. Com efeito, este sentido, que é o objeto transcendente da consciência, só é apreendido mediante a “redução fenomenológica”, redução esta que consiste, preci- samente, em colocar em suspenso aquela posição de existência. Esta é, diz Sartre, a principal contribuição da fenomenologia de Husserl para a psicologia fenomenológica da imaginação: se o objeto da intenção ima- ginante não existe à maneira como existem objetos do mundo, ele, nem por isso, deverá ser considerado imanente à consciência, como se fosse um elemento constituinte desta, como se fosse um “conteúdo” psíqui- co. A admissão desse outro modo de existência abre, segundo Sartre, pela primeira vez as portas de uma ciência do imaginário. Assim, por exemplo, tanto o “unicórnio-imaginado” quanto a “simples-árvore-ima- ginada” serão, ambos, igualmente irreais, ou serão, ambos, igualmente reais, conforme o plano de existência em que nos situarmos. Já não será preciso, diz Sartre, povoar a consciência com simulacros reais de unicór- nios e de árvores, simulacros estes que existiriam à maneira dos objetos

do mundo, mas também, continua Sartre, já não será mais necessário dissolver e irrealizar o “unicórnio-imaginado” e a “árvore-imaginada” na intenção imaginante que os visa. É assim que Sartre espera promover um avanço decisivo em relação às metafísicas anteriores, tais como as mencionadas anteriormente, no que diz respeito à teoria da imaginação: estas, com efeito, ou reduziam os objetos da consciência aos objetos do mundo e acabavam atribuindo aos primeiros o mesmo modo de existên- cia que é atribuído aos segundos, ou, à maneira de Berkeley, reduziam os objetos do mundo aos objetos da consciência. Tanto num caso como no outro, diz Sartre, escapa-lhes a natureza própria do imaginário, já que ambas as alternativas só admitem um único plano de existência. Uma vez promovida a redução fenomenológica, no entanto, torna-se claro, diz Sartre, que o objeto noemático da consciência imaginante, se não existe à maneira dos objetos do mundo, como afi rmava a metafísica re- alista, tampouco existe à maneira da intenção imaginante que o visa, como afi rmava a metafísica idealista.

Mas nada ainda está resolvido, pois, embora as considerações acima sirvam a Sartre para negar o caráter imanente do objeto da consciência imaginante, é preciso considerar que elas privam, igualmente, o objeto da consciência perceptiva dessa imanência. Quer dizer, tais considera- ções aplicam-se aos objetos da consciência em geral, e não apenas aos da consciência imaginante. Segundo Sartre, o noema da intenção imagi- nante deve, para além desse caráter transcendente que ele compartilha com os objetos da consciência em geral, apresentar-se necessariamen- te de uma forma diferente do que aquela com que apresentam-se esses objetos e, em particular, com que se apresenta o objeto da consciência perceptiva. Daí ser necessário, segundo Sartre, apreender e descrever a estrutura essencial da consciência imaginante, enquanto contrastada às outras estruturas intencionais e, em particular, à estrutura da consci- ência perceptiva. Esse é o programa da psicologia fenomenológica da imaginação, tal como desenvolvida por Sartre em L’imaginaire, que pas- saremos a examinar agora.

de Sartre, em relação a L’imagination, no que diz respeito ao caráter ime- diato da distinção entre imaginação e percepção: se, naquele texto, Sar- tre afi rmava o caráter imediato dessa distinção e recusava-se a atribuir ao juízo qualquer papel nela14, agora, em L’imaginaire, Sartre reserva a um ato de segundo grau a tarefa de determinar a imagem como imagem. E é referindo-se a esse ato que ele abre L’imaginaire:

