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A IMAGINAÇÃO EM KANT 7.1 A Crítica da Razão Pura

No documento A CONCEPÇÃO FILOSÓFICA DA IMAGINAÇÃO (páginas 150-198)

Diante da complexidade e vastidão de seu sistema conceitual, diante do caráter enciclopédico da fi losofi a de Kant, diante ainda da imensa e diversifi cada literatura que, desde seu surgimento, não deixou de lhe ser dedicada, nossa análise tem que se deter por um momento na refl exão so- bre o procedimento correto a ser adotado, se é que ela pretende executar, com êxito, a investigação do tema da imaginação em Kant. Com efeito, pode-se afi rmar que qualquer coisa que se diga hoje a respeito de Kant, a respeito de qualquer um dos múltiplos aspectos de sua doutrina, algo que vai para além dos lugares comuns que se encontram nos manuais de introdução à sua fi losofi a, está fadada a negligenciar aspectos importantes da teoria desenvolvida por Kant mesmo, ou por algum de seus múltiplos intérpretes e comentadores. Quer dizer, não há, praticamente, nenhum aspecto da fi losofi a kantiana que não seja controvertido, que já não tenha recebido de algum de seus numerosos intérpretes uma orientação diferen- te e insuspeitada. Por exemplo, e no que diz respeito ao tema que nos inte- ressa, enquanto Heidegger135 entende a imaginação transcendental como o fundamento da possibilidade intrínseca do conhecimento ontológico que, segundo ele, toda a Crítica procura desvendar, para Vleeschauwer136, o in- teresse de Kant na imaginação representou apenas um desvio repentino e momentâneo da refl exão kantiana em direção ao domínio da psicologia, desvio este que foi nefasto, já que tal recurso à imaginação não teria feito nada mais do que obscurecer o caráter puramente lógico-transcendental de sua doutrina. Esse debate pode nos fornecer uma via inicial de acesso ao tratamento kantiano do problema da imaginação.

135 HEIDEGGER. Kant et le problème de la Métaphysique. 1953.

136 VLEESCHAUWER. La déduction transcendantale dans l’oeuvre de Kant. 1976. Tomamos aqui,

brevemente, Vleeschauwer como o oponente do Heidegger do Kant-buch, embora, como se sabe, foi Cassirer quem se defrontou com Heidegger num famoso debate sobre Kant ocorrido na década de trinta do século passado. E essa escolha justifi ca-se apenas pelo fato de que, mais do que Cassirer, Vleeschauwer dedica um interesse especial ao tema que nos interessa.

Com efeito, Heidegger, em Kant e o Problema da Metafísica137, procu- ra interpretar a Crítica da Razão Pura138 como veiculando a instauração do fundamento do conhecimento ontológico. Opondo-se ao neo-kantis- mo, Heidegger afi rma que a fi losofi a transcendental não é uma episte- mologia, não é uma mera teoria das ciências, não concerne à análise das condições de possibilidade do conhecimento ôntico e, opondo-se ao ide- alismo alemão, ele afi rma que a “Razão” a que se refere a Crítica é uma razão essencialmente fi nita, é uma razão que não está apenas acidental e circunstancialmente ligada a uma intuição sensível. É assim que, segun- do Heidegger, a famosa pergunta: “Como são possíveis juízos sintéticos a priori?” deve ser interpretada como uma pergunta do tipo: “Sobre qual fundamento pode um ser racional fi nito, uma razão essencialmente fi - nita e irremediavelmente sensível, como pode esse ser transcender-se de modo a ter acesso a um outro ser que não é ele mesmo nem foi por ele criado?” Essa questão a respeito da transcendência, segundo Heidegger, não se coloca em relação a um razão infi nita, já que uma intuição infi ni- ta é não sensível, não receptiva, e, como intuição intelectual, cria o seu objeto inteiramente a partir de si mesma, não precisando, portanto, sair de si mesma, transcender-se, de modo a encontrá-lo. Somente para uma razão fi nita, como a nossa, diz Heidegger, é que se coloca a questão sobre o fundamento de sua transcendência, sobre o fundamento do conheci- mento metafísico possível a nós, “homens”. De nosso ponto de vista, o que interessa notar é que Heidegger vê, na concepção kantiana da “ima- ginação transcendental”, o fundamento dessa transcendência, elevando assim a imaginação ao status de “condição de possibilidade intrínseca do conhecimento ontológico”.

