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1. Introdução

1.2. A memória como parte da estrutura lógica do mundo

1.2.3. A memória como fonte do conhecimento

A memória como fonte do conhecimento pode ser interpretada como uma consequência epistemológica do estatuto ontológico concedido à memória como fonte do tempo. Para compreendermos esse papel, é importante, inicialmente, notarmos como o estatuto da memória será diferente no tempo fenomenológico e no tempo físico (quando ela é a memória de um evento físico).

No MS 108, Wittgenstein busca distinguir a memória como fonte do tempo e a memória como imagem de um evento físico (que abordaremos ao longo desta seção e das seções seguintes). Esses dois modos de apresentação da memória, segundo Wittgenstein “(...) estão em ordem, e são igualmente legítimos, mas não podem ser misturados”.118 Confundir esses modos seria equivalente à confusão (nos termos da

metáfora do projetor) entre o filme e a tela, na qual se concede o estatuto da realidade (o sistema primário) a uma mera forma de apresentação da realidade (o sistema secundário).119 No que tange à memória, isso equivaleria à confusão entre a memória

118 Cf. MS 108, p. 33 / PB, §49. (“Beide Ausdrucksweisen sind in Ordnung und gleichberechtigt, aber

nicht miteinander vermischbar”).

119 Como notaremos na seção seguinte, este seria o pano de fundo do ceticismo do passado, que acomete a

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como parte da estrutura lógica da realidade e o tratamento fisicalista da memória, como uma imagem (representação) de um evento físico.

O tratamento fisicalista da memória como imagem de um evento físico é descrito por Wittgenstein como uma mera metáfora, semelhante ao caso em que se diz que as representações são “imagens de objetos em nossas mentes”.120 Sobre isso, afirma o autor:

Nós apenas usamos uma metáfora e agora a metáfora nos tiraniza. Na linguagem da metáfora, sou incapaz de sair da metáfora. Deve conduzir a contrassenso se você tentar usar a linguagem dessa metáfora para falar de memória como a fonte de nosso conhecimento, como verificação de nossas proposições.121

O ponto sobre o qual nos dedicaremos nessa seção é a caracterização feita por Wittgenstein, nesse trecho, ao dizer que seria um contrassenso utilizar a linguagem da metáfora (a memória em sentido fisicalista) para falar da memória como “fonte do nosso conhecimento, como verificação de nossas proposições”. De acordo com a interpretação aqui sugerida, essa caracterização da memória como fonte do conhecimento (como aquilo que verifica as nossas proposições) pode é atribuída, por Wittgenstein, à memória em sentido primário. É esse papel que concederá à memória um lugar de destaque no projeto de construção da linguagem fenomenológica, pois a memória será o critério de exatidão da descrição fenomenológica (daquilo que nos foi dado). Esse ponto nos será extremamente importante ao analisarmos a crítica feita por Wittgenstein, no texto “Linguagem Fenomenal” (PS) (ditado a Waismann), à busca por uma linguagem que descreveria de forma completamente exata a experiência imediata.122

Wittgenstein retoma as ideias presentes no parágrafo 49 das PB em uma conversa com o Círculo de Viena, em que afirma, no dia 25 de dezembro de 1929:

Se eu posso verificar uma especificação temporal – por ex., que tal e tal veio antes que tal e tal – apenas através da memória, ‘tempo’ deve ter um sentido diferente do caso onde eu posso verificar uma tal especificação por outros meios, por ex., lendo um documento, ou perguntando a alguém e assim por diante. (...). Do mesmo modo, deve-se separar a memória como a fonte e a memória que pode ser verificada de um modo diferente.123

120 Cf. MS 108, p. 33 / PB, §49.

121 MS 108, p. 33 / PB, §49. (“Wir haben eben ein Gleichnis gebraucht, und nun tyrannisiert uns das

Gleichnis. In der Sprache dieses Gleichnisses kann ich mich nicht außerhalb des Gleichnisses bewegen. Es muß zu Unsinn führen, wenn man mit der Sprache dieses Gleichnisses über das Gedächtnis als Quelle unserer Erkenntnis, als Verifikation unserer Sätze, reden will”).

122 O PS poderá ser tomado como uma crítica direta à concepção da memória como fonte do

conhecimento, sustentada por Wittgenstein em 1929-1930.