Apesar de alguns preconceitos, que trataremos de consi- derar em breve, é certo que, quando produzo em mim a imagem de Pierre, é Pierre que é objeto de minha consci- ência atual. Enquanto esta consciência permanecer inalte- rada, poderei dar uma descrição do objeto tal como ele me aparece em imagem, mas não da imagem como tal. Para determinar os caracteres próprios à imagem enquanto ima- gem, é preciso refl etir. Assim, a imagem como imagem só é descritível por um ato de segundo grau, mediante o qual a atenção abandona o objeto para dirigir-se sobre o modo no qual este objeto é dado. É este ato refl exivo que permite o juízo “Eu imagino”.15 (Grifo de Sartre)

É claro que essa refl exão é pensada como sendo capaz de determinar a imagem como imagem a partir de caracteres intrínsecos a esta, e não, como a discriminação feita pelo juízo, tal como recusada por Sartre em L’imagination, a partir de caracteres extrínsecos. Mas é importante, desde já, notar o papel preponderante que a refl exão ocupará, em L’imaginaire, na discriminação entre imagem e percepção. É claro, diz Sartre, que tan- to a consciência não-thética e irrefl exiva imaginante, como a consciência não-thética e irrefl exiva perceptiva, são, ambas, consciências de ponta a ponta, quer dizer, são conscientes da maneira como põem seus respec- tivos objetos. A primeira, segundo Sartre, sabe que põe seu objeto como inexistente, e a segunda sabe que põe seu objeto como existente. Porém, justamente por serem consciências não-théticas e irrefl exivas, nenhuma delas poderá incidir sobre a outra, de modo a comparar seus procedi- mentos com os procedimentos da outra. Daí, segundo Sartre, resulta que 14 SARTRE, 1950, p.100 ss.

nem a consciência imaginante, nem a consciência perceptiva, poderão, por si só, proceder a uma discriminação entre imagem e percepção. So- mente a refl exão poderá comparar e distinguir entre essas duas maneiras de dar-se um objeto, somente a refl exão poderá formular o juízo: “Ima- gino, isto é, não percebo”. O que Sartre propõe-se a fazer, então, é des- crever a estrutura intencional da consciência imaginante, tal como ela se apresenta à refl exão, refl exão que, segundo ele, já foi estabelecida, desde Descartes, como nos fornecendo dados absolutamente certos.

A primeira característica que a consciência imaginante exibe à re- fl exão sartreana consiste em que, nela, o objeto noemático apresenta-se como transcendente. Já vimos que essa é uma característica que o obje- to da consciência imaginante compartilha com o objeto da consciência perceptiva e com os objetos da consciência em geral. Mas, no caso da consciência imaginante, essa característica, além de permitir, como vi- mos, a Sartre uma crítica da ilusão da imanência, permite-lhe também uma crítica da concepção das “imagens mentais”. Segundo Sartre, tanto a consciência imaginante como a perceptiva visam diretamente seu ob- jeto, e não por meio de um simulacro deste que se encontraria “dentro” da consciência. Quando imaginamos Pierre, diz Sartre, é Pierre mesmo que é visado, e é visado diretamente, de modo que Pierre não está “na” consciência, e não está aí nem mesmo “em imagem.”16 Desse modo, diz Sartre, seria desejável que, na caracterização da consciência imaginante, abandonássemos a refência à “imagem”, já que esta nos leva a pensar numa forma de consciência que visa indiretamente seu objeto. Sartre aqui, porém, parece hesitar um pouco na desvinculação entre imagina- ção e consciência de imagem: ele critica aqueles que negam a existência de tais imagens, já que isso contrariaria os dados da introspecção, afi rma que a palavra “imagem” não pode ser inteiramente abandonada, dados seus longos anos de serviços prestados, e até mesmo procura, depois, descrever a consciência de imagem (o retrato) como um membro da “família” da consciência imaginante17, família esta que compreenderia 16 SARTRE, 1986, p.21.