Não nos interessa, no entanto, discutir o uso que Heidegger faz da noção kantiana da imaginação transcendental na constituição de sua on- tologia fundamental, já que isso nos afastaria bastante de nosso tema. 137 HEIDEGGER.Kant. 1953.

138 KANT. SW. vol.I. 1922. Doravante referida aqui simplesmente como CRP. Dado que, ao longo de

tudo o que segue, faremos referências constantes e frequentes tanto à primeira edição (a), como à segunda edição (b), da “Crítica da Razão Pura”, decidimos que seria melhor manter essas referên- cias entre parênteses no próprio corpo do texto, reservando as notas de rodapé para outros tipos de referências e comentários.

Tem-se, mesmo, a impressão de que, apesar de onipresente ao longo de todo o seu kant-buch, o tema da imaginação tem aí uma função absoluta- mente acessória em relação à intenção fundamental de Heidegger. Além disso, conforme se pode verifi car no “prefácio” à segunda edição des- sa obra, Heidegger mesmo parece tê-la, posteriormente, rejeitado como um todo. E, conforme veremos, ele teve boas razões para isso. Piché,139 justifi cando o fato de explorar uma ideia desautorizada por seu pró- prio autor e comentando um artigo de Hoppe sobre as transformações ocorridas nas interpretações heideggerianas de Kant, nota que Heideg- ger, entre esse kant-buch e seus textos e cursos posteriores, abandonou tanto a perspectiva subjetiva quanto o tema da imaginação em favor de uma perspectiva objetiva e do tema do entendimento. Teria Heidegger também “recuado” diante do tema da imaginação, tal como ele próprio, Heidegger, acusa Kant de ter feito? Não nos interessa discutir, aqui, essa acusação no que diz respeito a Heidegger, mas sim no que diz respeito a Kant. Com efeito, na seção 31 do kant-buch, Heidegger faz uma conside- ração que, para nós, é muito mais estimulante do que toda a ontologia que ele procura colocar sob o patrocínio de Kant. Com efeito, proce- dendo a uma comparação entre as duas edições da Crítica140, Heidegger constata que Kant, tendo uma vez, na primeira edição, descortinado o papel da imaginação enquanto fundamento essencial da transcendência da razão fi nita, recua, na segunda edição, diante dessa possibilidade de instauração original do conhecimento ontológico, e rejeita, na segunda edição, a imaginação em favor do entendimento. Nessa segunda edição, diz Heidegger, a imaginação deixa de ser entendida como a faculdade de síntese fundamental, síntese agora atribuída ao entendimento, e deixa também de ser entendida como uma faculdade independente, mediado- ra entre a sensibilidade e o entendimento; agora ela é entendida como o efeito do entendimento sobre a sensibilidade. Heidegger, acertadamente, afi rma que o recuo diante do tema da imaginação constituiu o moti- 139 PICHÉ. Les Éthudes Philosophiques, n.1, 1986, p.79-99.

140 Nesse tipo de acusação, Heidegger foi precedido por Schopenhauer e Jacobi, que também apon-

taram para as diferenças entre a primeira e a segunda edição da CRP e reconheceram, nessas mo- difi cações, sintomas de recuo por parte de Kant diante de um Idealismo de estilo berkeleyniano.

vo pelo qual Kant eliminou toda a dedução das categorias constante da primeira edição, substituindo-a, na segunda edição, por uma dedução completamente nova. Mas, por que teria Kant, como percebeu acerta- damente Heidegger, recuado diante do tema da imaginação? De início, Heidegger rejeita a ideia, adotada por muitos, segundo a qual a imagi- nação sucumbiu na segunda edição devido a uma suposta rejeição, por parte de Kant, do aspecto subjetivo da primeira dedução, já que, se- gundo ele, a dedução transcendental comporta necessariamente os dois aspectos. Um outro motivo parece mais plausível a Heidegger: por ter, não rejeitado, mas adiado a elaboração da dedução subjetiva, não teria restado a Kant outra alternativa senão valer-se da concepção de “ima- ginação” que era oferecida pela psicologia e antropologia tradicionais, segundo as quais a imaginação era uma faculdade inferior, derivada da sensibilidade. Daí, segundo Heidegger, o receio que apossou-se de Kant, quando este percebeu que sua concepção original estaria fundando uma faculdade superior, a Razão, na faculdade inferior da sensibilidade. A Razão, o Logos, o primado da lógica, venerados por toda a tradição, ver- se-iam ameaçados, e a concepção original de Kant sobre a imaginação colocou-o, segundo Heidegger, diante de um abismo:

