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As descobertas psicanalíticas do período imediatamente anterior à Interpretação dos Sonhos (1894-1900)

Capítulo 2. A teoria freudiana do aparelho psíquico

2.3. As descobertas psicanalíticas do período imediatamente anterior à Interpretação dos Sonhos (1894-1900)

O passo seguinte na ordem das descobertas freudianas foi a descoberta da defesa (Abwehr), a repressão, como causa do esquecimento. Essa descoberta só foi possível uma

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Pressuposto está aqui a noção de que lembrança e esquecimento, consciência ou não consciência, é uma questão de quantidades, ou seja, que existe um certo limiar (quantitativo) abaixo do qual traços mnêmicos, sensações, pensamentos, etc, continuam a existir (na memória), mas não são conscientes, e acima do qual se tornam conscientes. Essa tese do limiar da consciência já havia sido apresentada por Fechner e Weber e antes deles por Herbart e por Leibniz. Fechner diz: “Enquanto o estímulo ou a diferença de estímulo permanecer abaixo do limiar, sua percepção é, como se diz, inconsciente.” (Fechner 1860, p. 205-6). E antes diz: “uma vez que outros fenômenos gerais superiores da consciencia também possuem um opnto de expiração e um ponto de origem, estaremos em condições de generalizar o conceito e expressão de limiar a eles.” (idem, 199- 200).

vez que Freud havia se deparado com um fenômeno central na clínica psicanalítica, o fenômeno da resistência. Esse útlimo fenômeno, por sua vez, só pôde ser descoberto com a mudança do método de investigação, do método catártico para o método da pressão (Drang). Essas descobertas foram relatadas em dois textos que abrem o período aqui em questão: As Neuropsicoses de defesa (1894) e Sobre a psicoterapia da histeria (1895), última parte de seu texto publicado nesse mesmo ano, Estudos sobre Histeria (1895). Vejamos melhor esses pontos.

Com o abandono do método catártico, pela sua dependência da hipnose, que não era bem sucedida em todos os casos de histeria144, bem como pela sua ineficiência em evitar o ressurgimento dos sintomas histéricos (ação sintomática)145, Freud se viu obrigado a substituí-lo por um outro método, o método da “pressão”146. Segundo esse novo método, fazia-se a investigação sem o recurso da hipnose, de tal modo que Freud “se tornava insistente – quando lhes assegurava [aos pacientes] que eles efetivamente sabiam, que aquilo [a cena traumática] lhes viria à mente – então, nos primeiros casos, algo de fato lhes ocorria, e nos outros a lembrança avançava mais um pouco. Depois disso, eu ficava mais insistente” (Freud 1895a, p. 268).

Com isso ele se deparou com o fenômeno da resistência, que pode ser observado sempre que se tenta levar adiante a anamnese psicanalítica com o paciente em estado de vigília. Pode-se notar, diz Freud, que é necessário um esforço por meio do qual deve-se “superar uma força psíquica nos pacientes que se opunha a que as representações patogênicas se tornassem conscientes (fossem lembradas).” (idem, p. 268).

Com a constatação do fenômeno clínico da resistência, Freud foi levado à conclusão de que “essa sem dúvida deveria ser a mesma força psíquica que desempenhara um papel na geração do sintoma histérico e que, na época, impedira que a representação patogênica se tornasse consciente.”(idem, p. 268). Ou seja, surgiu a idéia da defesa (Abwehr) como causa do esquecimento e, portanto, das neuroses. Isso implicaria, segundo Freud, que na origem de todo esquecimento estava uma “decisão”, embora não consciente, em retirar da consciência uma certa representação mental ou um sentimento aflitivo, um não-querer- saber sobre o acontecido traumático. Sobre esse ponto Freud diz:

144 Cf. Freud 1895a, p. 253. 145 idem, p. 260. 146 idem, p. 268.

Assim uma força psíquica [psychische Kraft], uma aversão [Abneigung] do eu, teria originariamente impelido a representação patogênica para fora da cadeia associativa e agora (durante o tratamento) se oporia a seu retorno na memória. O não-saber do paciente histérico seria propriamente um não-querer-saber [Nichtwissenwollen], mais ou menos consciente. (Freud 1895a, p. 269)

Esse não-querer-saber seria determinado, por sua vez, por duas exigências antagônicas147: de um lado, o princípio de constância, que pressiona no sentido da eliminação de quantidades de excitação, de outro, a moral, a vergonha e as normas sociais que impedem certas manifestações de afeto. Como resultado desse estado de coisas, o esquecimento é uma solução de compromisso que permitiria satisfazer as duas exigências (eliminação e não eliminação da excitação) ao mesmo tempo, com uma eliminação disfarçada de excitação, mas que tem como conseqüência dar origem a um sintoma neurótico148.