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Um ponto que abordaremos detidamente no capítulo 2, mas que aqui já é importante que tenhamos em mente (para que possamos compreender o peso dessa citação), é o modo como Wittgenstein articula sentido e verificação, em 1929-1930. Segundo Wittgenstein: “[a] verificação não é uma mera indicação [Anzeichen] da verdade, mas é o sentido da proposição. (Einstein: como uma magnitude é mensurada é o que ela é)”.124 Essa sobreposição entre o sentido e a verificação decorre da concepção

de que: “[a] fim de ter uma ideia do sentido de uma proposição, é necessário o esclarecimento acerca do procedimento que leva à determinação de sua verdade”.125

Assim, “o método de verificação (...) é o sentido ele mesmo”.126 Em resumo (atendo-se

apenas ao que é central aos nossos propósitos nesta seção): saber o sentido de uma proposição é saber o procedimento pelo qual ela é projetada sobre a realidade, possibilitando a determinação de sua verdade ou falsidade.

No trecho citado do WVC (p.53), Wittgenstein claramente expressa a ideia de que há um sentido em que se pode dizer que proposições sobre o passado (por exemplo, “que tal e tal veio antes que tal e tal”) são verificadas “apenas através da memória”. Esse papel pode ser atribuído à memória no mundo primário, pois (como visto nas seções anteriores) não há nenhum outro acesso ao passado fenomênico, de tal modo que as proposições fenomênicas sobre o passado têm apenas a memória como aquilo que poderia determinar o seu valor de verdade. Dito de forma ainda mais forte: o passado e o que nos é dado pela memória são uma só e a mesma coisa. Assim, não faz sentido duvidar (tomando aqui o espaço visual como modelo) se na imagem mnemônica cada ponto do espaço visual rememorado é o mesmo ou apenas parece ser. Além disso, essa mesma infalibilidade do conteúdo da memória se expressa no que diz respeito à ordem (podendo ela, com isso, ser aquilo que verifica uma proposição do tipo “que tal e tal veio antes que tal e tal”). O cerne da questão é que o colapso entre passado e memória primária torna a relação com o passado uma relação interna (lógica/necessária), de tal modo que não faria sentido, no mundo primário, indagar acerca da correção do que nos é dado pela memória – tanto acerca do conteúdo quanto da ordem dessa rememoração.

Mas isso não diz respeito apenas à determinação do valor de verdade das proposições sobre o passado da memória, pois, para Wittgenstein (no período em

124 MS 107, p. 143 / PB, §166. (“Die Verifikation ist nicht ein bloßes Anzeichen der Wahrheit, sondern

der Sinn des Satzes. (Einstein: wie eine Größe gemessen wird, das ist sie.)”).

125 WVC, p. 244 (Um sich den Sinn eines Satzes zu vergegenwärtigen, muß mann sich ds Verfahren klar

machen, das zur Feststellung seiner Wahrheit führt.).

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questão), “o método de verificação (...) é o sentido ele mesmo”.127 De acordo com a passagem citada do WVC (p.53), Wittgenstein contrapõe a verificação das proposições sobre o passado no caso em que são verificadas apenas pela memória e o caso em que são verificadas de outras formas, tendo em vista mostrar que nesses casos o conceito de tempo tem um sentido diferente. No caso em que a verificação das proposições sobre o passado ocorreria apenas através da memória, estaríamos no âmbito do tempo primário (fenomenológico). Quando há a possibilidade de verificar as proposições sobre o passado de outras maneiras, estaríamos no âmbito do tempo físico. Uma importante consequência dessa distinção é que, se “o método de verificação é o sentido ele mesmo”, a proposição que trata do passado no tempo primário terá um sentido diferente da proposição que trata do passado no tempo secundário, pois, os métodos de verificação dessas proposições serão diferentes. A principal diferença é que, no tempo primário, a memória nos dá o passado sobre o qual verificamos a verdade ou falsidade das proposições. Já no tempo secundário, embora não parece haver empecilho ao caso em que poderíamos verificar uma proposição recorrendo à memória, não será apenas através da memória que a verificação ocorrerá, pois não há uma relação interna/necessária entre o passado e a memória como imagem de um evento físico. Ela será apenas “(...) um guardião mais ou menos confiável do que ‘realmente’ aconteceu; e isto era algo que podemos saber de outro modo, um evento físico”.128 Nesse caso, é

possível conceber a falha da memória, quando os outros métodos de verificação tornam evidentes que a memória em questão é falsa. Ou seja, como dirá o autor no BT: “[s]e falamos sobre lembrar-se de maneira incorreta, memória é apenas um dos critérios para determinar que algo no mundo físico aconteceu”.129 Em resumo: no tempo primário a memória é aquilo que verifica as proposições sobre o passado (o seu fazedor-de- verdade), enquanto no tempo secundário as memórias seriam passíveis de verificação. Nesse segundo caso, teríamos que recorrer a outras fontes (“lendo um documento, ou perguntando a alguém e assim por diante”) para determinar o que “realmente” aconteceu.