Kant, ao desenvolver radicalmente sua interrogação, põe a “possibilidade” da metafísica diante de um abismo. Ele percebeu o desconhecido e foi obrigado a recuar. Não é somente a imaginação transcendental que lhe mete mêdo, é que, no entretempo, ele fi ca cada vez mais e mais sensível ao prestígio da razão pura como tal.141

Ao atentar para o domínio da moral, Kant teria sido obrigado, se- gundo Heidegger, a admitir uma razão fi nita, sim, mas não sensível, quer dizer, o caráter fi nito-sensível da razão humana e com ele a imagina- ção, foram cada vez mais, deixando de chamar a atenção de Kant. Desse modo, a natureza desconcertante da imaginação, tal como esta se apre- sentava em sua concepção original, somada à “força luminosa” da razão 141 HEIDEGGER. Kant. 1953, p.223.

pura, cuja supremacia precisava ser preservada, contribuíram, segundo Heidegger, para ocultar a essência da imaginação transcendental. Procu- raremos, em breve, mostrar que as observações de Heidegger a respeito da transformação ocorrida entre as duas edições da Crítica são justas e corretas, embora não concordemos com ele, nem quanto aos motivos que ele julga serem os de Kant para proceder a essas modifi cações, nem, sobretudo, nem quanto a sua afi rmação no sentido de que tais modifi ca- ções constituem um recuo unilateral por parte de Kant diante do tema da imaginação.

Essas observações de Heidegger, no entanto, tornaram-se famosas e objetos de inúmeras controvérsias, por exemplo, Philonenko142 afi r- ma ser doloroso presenciar o autor de O Ser e o Tempo cometer um tal contrassenso, pois, continua ele, após afi rmar que a imaginação trans- cendental, entendida como essência do fundamento da transcendência de uma razão fi nita, encontrava plena expressão no capítulo sobre o “esquematismo”, capítulo este que constituíria, segundo Heidegger, o núcleo de toda a CRP, Heidegger, continua Philonenko, afi rma que, na segunda edição desta, Kant teria recuado, de modo a salvar as prerrogati- vas da razão, contestando Philonenko, dentre as inúmeras modifi cações que ele introduz entre as duas edições da CRP, apenas o capítulo sobre o “esquematismo” permaneceu inalterado:

Ao admitir, como quer Heidegger, que a fi nalidade da se- gunda edição seja a de restabelecer as prerrogativas da razão, a ausência de qualquer modifi cação neste famoso capítulo implica que, no espírito de Kant, ele não é de modo algum contrário a racionalidade e, longe de ameaçar a supremacia da razão, como pretende Heidegger, a doutri- na do esquematismo transcendental deveria, ao contrário, estabelecê-la.143

Após apresentar essa objeção, que ele qualifi ca de “formal”, Philo- nenko trata de determinar o que, segundo ele, seria a signifi cação própria 142 PHILONENKO. Études Kantiennes. 1982, p.13.

do capítulo do esquematismo no interior da CRP. Segundo Philonenko, Kant, nesse capítulo, não trata nem de fi nitude, nem de ontologia, mas sim de semântica: trata-se de mostrar como, através de esquemas, os conceitos puros adquirem signifi cado. Em realidade, continua ele, o ca- pítulo sobre o esquematismo procura fazer frente à crítica empiricista, nomeadamente a de Berkeley, concernente às “ideias gerais”. Nesse ca- pítulo, Kant teria, segundo Philonenko, procurado colocar-se no próprio domínio em que se move a crítica empiricista, o domínio da psicologia, e teria conseguido denunciar a metafísica, realista e reifi cante, implícita na psicologia empiricista. Uma vez feito isso, Kant pôde atenuar os as- pectos psicológicos da dedução de 1781, conferindo-lhe, na dedução de 1787, uma tonalidade mais lógica e racional. Ao invés de uma apoteose, fi naliza Philonenko, o valor do capítulo sobre o esquematismo reside no fato de ele ser um princípio de reconstrução da dedução transcenden- tal. O que pensar dessas objeções que Philonenko dirige a Heidegger? Consideremos, de início, a objeção “formal”: é preciso considerar que o fato no qual ela se baseia não passou despercebido a Heidegger, que este sabia que o capítulo sobre o esquematismo não foi alterado entre as duas edições da CRP144. Há, de fato, uma certa precipitação por parte de Philonenko, já que, conforme veremos em breve, as mais importan- tes referências da CRP ao tema da imaginação se encontram, não no capítulo sobre o esquematismo, mas, sim, na Dedução Transcendental das Categorias145, e que, conforme constatou corretamente Heidegger, há diferenças bastante pronunciadas, relativas ao tema da imaginação, entre as duas edições. É bastante provável, portanto, que, quando Heidegger se refere a um recuo de Kant em relação ao tema da imaginação, ele está, embora não tenha se dado ao trabalho de esclarecer isso, referindo-se, não ao capítulo sobre o esquematismo, como pretende Philonenko, mas sim à primeira DTC. Quanto à posição do capítulo sobre o esquema- tismo, tal como apresentada por Philonenko, devemos considerar que, a rigor, ela é improvável: tudo se passaria como se, tendo, na primeira 144 HEIDEGGER. Kant. 1953, p.218.

