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4. O fim da essência atemporal da linguagem

4.1. A falsa analogia da memória como imagem material e a busca por uma linguagem

4.1.2. A crítica final à dimensão metafísica do mobilismo heraclítico

Para que possamos situar o problema que será abordado nesta seção, vejamos, de maneira extremamente breve, o percurso que as considerações de Wittgenstein sobre o tempo perfazem de 1929 até o PS.

O modo como Wittgenstein irá tematizar inicialmente o tempo, em 1929-1930, é através da localização de um duplo estatuto – que concede ao tempo um caráter bastante

440 MS 108, p. 33 / PB, §49 / BT, §105, p. 363. 441 Cf. PS, p. 320. (Grifos do autor).

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paradoxal. O tempo fenomenológico é um presente atemporal, no qual há um constante fluxo. Segundo Wittgenstein, em dezembro de 1929, esse caráter de fluxo (tão comum na psicologia empírica do início do século XX – como podemos notar em William James) não deve ser confundido com o deslizamento do filme sob a luz do presente. Como nos lembra Wittgenstein:

O sentimento que temos é que o presente desaparece no passado sem que possamos evitar isso. E aqui estamos obviamente usando a imagem de uma película cinematográfica que constantemente passa por nós, sem que possamos pará-la. Mas isso é claramente apenas resultado do mau emprego da imagem: não podemos dizer “o tempo flui” se pelo tempo queremos dizer a possibilidade do movimento.

O que estamos olhando aqui é a possibilidade do movimento: e assim a forma lógica do movimento.442

O tratamento do fluxo temporal como um filme que desliza continuamente movendo-se rumo ao passado (como visto na seção 1.1.4.) pode ser atribuído a Russell, no seu tratamento da metáfora do projetor, no qual a prioridade ontológica encontra-se invertida, em relação ao tratamento de Wittgenstein. Para Russell, o filme é a realidade.443

Porém, mesmo que tenhamos o cuidado de não cair na ilusão causada pela má aplicação do símile do tempo como um rio que flui constantemente rumo ao passado (no qual confundiríamos o movimento com a possibilidade do movimento – concebendo o tempo como algo que flui no tempo), ainda assim haveria a ideia de um fluxo primário, que Wittgenstein atribui à essência do mundo. Esse fluxo seria o movimento das imagens na tela (sendo o tempo primário a forma lógica desse movimento). A ideia de que o dito heraclítico pertence à essência do mundo é expressa na seguinte passagem do MS 108:

Pois o que pertence à essência do mundo simplesmente não pode ser dito. Por essa razão não se pode dizer que tudo flui. A linguagem pode apenas dizer aquelas coisas que podemos imaginar o contrário.444

442 MS 108, pp. 32-33 / PB, §52. (“Das Gefühl ist nämlich, daß die Gegenwart in die Vergangenheit

schwindet, ohne daß wir es hindern können. Und hier bedienen wir uns doch offenbar des Bildes eines Streifens, der sich unaufhörlich an uns vorbeibewegt und den wir nicht aufhalten können. Aber es ist natürlich ebenso klar, daß das Bild mißbraucht ist. Daß man nicht sagen kann, "die Zeit fließt", wenn man mit "Zeit" die Möglichkeit der Veränderung meint. / Was wir hier betrachten, ist eigentlich die Möglichkeit der Bewegung. Also die logische Form der Bewegung ”).

443 E não esqueçamos que podemos interpretar a concessão de uma ainda existência ao passado –

decorrente da igualdade ontológica sincrônica de todos os eventos no tempo físico (no filme) – como aquilo que permite à memória a bipolaridade, tornando-a logicamente independente do passado; abrindo espaço para a forma radical de ceticismo do passado em Russell.

444 MS, 108, p. 1 / PB, §54. (Grifo do autor). (“Was zum Wesen der Welt gehört, kann die Sprache nicht

ausdrücken. Daher kann sie nicht sagen, daß alles fließt. Nur was wir uns auch anders vorstellen können, kann die Sprache sagen”).

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De acordo com o método filosófico inicial de Wittgenstein (da filosofia como análise lógica da linguagem), a estrutura temporal desse constante fluxo deveria poder ser expressa no simbolismo perspícuo de uma linguagem isomórfica à realidade fenomênica. Mas é justamente esse traço temporal que escapa à linguagem e veta o projeto de construção da linguagem fenomenológica (pondo fim à ideia de uma análise completa da linguagem). Mesmo assim, Wittgenstein não abandona a ideia de que esse fluxo essencial seria de algum modo expresso:

Que tudo flui deve ser expresso na aplicação da linguagem e, de fato, não em um tipo de aplicação em oposição a outro, mas na aplicação. Em qualquer coisa que possa ser chamado de aplicação da linguagem.445

