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Capítulo 2. A teoria freudiana do aparelho psíquico

2.2. A teoria freudiana inicial das neuroses (1888-1893)

2.2.2 O Conceito de representação mental na teoria freudiana

O conceito de representação mental (Vorstellung) já estava presente em Charcot e Breuer e era amplamente aceito no senso comum acadêmico da época122. O termo alemão é a tradução do termo inglês “Idea”. Esse é definido por Locke, no contexto de sua crítica empirista a Descartes, como sendo “aquilo que a mente percebe em si mesma, ou é o objeto imediato de sua percepção, pensamento ou compreensão, a isso eu chamo idéias” (Locke 1690, p. 169). Em Freud encontra-se uma concepção de Vorstellung de inspiração empirista, mas fortemente influenciada pelo naturalismo-fisiologicista da segunda metade do século XIX123. Um dos principais textos onde é apresentada sua concepção de Vorstellung é Zur Auffassung der Aphasien (1891).

Nesse texto ele aborda o conceito em questão a partir do problema das patologias da linguagem. Isto é, ele pretende fazer uma teorização sobre o “aparelho da linguagem” com 121

A analogia entre o “corpo estranho” e a “representação traumática” é de Freud. Cf. Freud 1895, p. 85.

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De acordo com os historiadores da psicanálise (Jones, Andersson, Ellenberger), a psicologia de Herbart associada com elementos da psicologia associacionista inglesa, ambas influenciadas pelo empirismo de Locke e Hume, entre outros, era a doutrina comum acadêmica. Essa versão do herbartismo estava presente, por exemplo, em Griesinger e Lindner, autores estudados por Meynert (professor de Freud) e pelo próprio Freud.

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Na segunda metade do século XIX, autores como Helmholtz, Ludwig, DuBois-Raymond, e Brücke, com quem Freud trabalhou pessoalmente, opuseram-se ao vitalismo presente na obra de Johannes Müller e pretenderam fundar uma biologia inteiramente baseada nos conceitos da física. Nesse sentido, fundaram a

Berliner Physikalische Gesellschaft. Esses mesmos autores também se dedicaram a temas de pesquisa em

fisiologia e procuraram aplicar os mesmos preceitos científicos no estudo, por exemplo da percepção, etc. Esses estudos foram decisivos para o posterior desenvolvimento de uma psicologia experimental, com Wundt, mas também para a maneira como Freud concebia os conceitos psicológicos de base de sua teoria das neuroses. Conceitos como percepção, representação mental, etc. Não nos interessa aqui, contudo, mostrar as origens históricas da teoria freudiana, ou suas semelhanças e diferenças com esses autores da tradição à qual

base nos conhecimentos obtidos com as patologias desse mesmo “aparelho”124. O que nos interessa aqui é entender não os problemas de linguagem propriamente, mas a concepção de representação mental que é subentendida e que será preservada em texto futuros.

De acordo com Freud a linguagem possui como unidade básica a palavra. Ela é um complexo de representações vinculado a outro complexo de representações. O primeiro complexo é chamado por Freud de representação verbal (Wortvorstellung). Uma representação verbal é, por sua vez, um conjunto (complexo) de representações parciais – a imagem sonora, a imagem visual da letra, a imagem motora da linguagem, a imagem motora da escritura – associadas entre si125.

Esse complexo de representações verbais parciais que formam uma palavra se associa a um outro complexo de representações, sendo que é essa última associação que confere às palavras seus significados126. Esse segundo complexo de associações é chamado por Freud, nesse texto de 1891, de representação intuitiva ou “objetal” (Objektvorstellung127). Da mesma forma que as representações verbais, também essas são, por sua vez, “um complexo associativo constituído de representações as mais heterogêneas: visuais, acústicas, táteis, cinestésicas e outras” (idem, p. 127).

Essas representações parciais de objeto são constituídas a partir de impressões sensoriais e, com base nelas, formamos uma cadeia associativa que pode ser ampliada (ou revista), sendo que com base nessa possibilidade, surge a idéia de uma “coisa”. Sobre isso Freud diz :

Da filosofia nós retiramos que a representação de objeto não contém nada além e que a aparência de uma “coisa”, das quais as diferentes “propriedades” são reveladas por suas impressões sensoriais, se realiza unicamente porque ao fazer um recenseamento das

ele se vincula, mas tão somente expor a maneira de conceber esses conceitos presente, de maneira mais ou menos explícita, nos textos freudianos.

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Cf. Freud 1891, p. 122.

125

Cf. Freud 1891, p. 123.

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Note-se que Freud não faz nenhuma diferença entre sentido e referência, adotando uma concepção referencialista da linguagem, segundo a qual o significado de uma palavra é o seu referente (a coisa a que a palavra se refere), aquilo a que a palavra está associada. Freud, apesar da “talking cure” não tem uma teoria do sentido propriamente, que seria desenvolvida na filosofia do século XX pelas duas principais tradições filosóficas: a continental – fenomenológica (Husserl) e hermenêutica (Dilthey) – e a inglesa – analítica (Frege, Russell, Wittgenstein, etc).

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Encontra-se em outros textos termos análogos: Sachvorstellung ou Dingvorstellung, por exemplo, em seu artigo metapsicológico de 1915, O Inconsciente.

impressões sensoriais que nós recebemos de um objeto, nós acrescentamos ainda a possibilidade de uma série importante de impressões novas na mesma cadeia associativa. (J.S.Mill). (Freud 1891, p. 127).