Essa tese da defesa permitiu a Freud reordenar sua teoria das neuroses, e propor uma inovação nosográfica149 reunindo em um mesmo grupo, as chamadas neuropsicoses de defesa – a histeria, as obsessões, as fobias, mas também a confusão alucinatória ou amência de Meynert e posteriormente a paranóia – de modo que a defesa seria determinante e comum a todos os casos de psiconeurose, acrescentando formas específicas, em cada uma delas, de lidar com essa soma de excitação desvinculada: conversão (na histeria), “falsa ligação” (na neurose obsessiva e na fobia), projeção (na paranóia), reconstrução delirante (satisfação alucinatória de desejo) da realidade perdida (confusão alucinatória)150. Essa tese da defesa como resultado de um conflito psíquico é a primeira contribuição de Freud em

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Como Freud diz em relação ao processo de formação de lembranças encobridoras, no essencial semelhante à formação de sintomas neuróticos: “Há duas forças psíquicas envolvidas na promoção desse tipo de lembranças. Uma dessas forças encara a importância da experiência como um motivo para procurar lembrá-la, enquanto a outra – uma resistência – tenta impedir que se manifeste qualquer preferência dessa ordem. Essas duas forças opostas não se suprimem mutuamente, nem qualquer delas predomina (com ou sem perda para si própria) sobre a outra. Em vez disso, efetua-se uma conciliação, numa analogia aproximada com a resultante de um paralelogramo de forças.” (Freud 1899, p. 536).

148

Cf. Freud 1894a, p. 61-2.

149

Cf. Freud 1896a, p. 411.

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relação a Breuer, e marca a adoção, por parte do primeiro, do ponto de vista dinâmico (conflito de forças)151.

Nesse texto de 1895 aparece afirmada, ainda, a tese da natureza sexual do trauma152. Sobre esse último ponto, Freud diz:

Assim, partindo do método de Breuer, vi-me eocupado em considerações sobre a etiologia e o mecanismo das neuroses em geral. (...) Em primeiro lugar, fui obrigado a reconhecer que, na medida em que se possa falar em causas determinantes [Verursachung] que levam à aquisição de neuroses, sua etiologia deve ser buscada em elementos sexuais. (Freud 1895a, pp. 254-5)

Nesse texto, Freud considera que o rompimento do vínculo associativo entre a representação original e o afeto e sua substituição por um sintoma (que está no lugar da representação original, isto é, que a simboliza) se deve ao fato de o afeto envolvido ser de natureza sexual. Desse modo, chega-se à tese de que o sintoma histérico pode ser concebido como símbolo de uma representação de caráter sexual reprimida.

A descoberta da sexualidade como determinante nos traumas psíquicos, além de ser um dado clínico, torna mais aceitável a idéia proposta por Freud de que existem quantidades de excitação na mente que se deslocam de uma representação para outra, uma vez que a interpretação da sexualidade através do conceito de “quantidade de excitação” é mais aceitável (aparentemente mais próxima de uma descrição de um dado da experiência) do que a interpretação dos afetos como quantidades de excitação (que em nada se aproxima dos dados da experiência consciente).

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O que permitiu a adoção desse ponto de vista (dinâmico) não foi tanto a observação clínica, que dava margem a outras hipóteses (p.ex. Janet e Breuer), mas o pressuposto metodológico de Freud, herdado de Brücke, segundo o qual, dentre as várias hipóteses, dever-se-ia preferir hipóteses dinâmicas às mecânicas.

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Uma referência à importância da sexualidade já tinha aparecido antes, em seu texto de 1894a, quando diz: “Nas pessoas do sexo feminino, esse tipo de representações incompatíveis assoma principalmente no campo da vivência e das sensações sexuais, e as pacientes conseguem recordar com toda a precisão desejável seus esforços defensivos, sua intenção de “expulsar aquilo para longe”, de não pensar no assunto, de suprimi-lo.” (Freud 1894a, p. 62). Mesmo antes, em seu Esboço para a Comunicação Preliminar (1892) de seus Estudos

sobre Histeria (1895), Freud já havia reconhecido a importância da sexualidade como fator desencadeante das

neuroses: “Especialmente apropriada para proporcionar o conteúdo [de tais traumas] é a vida sexual, devido ao poderoso contraste que representa para o restante da personalidade e pelo caráter de não se poder reagir [Unreagierbarkeit] a suas idéias.” (Freud 1892b, p. 18). Mas em ambos os textos a sexualidade não era a causa determinante.