O que é crucial notar é que, no início de 1930 (como sugerem essas duas citações do MS 108), Wittgenstein ainda atribui uma dimensão positiva à ideia de fluxo temporal, situando o fluxo como algo que pertence à essência do mundo. O que tenho em vista, nesta seção, é mostrar que, a partir do PS, a ideia de que “tudo flui” perderá essa dimensão positiva (indizível, como algo que poderia apenas ser expresso pela aplicação da linguagem) e passará a ter um tratamento exclusivamente negativo – como fruto de falsas analogias (sendo uma das principais falsas analogias o tratamento do passado como uma imagem material que, constantemente, distancia-se do presente). Isso nos levará à seguinte indagação (que buscarei responder ao final desta seção): qual é a diferença (se é que há alguma) entre a crítica de 1929 da ideia de que “tudo flui”, como fruto da má aplicação do símile do projetor, e a crítica do PS, do sentimento de que “tudo flui”, como decorrente da falsa analogia do passado como uma imagem material (na qual a memória seria incapaz de reter o fluxo das imagens que desapareceriam no passado)? Caso não haja diferença, o próprio Wittgenstein teria sido, em 1929-1930, vítima do tratamento equivocado da metáfora do projetor, denunciada por ele nesse mesmo período?446

As respostas dessas indagações podem ser alcançadas através da distinção entre um nível empírico e um nível metafísico da crítica de Wittgenstein ao mobilismo heraclítico. No nível empírico, o sentimento de que tudo flui decorreria da confusão entre o estatuto ontológico dos sistemas primário e secundário. Esse é o caso que

445 MS 108, p. 1 / PB, §54. (“Daß alles fließt, muß in der Anwendung der Sprache ausgedrückt sein, und

zwar nicht in einer Anwendungsart, im Gegensatz zu einer andern, sondern in der Anwendung. In dem, was wir überhaupt die Anwendung der Sprache nennen”).

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atribuímos à Russell (no capítulo 1.1.4.), no tratamento dado por ele à metáfora do projetor.447 Para Russell, a verdade por detrás da metáfora bergsoniana é que a maneira como o filme corre sob a luz do projetor (causando a ilusão de movimento na tela) seria o modo como os objetos físicos, compostos por corpúsculos-temporais de menor duração, nos levariam à ideia de que as coisas persistem no mundo.448 É esse tipo de equívoco que seria o alvo da crítica de Wittgenstein, em 1929:

E aqui estamos obviamente usando a imagem de uma película cinematográfica que constantemente passa por nós, sem que possamos pará-la. Mas isso é claramente apenas resultado do mau emprego da imagem: não podemos dizer “o tempo flui” se pelo tempo queremos dizer a possibilidade do movimento.449

Ou seja, para Wittgenstein, esse tratamento do fluxo temporal seria o equívoco entre o âmbito normativo e o empírico, no qual atribuímos ao tempo (que é a forma lógica do movimento) a característica (empírica) de ser algo que flui no próprio tempo.

Porém, a filosofia de Wittgenstein, em 1929-1930, estaria sujeita a um nível mais pernicioso da ilusão filosófica de que “tudo flui”. Ao atribuir o fluxo à essência do mundo, Wittgenstein distancia-se do nível empírico da ilusão de que “tudo flui” (como o correr do filme), mas sucumbe ao tratamento metafísico desse mito filosófico. O fluxo heraclítico não seria o correr do filme rumo ao passado, mas a forma como as imagens na tela nos são dadas. É nesse tempo da tela (do mundo primário) que a memória seria a fonte do tempo – como condição de possibilidade do fluxo. E será contra o âmago dessa concepção metafísica de fluxo temporal que incidirá a crítica do PS.

Em 1929, a criticava ao tratamento do “tudo flui” como a má aplicação da metáfora do projetor visava desfazer um tratamento empírico do fluxo temporal da realidade (no qual se atribui ao filme o estatuto da realidade). Nesse caso, Wittgenstein teria como alvo alguns autores da psicologia empírica do início do século XX (sendo que poderíamos incluir aqui o tratamento dado por Russell, a partir do modo como interpreta a metáfora do projetor no UCM). Wittgenstein não seria vítima dessa forma de equívoco em 1929-1930. Porém, Wittgenstein teria sucumbido, em 1929-1930, ao tratamento metafísico dessa ideia de fluxo. O fluxo seria tratado como a forma lógica temporal da realidade (da tela), que determinaria a forma temporal da linguagem – semelhantemente às estruturas a priori que fixam a multiplicidade lógica dos espaços de

447 Cf. UCM, pp. 99-100. (Reeditado em ML). 448 Cf. UCM, pp. 99-100.

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possibilidades, determinando o horizonte intencional da linguagem. E é a gênese dessa concepção metafísica do fluxo heraclítico que será o alvo da crítica do PS.

Assim, podemos dizer que Wittgenstein, no PS, também visa criticar a ideia do passado como uma imagem material (um objeto), que cada vez ficaria mais inacessível, ao fluir rumo ao passado. Porém, o problema aqui não é a mera má utilização da metáfora do projetor, no qual há a inversão do estatuto ontológico do filme e da tela, mas a ilusão metafísica de um fluxo essencial da realidade (da tela), na qual supomos a existência de uma imagem material da vivência passada (que subsistiria no passado, na ordem do tempo primário).

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