também a consciência de imagem mental. Aqui precisamos notar que, quando escreve L’imaginaire, Sartre desconhece o desenvolvimento que, conforme mostraremos posteriormente, constitui o momento crucial da teoria husserliana da imaginação. Trata-se daquilo que chamaremos de “reviravolta” dessa teoria, reviravolta que, nos cursos de Göttingen de 1904/5, fez com que a imaginação não fosse mais concebida como se perfazendo numa consciência de imagem. Mostraremos que essa revira- volta é, por assim dizer, um divisor de águas entre as Investigações Lógi- cas de 1900 e as Ideen de 1913 e que ela explica o abandono, por parte de Husserl, da distinção entre “apreensão” e “conteúdo da apreensão”. Embora conhecesse essas obras de Husserl, Sartre não conhecia a parte dos cursos de Göttingen referente à imaginação e à consciência de ima- gem, já que esta só foi publicada recentemente em 1980. Desses cursos, Sartre só conhecia a parte referente à consciência de tempo, publicada por Heidegger. Desse modo, aquilo que as Ideen deixam em suspenso, Sartre vai buscar nas Investigações Lógicas, e é assim que, tal como estas, ele concebe a intenção imaginante como uma apreensão que vai buscar na imagem o seu conteúdo, é assim também que ele assume como dada uma distinção entre um saber imaginante e uma matéria, que pode ser tanto física como psíquica, da imagem. Desse modo, Sartre, sem se dar conta do quanto a concepção husserliana das relações entre imaginação e consciência de imagem, tal como esta apresenta-se nas Ideen, difere bastante da concepção husserliana das mesmas relações, tal como se en- contra nas Investigações Lógicas, defi ne a família da consciência imagi- nante, que comporta desde a consciência de retrato até as imaginações puramente mentais, como consistindo num ato que visa diretamente um objeto ausente ou inexistente através de um “conteúdo” físico ou psíquico, conteúdo este que se dá então, não como tal, mas como re- presentante analógico do objeto visado18. Sartre não deixa, no entanto, de pressentir as modifi cações que, sem que ele soubesse, já haviam sido promovidas por Husserl.

Com efeito, ao analisar os membros da família da consciência ima- 18 SARTRE, 1986, p.46.

ginante, Sartre, estabelecendo uma sequência e progressão que vai da “consciência de retrato”, passando pelo “desenho esquemático”, passan- do, depois, pela “ïmitação”, e, depois ainda, pelas “imagens hipnagógi- cas”, desembocando, enfi m, nas “imagens mentais”, Sartre, digo, pro- cura mostrar que, nessa progressão, ao mesmo tempo em que a matéria da imagem empobrece-se cada vez mais, chegando mesmo à “pobreza essencial” das imagens mentais, o saber imaginante, por outro lado, as- sume, cada vez mais, um papel preponderante, a ponto de Sartre per- guntar se, no caso das imagens mentais, a “matéria” desta ainda poderia subsistir sem o saber imaginante que a anima. Por exemplo, no caso do primeiro elemento dessa série, no caso do “retrato”, Sartre procura mos- trar que a intenção imaginante pode aí apoiar-se sobre uma plenitude de percepção, numa matéria bastante rica que, como tal, solicita-nos ime- diatamente, isto é, sem que o saber seja aí preponderante ou até mesmo necessário, a imaginar o objeto representado pelo retrato19. Por outro lado, nos últimos elementos dessa série, no caso das imagens hipnagógi- cas e no caso das imagens mentais, por exemplo, Sartre procura mostrar que a matéria da imagem se vê a tal ponto empobrecida, que é o próprio saber, agora preponderante, é que tem que forjar, a partir de si mesmo, a “matéria” da representação, é que tem que forjar uma “intuição” que falta completamente do lado da consciência perceptiva. Desse modo, po- demos ver que, embora não tenha chegado ainda a conceber de forma explícita a ideia de uma consciência de imagem puramente perceptiva, e embora admita ainda, se bem que de forma relutante, que exista al- guma “matéria” que esteja sendo animada pela consciência que produz a imagem puramente mental, Sartre opõe, nesta série, a consciência de imagem propriamente dita (a consciência de retrato) à consciência ima- ginante propriamente dita (a consciência da “imagem” mental) como limites extremos e contrários daquilo que ele designa como a família da consciência “imaginante”, no sentido amplo do termo. Em ambos os casos, diz Sartre, o saber imaginante visa diretamente algo ausente ou inexistente através de algo, de uma matéria, presente, tomada então 19 SARTRE, 1986, p.50.