No mesmo texto, é apresentado ainda o fenômeno clínico da transferência que também é pensado a partir dos mesmos conceitos utilizados até aqui. De acordo com Freud, “a paciente se assusta ao verificar que está transferindo (überträgt) para a figura do médico as representações aflitivas [peinliche Vorstellungen] que emergem do conteúdo da análise. Essa é uma ocorrência freqüente e, a rigor, usual em algumas análises. A transferência para o médico se dá por meio de uma falsa ligação [falsche Verknüpfung].” (Freud 1895a, p. 308-9).

Por “falsa ligação”, Freud entende a relação (associação) entre representações, nesse caso entre a representação inconsciente de desejo sexual e a representação do médico, de tal modo que permite a passagem da excitação de uma para outra. Freud diz:

O que aconteceu, portanto, foi isto: o conteúdo do desejo apareceu, antes de mais nada, na consciência da paciente, sem nenhuma lembrança das circunstâncias contingentes que o teriam atribuído a uma época passada. O desejo assim presente foi então, graças à compulsão a associar que era dominante na consciência da paciente, ligado a minha pessoa, na qual a paciente estava legitimamente interessada; e como resultado dessa mésalliance – que descrevo como uma “falsa ligação” – provocou-se o mesmo afeto que forçara a paciente, muito tempo antes, a repudiar esse desejo proibido. Desde que descobri isso, tenho podido, todas as vezes que sou pessoalmente envolvido de modo semelhante, presumir que uma transferência e uma falsa ligação tornaram a ocorrer. (Freud 1895a, p. 309)

Em 1896, em seu texto “L’hérédité et l’étiologie des névroses”, Freud apresenta a tese de que a condição para o surgimento das neuroses de defesa não é apenas a ocorrência de um trauma de conteúdo sexual, mas que este trauma teria ocorrido no período pré- púbere. Ou seja, “é bem uma lembrança que se relaciona com a vida sexual, mas que oferece duas característica da maior importância : o envento do qual o sujeito guardou a recordação inconsciente é uma experiência precoce de relações sexuais com irritação verdadeira das partes genitais, seguida de abuso sexual praticado por uma outra pessoa, e o período da vida que encerra esse evento funesto é a primeira juventude, os anos até a idade de oito a dez anos, antes que a criança tenha chegado à maturidade sexual.” (Freud 1896a, p. 417).

De acordo com Freud essa cena não teria nenhum ou quase nenhum efeito imediato sobre a pessoa, no sentido de desencadear uma neurose, em função de sua imaturidade sexual. O evento em questão ficaria, contudo, firmemente arquivado na memória do paciente e, quando do despertar da sexualidade na puberdade, ganharia a posteriori (nachträglich) uma nova significação e adquiriria o caráter propriamente traumático que se encontra nas cenas inconscientes dos pacientes neuróticos. Ou seja, o caráter traumático não é dado com a vivência (Erlebnisse) em si, mas com a sua revivescência153 (Wiedererlebung) como lembrança após a entrada do indivíduo na maturidade sexual.

É justamente porque o sujeito é infantil que a irritação sexual precoce produz nenhum ou pouco efeito na ocasião [em que ocorreu], mas o traço psíquico dela é conservado. Mais tarde, quando na puberdade se desenvolver a reatividade dos órgãos sexuais a um nível quase incomensurável com o estado infantil, ocorre de uma maneira ou de outra que esse traço psíquico inconsciente desperta. Graças à mudança devida à puberdade a lembrança desdobrará um poder que estava ausente no acontencimento ele mesmo ; a lembrança agirá como se fosse um evento atual. Há, por assim dizer, uma ação póstuma de um traumatismo sexual. (Freud 1896a, p. 419)

Note-se, contudo, que por re-significação deve-se entender exclusivamente o aumento de intensidade da excitação vinculada à representação mental. Esse aumento só ocorreria, diz Freud, na puberdade e no que diz respeito à vida sexual, de modo que assim poderia ser explicada a razão da etiologia das neuroses estar vinculada à sexualidade154.