Wittgenstein retoma essas ideias em um ditado a Waismann, intitulado “Tempo”:

127 WVC, p. 244. (“Die Method der Verifikation is nicht ein Mittel, ein Vehikel, sondern der Sinn

selbst”).

128 MS 108, p. 33 / PB, §49 / BT, §105, p. 363.

129 BT, §105, pp. 364-365. (“Denn wir reden von einem Fehlerinnern und das Gedächtnis ist nur eines

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Mas se não posso comparar minha memória com o passado, não tem sentido colocar em dúvida ou perguntar se é ou não enganadora.

Se, contudo, outra verificação for admissível – lendo notas, documentos, cartas ou perguntando a outra pessoa etc. – então não se fez algo como confirmar a memória, mas se conferiu à expressão da determinação temporal e, em suma, à palavra “passado”, um outro significado, e, de acordo com esse novo significado, pode ocorrer que duas experiências que eram simultâneas em minha memória devam ser tomadas como não simultâneas. Digo então: elas pareciam ter sido simultâneas, mas não eram – assim como digo: essas duas linhas me parecem ter o mesmo tamanho, mas não têm.130

Wittgenstein inicia esse trecho expressando a infalibilidade da memória no mundo primário, pois, nesse caso, a memória não pode ser comparada com o passado – de tal modo que não faz sentido indagar se ela é ou não correta (como visto, no mundo primário há uma exclusividade ontológica do presente). Uma vez que não há uma cisão entre passado e memória, não poderá haver uma distinção entre ser e parecer ser; de tal modo que pudéssemos indagar se aquilo que é dado pela memória é ou não aquilo que realmente aconteceu. No caso em que uma outra verificação é admissível (por exemplo, pela leitura de notas, documentos cartas ou relatos de terceiros), a memória não terá o papel de fonte. Sobre esse outro modo de conceber a memória, alerta Wittgenstein, que a memória seria apenas uma expressão para datar algo (como que dizendo que isso ocorreu no passado) e que o termo “passado” teria aqui um sentido diferente do passado em sentido primário.

A possibilidade de outros meios de verificação das proposições sobre o passado introduz uma cisão entre ser e parecer ser, que torna a memória (nessa acepção fisicalista de passado) passível de bipolaridade. O exemplo dado por Wittgenstein é que, duas experiências, que me são dadas como simultâneas pela memória, poderiam ser não simultâneas, quando verificadas por um método de verificação, que comprove o erro da memória. Nesse caso, aceitaríamos a distinção entre ser e parecer ser, no sentido de que diríamos que os eventos nos parecem simultâneos, porém, eles não eram realmente simultâneos. É justamente essa cisão entre ser e parecer ser que é inadmissível a Wittgenstein no tratamento da memória (em sentido primário), como fonte do

130 VW, pp. 334-336. (“Kann ich aber meine Erinnerung mit der Vergangenheit nicht vergleichen, so hat

es auch keinen Sinn, an ihr zu zweifeln oder zu fragen, ob sie nicht trügt. / Lässt man aber eine andere Verifikation zu – etwa das Nachlesen von Aufzeichnungen, Dokumenten, Briefen oder das Befragen anderer Personen und dgl. mehr – so hat man nicht etwa die Erinnerung berechtigt, sondern man hat, dem Ausdruck der Zeitbestimmung und überhaupt dem Wort ‘vergangen’ eine andere Bedeutung gegeben, und in dieser neuen Bedeutung kann es sehr wohl sein, dass zwei Erlebnisse, die in meiner Erinnerung gleichzeitig waren, als ungleichzeitig anzusehen sind. Ich sage dann: Sie schienen mir gleichzeitig zu sein, waren es aber nicht, so wie ich etwa sage: Diese beiden Strecken erscheinen mir gleichlang, sind es aber nicht”).

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conhecimento, como verificação de nossas proposições.131 Como exploraremos a seguir, há uma diferença no estatuto ontológico do passado, nos âmbitos fenomenológico e fisicalista, que torna a memória de um evento físico bipolar, pois poderá corresponder ou não ao evento, que subsiste no passado da ordem do tempo físico.

1.3. A crítica de Wittgenstein ao problema ceticismo russelliano do