como imagem do primeiro, mas, no caso da consciência de retrato, a presença da matéria da imagem é tão plena que torna quase desnecessá- rio aquele saber, já que o objeto da imagem é quase que completamente presentifi cado pela imagem, ao passo que, no caso da imagem mental, a matéria da imagem é tão pobre, tão, ela mesma, ausente e inexistente, que mal se distingue do saber sobre a ausência e inexistência do objeto da “imagem”. Sartre não sabia que, a essa altura, Husserl já havia desen- volvido uma concepção segundo a qual a imaginação puramente mental é uma re-presentação de algo ausente na ausência de qualquer presença, de qualquer imagem, e é por isso que ele ainda procura determinar, na parte de L’imaginaire consagrada ao meramente “provável”, a natureza da matéria das imagens mentais. Mas Sartre parece pressentir que esta é uma falsa via, já que, conforme ele mesmo aponta, a “matéria” da ima- gem mental, ao contrário da matéria da imagem propriamente dita (de retrato), esvai-se e desaparece concomitantemente ao desaparecimento do saber imaginante que a anima, de modo que tal matéria não se ofere- ce como passível de uma descrição a partir da consciência refl exiva, e a determinação de sua natureza já não pode ser realizada sobre o domínio seguro e certo da descrição fenomenológica20. Torna-se perfeitamente claro, assim, que Sartre efetivamente pensa numa desvinculação entre imaginação e consciência de imagem. E essa conclusão torna-se defi ni- tivamente estabelecida quando consideramos mais de perto o que Sartre tem a dizer sobre a consciência de imagem propriamente dita, sobre a consciência de retrato.

De início, Sartre, a respeito desse tipo de consciência, procura mos- trar que ela é membro da família da consciência imaginante, no sentido amplo do termo: a matéria da imagem, tal como puramente percebida, a percepção da distribuição de linhas e cores sobre um papel ou uma tela, não poderia dar origem a uma consciência de imagem sem que um saber ou intenção imaginante animasse essa matéria e a transfor- masse na imagem de algo não presente, não percebido. Para além dessa característica geral que a consciência de retrato compartilharia com to- 20 SARTRE, 1986, p.111-2.

dos os outros membros da família imaginante, porém, podemos ver que, segundo Sartre, nela encontramos o ponto extremo onde aquele saber imaginante torna-se quase desnecessário, ao passo que a imagem se dá quase como que inteiramente percebida. Que Sartre esteja a ponto de admitir uma consciência de imagem puramente perceptiva, isto é, o que podemos constatar ao notar que ele, ao contrastar a imagem ao signo e ao tentar especifi car em que consiste a relação de semelhança, relação esta que a imagem, ao contrário do signo, mantém para com seu obje- to, alude a um valor expressivo dos componentes da imagem: segundo Sartre, uma sobrancelha, por exemplo, que percebemos num retrato nos comove imediatamente como “sobrancelha”, e isso independentemen- te desta sobrancelha ser tomada como objeto de uma síntese percepti- va (“sobrancelha de alguém presente”) ou como objeto de uma síntese imaginativa (“sobrancelha em imagem”). Segundo Sartre, mesmo se nos detivermos no domínio da percepção, isto é, se nos detivermos na con- sideração da disposição de linhas e cores, etc., esse valor expressivo não será eliminado, ao contrário, mesmo nesse domínio o retrato solicita de nós que tomemos o objeto retratado como presente, como real. Quer dizer, a matéria da imagem é, nesse caso, tão rica que ela, por si mesma, impõe-se a nós como algo diferente do que ela é, de modo que se torna

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