De todo modo, a tese assim alcançada pelo método psicanalítico pode ser enunciada do seguinte modo: a causa específica da histeria consiste em uma lembrança de uma experiência sexual precoce reprimida155 re-significada com o advento da puberdade. E os eventos posteriores à puberdade, que têm alguma influência sobre o desenvolvimento da neurose histérica e sobre a formação dos sintomas neuróticos não são os verdadeiros determinantes, mas meros “agents provocateurs”. Desse modo, o que antes era concebido como cena traumática, agora é visto como sendo apenas um agente secundário que teria

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Cf. Freud 1896b, p. 381.

154

Cf. idem, p. 384, nota de rodapé.

155

importância apenas na medida em que revive a verdadeira cena traumática, ocorrida na infância156.

Com a descoberta dessa causa específica das neuroses, Freud reviu sua tese sobre a etiologia das neuroses de defesa indicando que em ambas trata-se de uma cena de caráter sexual ocorrida na infância, mas com uma diferença fundamental entre a histeria e a neurose obsessiva: na primeira haveria “uma experiência sofrida com indiferença ou um pouco de despeito ou de medo. Na neurose de obsessão trata-se, ao contrário, de um evento que foi prazeroso, de uma agressão sexual inspirada pelo desejo (no caso de meninos) ou de uma participação com prazer em relações sexuais (em caso de menina).” (Freud 1896a, p. 420).

Freud ainda se mantém, contudo, fiel à tese da realidade da cena traumática como evento causador da neurose. Em outro texto de 1896, ele reafirma a importância das experiêncais sexuais infantis157. Contudo, ele ainda não descobriu propriamente a sexualidade infantil tal como seria apresentada posteriormente nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905). Ou seja, a criança ainda é tida como vítima de um adulto, isto é, ela sofre uma agressão ou uma sedução por parte de um adulto, de modo que a atividade sexual não lhe seria espontânea. Veja-se quanto a isso a seguinte passagem:

Nos casos em que tinha havido uma relação entre duas crianças, pude algumas vezes provar que o menino – desempenhando, aqui, também o papel do agressor – fora previamente seduzido por um adulto do sexo feminino, e que depois, sob a pressão de sua libido prematuramente despertada e compelido por suas lembranças, tentara repetir com a garotinha exatamente as mesmas práticas que aprendera com a mulher adulta, sem fazer qualquer modificação por sua conta no caráter da atividade sexual. (...) Por conseguinte, as bases da neurose seriam sempre lançadas na infância por adultos, e as próprias crianças transferiram umas às outras a predisposição para serem acometidas de histeria posteriormente: há apenas uma pseudo-hereditariedade. (Freud 1896c, p. 445).

156

Cf. idem, p. 419.

157

Nesse mesmo texto já aparece, contudo, pela primeira vez, a idéia de que a sexualidade infantil seria diferente da sexualidade adulta normal158, caracterizada pela primazia do coito com parceiro do sexo oposto. Freud diz:

A idéia dessas cenas sexuais infantis é muito repelente para os sentimentos de um indivíduo sexualmente normal; elas incluem todos os abusos conhecidos pelas pessoas depravadas e impotentes, entre as quais a cavidade bucal e o reto são indevidamente usados para fins sexuais. (idem, pp. 451-2)

Em 1897 tem início, como se sabe, a auto-análise de Freud que levou a algumas descobertas fundamentais, em particular à descoberta do complexo de Édipo159. Nesse mesmo ano, em função de suas descobertas sobre a origem infantil dos traumas sexuais, e do papel central desempenhado neles pelo pai, o que também era confirmado pela sua auto- análise, Freud irá se defrontar com o problema do caráter real ou fantástico das representações mentais reprimidas e concluir pela necessidade de se aceitar o fato de que representações mentais fantasiadas podem ter a mesma eficácia na formação de sintomas histéricos do que cenas traumáticas reais, percebidas e guardadas na memória. Em carta a Fliess desse mesmo ano, Freud expõe suas dúvidas160:

Confiar-lhe-ei de imediato o grande segredo que lentamente comecei a compreender nos últimos meses. Não acredito mais em minha neurótica [teoria das neuroses]. (...) Depois,

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Em uma carta, de número 112, a Fliess de dezembro de 1896, Freud comenta a respeito de sua concepção das “zonas erógenas”: “A histeria propriamente não é, portanto, sexualidade repudiada, antes, mais precisamente, perversão repudiada. Por trás disso então a diéia de zonas erógenas abandonadas. Isto é, parece

que, durante a infância, seria possível obter a liberação sexual a partir de muitas das diferentes partes do corpo.” (Masson 1999, p. 223). O mesmo pode ser encontrado em outras cartas do mesmo período, por exemplo, carta 146 de novembro de 1897.

