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A crítica de Heidegger ao vitalismo, mecanicismo e darwinismo nos seminários de 1929-

Capítulo 2. A teoria freudiana do aparelho psíquico

4. A crítica ontológica de Heidegger a Freud

4.1. A crítica de Heidegger ao vitalismo, mecanicismo e darwinismo nos seminários de 1929-

De acordo com o filósofo, um exame mais atento das posições teóricas das duas escolas de fisiologia (mecanicista e vitalista) mostra que as posições de ambas não são absolutamente heterogêneas como se poderia pensar. Na realidade, aproximam-se em um aspecto fundamental: ambas possuem um pressuposto ontológico comum, a compreensão do sentido do ser do ente vivo como “substância”. Vejamos esse ponto melhor.

De acordo com Heidegger, a determinação da “substância viva” pelo conceito de Irritabilidade (Reizbarkeit) é, mesmo em Müller e sua posição vitalista, que supõe a existência de forças (não físicas) que determinam certos fenômenos na substância viva, ainda demasiadamente orientada pela concepção mecanicista de relação causal227, na medida em que é concebida negativamente em relação a ela: a irritação ou excitação se diferenciaria da relação mecânica na medida em que nela não há uma reação proporcional da substância irritada sobre o estímulo, como seria o caso em uma relação causal mecânica. Essa concepção seria, segundo Heidegger, mal orientada, porque permanece uma caracterização negativa e não supera a concepção de organismo vivo como um ente subsistente.

Um ente subsistente é um ente que não possui uma relação a priori estabelecida com o mundo, isto é, que é desmundanizado. Um ente desmundanizado, que “perdeu” a relação essencial com o mundo, é um ente que se tornou um objeto meramente presente, ou nos termos de Heidegger, que foi objetificado, e que, portanto, não se refere mais

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O mesmo pode ser dito de Whytt, como vimos, um dos fundadores da fisiologia vitalista, e que defendia a impossibilidade de se compreender o movimento involuntário (paradigma de movimento dos organismos) através dos conceitos de causa e efeito, uma vez que o efeito poderia ser, nestes casos, maior do que a causa. Quanto a isso reveja-se a já citada passagem de Reil: “Whytt propos (...) que o sistema animal não poderia ser compreendido sob a idéia de um máquina. Ele empregou os conceitos de “conjunção orgânica” e “forças ativas” para justificar essa posição. Ele demonstrou isso ao citar exemplos que mostravam a insuficiência do concetio mecânico de causa e efeito para exmplicar a contração muscular. Músculos, quando tocados, se contraem com uma força muito maior do que a causa origial. Eles continuam a contrair e a relaxar seguindo um padrão pulsante bem depois do desaparecimento da causa original. Dito de maneira simples, o efeito não seria diretamente proporcional à força da causa original.” (Reill 2005, p. 128).

(essencialmente) a um mundo. Uma relação essencial é, ao contrário de uma relação externa, aquela cuja relação é condição da existência dos termos relacionados. Essa relação com o mundo, “perdida”, pode ser de diferentes tipos. O ser humano, o animal, a obra de arte e um instrumento de uso possuem, todos, uma relação essencial com o mundo, embora cada um ao seu modo. Isso significa que esses entes não podem ser concebidos como se fossem coisas (entes), por si, que possuem, ademais, uma relação com outros entes.

Justamente essa mudança na maneira de conceber o sentido do ser dos entes, objetificante, é o que acontece com os seres vivos na ciência, seja ela mecanicista ou vitalista. Em ambas, toma-se o animal como um ente desmundanizado e objetificado, isto é, como um ente existente por si, num mundo igualmente existente por si, e que “posteriormente” essas duas “coisas” (independentes) entrariam em relação uma com a outra. A partir daí ambas as tradições difeririam entre si: de um lado, os reducionistas tentam reduzir as relações entre ambiente (fonte de estímulo) e organismo a relações causais, compreensíveis através dos conceitos físicos; de outro, os vitalistas, que tentam demonstrar a impossibilidade de uma tal tarefa e demonstrar a necessidade de se conceber forças não físicas para se compreender a organização e o movimento dos organismos. Nesse caso, a diferença entre ambas as escolas não faz mais do que reforçar o ponto de partida comum pressuposto por ambas, isto é, a suposição naturalista de que o animal é uma substância (independente). Ao se fazer isto, perde-se o modo de ser específico dos animais em relação a outros entes. Sobre isso Heidegger diz:

Vê-se facilmente o quanto essa interpretação corrente do estímulo e da relação de estimulação é demasiado orientada pela comparação com a relação mecânica. Mas, além disso, essa interpretação é falsa, e tanto mais quanto ela esconde justamente a relação decisiva nessa relação de estimulação. (Heidegger 1929-30, p. 373)

Da mesma forma, as teorias biológicas evolucionistas mantém-se presas ao mesmo quadro ontológico (objetificante) que as outras escolas acima apresentadas. Quanto a isso Heidegger é explicito ao afirmar que mesmo as tradições inspiradas pelo darwinismo, com sua concepção da relação de adaptação do organismo ao mundo, partem de uma concepção do ser do organismo como um ente subsistente. Veja-se, por exemplo, a seguinte citação de Heidegger:

O ponto de vista da necessidade da ligação [Verbundenheit] do organismo com seu ambiente [Umgebung], um fenômeno que no darwinismo veio a ser denominado com o termo adaptação, mas que nessa fórmula justamente veio a ser tomado em um sentido segundo o qual o organismo é algo subsistente [Vorhandenes] e que, além disso, ainda está em ligação com o ambiente. O organismo não é algo por si e que ademais se adpata [paßt...

na], ao contrário, o organismo adapta para si [paßt... ein], a cada vez, um determinado

ambiente. (Heidegger 1929-30, p. 384)

Para se compreender o que é decisivo na relação do animal com o meio que o estimula, do ponto de vista de Heidegger, é necessário uma interpretação fenomenológica da relação do animal com o mundo ao seu redor (Umwelt). Justamente isso o que Heidegger faz na segunda parte de seu seminário dos anos 1929-30. Ou seja, Heidegger irá partir da tese de que os animais possuem uma experiência do mundo228 (uma abertura), irá descrever em que consiste essa experiência e buscar a partir dela a caracterização da essência do organismo. Ou seja, trata-se, também aqui, de descrever a essência do animal e seu modo de ser a partir da experiência que ele tem do mundo, isto é, fazer fenomenologia e não construir hipóteses no ar229.

Agora, dizer que o animal possui um mundo significa, fundamentalmente, dizer que “o animal não é também algo subsistente, antes é determinado em seu modo de ser por ter acesso a... [Zugänglichkeit zu].” (idem, p. 294). O trabalho interpretativo consiste justamente em mostrar em que consiste esta “acessibilidade a” que o animal possui e qual a sua condição de possibilidade.