edição, desenvolvido uma dedução psicológico-transcendental, dedução esta que seria prolongada no capítulo do esquematismo, Kant teria se dado conta de que este último já era o bastante para o enfrentamento das objeções empiricistas à DTC, o que lhe permitiu, na segunda edição desta, depurá-la dos aspectos psicológicos com que, antes do capítulo sobre o esquematismo, ela foi investida. Mas, se assim foi, por que Kant não substituiu a dedução psicológico-transcendental logo na primeira edição? Ora, o capítulo sobre o esquematismo é de 1781 e se, ao escre- vê-lo, Kant já estivesse consciente de seu caráter sufi ciente, enquanto contraprova psicológico-transcendental à dedução das categorias, por que ele não substituiu imediatamente a DTC de 1781? Sobretudo, é pre- ciso considerar que, a partir da leitura desse capítulo, não se reconhece, como pretende Philonenko, nem que ele foi escrito visando exclusiva- mente refutar a tese empiricista, nem que, aí, Kant chegue a conclusões tão claras sobre a metafísica implícita na psicologia empiricista. De fato, conforme veremos, a preocupação de Kant, no sentido de afastar-se de um idealismo empírico de estilo berkeleyniano, é algo que só se tornaria premente na segunda edição da CRP. Philonenko, aqui, parece estar pro- jetando, na primeira edição da CRP, modifi cações que são introduzidas apenas pela segunda edição. Rejeitamos, assim, tanto a “objeção formal” quanto a interpretação que Philonenko fornece a respeito da posição do capítulo do esquematismo. Quanto, porém, a sua objeção “de fundo” a Heidegger, a saber, a objeção segundo a qual as considerações de Kant se referem, não à ontologia, mas à semântica, isso é algo sobre o qual não vamos nos pronunciar, já que isso nos levaria para muito longe do tema que nos interessa. Já é o momento, porém, de considerar o modo como esse tema se apresenta na CRP.

O conhecimento humano, diz Kant, é produto da atividade com- binada de duas faculdades: A Sensibilidade-Receptiva, que nos fornece intuições, através das quais um objeto é dado, e o Entendimento-Espon- tâneo, que gera conceitos, através dos quais um objeto é pensado. A “Es- tética Transcendental” da CRP procura determinar as condições (espaço e tempo) sem as quais um objeto não pode ser intuído, e, ao assim fa-

zer, demonstra que essas condições se aplicam necessariamente a todos objetos enquanto fenômenos (isto é, demonstra a “realidade empírica” ou “validade objetiva” daquelas representações do espaço e do tempo), e demonstra que essas mesmas condições só se aplicam a fenômenos (isto é, demonstra a “idealidade transcendental” daquelas mesmas repre- sentações). Tendo, assim, demonstrado, do “lado” da Sensibilidade, as condições sem as quais um objeto não pode ser intuído, Kant atribuirá à “Lógica Transcendental” a tarefa de realizar o mesmo em relação ao outro “lado”, o lado do Entendimento. Essa “Lógica” se dividirá em uma “Analítica Transcendental” que tratará de estabelecer a validade objetiva e uma “Dialética Transcendental” que procurará demonstrar a idealida- de, dos conceitos puros do entendimento. Na “Analítica”, será sobretu- do a “Dedução Transcendental das Categorias” que será encarregada de provar a realidade ou validade objetiva dos conceitos puros do entendi- mento (a-84, b-117 ss). Embora hajam semelhanças de estrutura entre essa dedução e a “Exposição” da “Estética”, a ponto de Kant referir-se a esta última como contendo uma “dedução” dos conceitos de espaço e tempo (a-87, b-119), ambas diferem no sentido de que as categorias não representam, segundo Kant, as condições sob as quais objetos são dados na intuição. Que o objeto da intuição sensível, diz Kant, esteja subme- tido às condições a priori da sensibilidade, isto é evidente. Bem menos evidente, porém, continua ele, é que esses objetos estejam também su- jeitos às condições que o entendimento exige. Daí a especifi cação da pergunta da qual se encarrega a dedução: como condições subjetivas de pensamento podem ter validade objetiva? (a-89, b-122). Mas, nessa de- monstração da validade objetiva dos conceitos puros do Entendimento, Kant parece distinguir entre um aspecto objetivo e um aspecto subjetivo:

Os conceitos que, então, contêm a priori o pensamento puro envolvido em toda experiência, nós encontramos nas categorias. Se pudermos provar que apenas por seu inter- médio um objeto pode ser pensado, isto será uma dedução sufi ciente deles, e irá justifi car sua validade objetiva. Mas já que em tal pensamento, mais que simplesmente a facul- dade de pensamento, o entendimento, está envolvida, e já

que esta faculdade mesma, como uma faculdade de conhe- cimento que pretende referir-se a objetos, exige explicação no que diz respeito à possibilidade desta referência, preci- samos antes de mais nada considerar as fontes subjetivas que formam o fundamento a priori da possibilidade da ex- periência. (a-97) (Grifo nosso)

Kant, aqui, distingue claramente os aspectos que, numa passagem do “Prefácio” à primeira edição da CRP, ele chama de aspectos subjetivo e objetivo da DTC (a-xvii). Poderíamos resumir dizendo: enquanto a dedução “objetiva” procura mostrar que, sem certos conceitos, um ob- jeto não pode ser pensado, a dedução “subjetiva” procura determinar o que signifi ca “pensar um objeto”. Mas, como considerar que, dado o programa que Kant, anteriormente, estabelece para a dedução “subje- tiva”, esta se atenha, como ele diz no “Prefácio”, ao exame do entendi- mento, tomado isoladamente? E como, dado esse programa, poderíamos dizer que essa dedução “subjetiva” não é essencial à DTC?146

Segundo Vleeschauwer147, as modifi cações efetuadas por Kant, entre as duas edições da CRP, em relação ao papel da imaginação no interior da DTC, são devidas ao abandono, por parte de Kant, da “dedução subjeti- va”. Assim como vários outros, Vleeschauwer entende as observações do “Prefácio” à primeira edição, assim como uma passagem imediatamente posterior à acima citada (a-98), em que Kant faz menção ao caráter aces- sório, provisório ou meramente pedagógico dessa dedução “subjetiva”, como contendo uma desqualifi cação dela. Há aqui, evidentemente, um equívoco, pois, se a dedução “objetiva”, tal como delineada na passagem acima, procura demonstrar que, sem as categorias, um objeto não pode ser pensado, é preciso reconhecer que, anterior e condição necessária à possibilidade mesma de uma prova de tal tipo, é a resposta a esta ques- tão: o que signifi ca, para um objeto, ser pensado? Ou, melhor, o que sig- nifi ca “pensar um objeto”? Ora, é justamente a esta última questão que 146 Segundo a opinião “benevolente” de Cassirer, 1986, em seu El problema Del Conocimiento, v. II,

p. 665, a dedução “subjetiva”, embora consista numa investigação meramente psicológica sobre a formação dos conceitos gerais e embora não afete em nada a possibilidade e validade lógica desses conceitos, vale, no entanto, como “ilustração e complemento” à dedução objetiva.

procura responder a dedução “subjetiva”, dedução esta que é, portanto, uma etapa prévia essencial à dedução “objetiva”. De fato, podemos cons- tatar que a DTC, tanto na primeira como na segunda edição da CRP, é, nesse sentido, subjetiva, ou melhor, em ambas, uma dedução objetiva só é obtida no prolongamento de uma dedução subjetiva. O que muda, especifi camente, entre as duas edições é o balanço entre os elementos

No documento A CONCEPÇÃO FILOSÓFICA DA IMAGINAÇÃO (páginas 150-198)