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Freud relata sua descoberta do complexo de Édipo em uma carta, de 15 de outubro de 1897, de número 142, a Fliess: “Um único pensamento de valor genérico revelou-se a mim. Verifiquei, também no meu caso, a paixão pela mãe e o ciúme pelo pai; e agora considero isso como um evento universal do início da infância, mesmo que não tão precoce como nas crianças que se tornaram histéricas. Sendo assim, podemos entender a força avassaladora de Oedipus Rex, apesar de todas a objeções levantadas pela razão contra a sua

pressuposição do destino. (...) A lenda grega capta uma compulsão que toda pessoa reconhece porque sente sua presença dentro de si mesma. Cada pessoa da platéia foi, um dia, em germe ou na fantasia, exatamente um Édipo como esse, e cada qual recua, horrorizado, diante da realização de sonho aqui transposta para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do seu estado atual.” (Masson 1999, p.293).

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Esse momento de crise da teoria psicanalítica é comentado em uma passagem de sua exposição da história do surgimento e desenvolvimento da psicanálsie. Cf. Freud 1914, p. 55.

veio a surpresa diante do fato de que, em todos os casos, o pai, não excluindo o meu, tinha de ser apontado como pervertido – a constatação da inesperada freqüência da histeria, na qual o mesmo fator determinante é invariavelmente estabelecido, embora, afinal, uma dimensão tão difundida da perversão em relação às crianças não seja muito provável. Depois, a descoberta comprovada de que, no inconsciente, não há indicações de realidade [Realitätszeichen] de modo que não se consegue distinguir entre a verdade e a ficção que é catexizada com o afeto. (Assim, permanecia aberta a possibilidade de que a fantasia sexual tivesse invariavelmente os pais como tema). (Masson 1999, Carta 139, pp. 283-4).

Essas novas teses sobre a sexualidade infantil serão explicitamente abordadas por Freud somente em 1900 (em A Interpretação dos sonhos), e mais extensamente em 1905 (em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade) havendo apenas breves indicações de suas descobertas nesse campo no texto de 1898, Die Sexualität in der Ätiologie der Neurosen. Nesse último texto Freud diz:

Assim como a totalidade do aparelho sexual humano não está compreendida nos órgãos genitais externos e nas duas glândulas reprodutoras, também a vida sexual humana não começa apenas na puberdade, como poderia parecer a um exame superficial. Contudo, é verdade que a organização e a evolução da espécie humana se esforçam por evitar uma ampla atividade sexual durante a infância. (Freud 1898a,p. 511)

A descoberta da significação dos sonhos, como realização disfarçada de desejo sexual infantil reprimido, e, portanto, como tendo o mesmo “significado” dos sintomas161, encerra o período das primeiras descobertas psicanalíticas e da fundação oficial da psicanálise como disciplina científica.

Portanto, e isso é o que nos importa no presente trabalho, pode-se dizer que todos os dados clínicos descobertos por Freud desde seus primeiros trabalhos com o método catártico, até suas descobertas clínicas propriamente psicanalíticas (resistência, repressão, transferência, sexualidade infantil, complexo de Édipo, sentido dos sonhos, etc) são elaborados com os mesmos conceitos básicos (representação mental, associação de idéias,

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afeto como quantidade de excitação, deslocamento de afeto entre representações, uma certa concepção do funcionamento da memória e princípio de constância). A partir desse quadro desenvolvido inicialmente como uma teoria da etiologia das neuroses, Freud buscará desenvolver uma teoria psicológica geral (normal e patológica162) sobre a mente ou aparelho psíquico, tanto no Projeto para uma Psicologia Científica, de maneira materialista163, quanto no sétimo capítulo de A Interpretação dos Sonhos (1900) de um ponto de vista puramente psicológico164. O exame desse último texto permitirá uma melhor compreensão da concepção freudiana do aparelho psíquico e a posterior identificação de seus principais pressupostos. Contudo, na medida em que Freud se detém no Projeto em fixar certos conceitos de base (como juízo, memória, princípio de constância etc), que não são propriamente explicitados no texto de 1900, recorreremos ao texto de 1895 e outros quando necessário. Apesar de importantes diferenças na versão materialista e psicológica do aparelho psíquico que separa a apresentação de 1895 da de 1900, esses conceitos de base continuam os mesmos, como de resto continuaram ao longo de toda a obra freudiana.