Nessa última citação vê-se explicitamente que Freud adota o ponto de vista moderno e empirista, de Stuart Mill, segundo o qual o objeto externo (e o mundo como conjunto dos objetos externos) percebido seria apenas um conjunto de representações mentais, oriundas de impressões sensoriais, vinculadas subjetivamente (por associação). A representação mental de um objeto seria, portanto, o complexo associativo dessas representações parciais, que dão as “propriedades” do objeto e, esse último, seria concebido como um conjunto subjetivamente vinculado (por associação mental) de propriedades representadas na mente. Agora, essas propriedades são dadas por impressões sensoriais que, como veremos mais adiante (capítulo 2.4.1), são resultantes da incidência causal de estímulos físicos. Ou seja, Freud, assim como outros de sua época, pretende vincular a concepção empirista de experiência (que concebe o ter experiência de um objeto como o representar mentalmente uma série de propriedades, ou melhor, como ter representações mentais vinculadas subjetivamente) às descobertas da fisiologia reducionista da segunda metade do século XIX, naturalizando, desse modo, a sua concepção do conceito de representação mental e de experiência128.

O resultado disso é que as representações mentais são concebidas como uma conseqüência da incidência de excitações sensoriais no sistema perceptivo do aparelho psíquico, que são “armazenadas” no sistema mnemônico desse mesmo aparelho e que podem ser concebidas como “cópias” (mais ou menos confiáveis) no psiquismo de uma realidade externa. Essas “cópias” (as idéias ou representações mentais) não possuem, a não ser em ocasiões especiais (sonhos, alucinações, e outros fenômenos semelhantes) a característica qualitativa, a vivacidade e o “colorido”, que as impressões sensoriais possuem129.

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Abordaremos mais detalhadamente esse último ponto à frente, quando examinarmos a concepção freudiana de aparelho psíquico (capítulo 2.4) e no último capítulo do presente trabalho quando expusermos a concepção freudiana de experiência (capítulo 5.1).

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Note-se a semelhança entre essa maneira de conceber uma representação mental e a maneira empirista de concebê-la. Sobre esta última, veja-se, por exemplo, o seguinte comentário de De Boer: “Esses psicologistas [Locke, Berkeley, Hume] viam a consciência como um receptáculo contendo “impressões” que são colhidas

Note-se que não há em Freud, e isto será fundamental quando formos abordar a crítica da fenomenologia à teoria freudiana da mente, que ele em momento algum estabelece a distinção entre o representar e o representado. Isto é, Freud não concebe a representação mental a partir do conceito de intencionalidade130.

Por outro lado, na concepção freudiana, essas representações mentais, que estão no sistema mnemônico, podem ou não ser conscientes, como no caso das representações mentais inconscientes, de modo que não são pura e simplesmente o objeto imediato da consciência. Voltaremos a abordar esse tema quando vermos a teoria freudiana do aparelho psíquico (capítulo 2.4).

Desse modo pode-se dizer que uma representação mental de um objeto, para Freud, é: um ente real (efetivo) que existe no sistema mnemônico do aparelho psíquico; que tem sua origem em uma impressão sensorial causada fisiologicamente por um estímulo externo; que é, na realidade, um complexo de representações parciais (verbais e objetais); que pode ser substituído pelo termo imago mental, não sendo, portanto, um ato psíquico, no sentido de Brentano e Husserl, mas o conteúdo representado131, no sentido de uma imagem mental; e que não necessariamente é objeto da consciência, ou, como diz Freud, está “na” consciência, um vez que existe independentemente dessa última132. Uma representação mental, assim concebida, é independente não apenas da consciência, mas também de outras representações mentais, de afetos, de juízos ou qualquer outro fenômeno psíquico, ou

através da percepção sensível. No curso do tempo, essas impressões desaparecem e surgem as “idéias”. Essas impressões e suas sombras formam o único material a partir do qual a consciência é feita.” (De Boer, p. 157).

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E isso apesar de Freud ter estudado em Viena, por aluns anos, com Brentano que, como veremos quando abordarmos o conceito de experiência em Husserl (capítulo 5.2), foi quem retomou modernamente o conceito escolástico de intencionalidade e o desenvolveu com vistas à elaboração de uma psicologia como ciência

“empírica”.

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Aqui se coloca o claro distanciamento de Freud em relação a Brentano e à escola fenomenológica que se lhe seguiu, na medida em que Brentano, em seu projeto de fundamentação da psicologia como uma ciência autônoma e empírica, definia o objeto da psicologia como sendo os fenômenos psíquicos (em contraposição

aos fenômenos físicos) e os definia como possuindo uma característica fundamental: contém em si algo como objeto, aquilo que posteriormente Husserl irá chamar de intencionalidade.

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Nesse sentido Freud concebe a representação mental (inconsciente) como uma entidade física, real, cuja existência independe da consciência. Ou seja, o conceito freudiano de representação mental (inconsciente), visto à luz da filosofia de Brentano, não é nem um ato de representar, nem um objeto intencional representado (no ato), mas uma coisa real, que tem uma existência independente do ato. Como tal, ela deve ser inferida, isto é, não é objeto de estudo da psicologia descritiva de Brentano ou da fenomenologia de Husserl.

mesmo do suposto objeto que ela “representa”, ou melhor, do qual ela é uma “cópia”, não mantendo com ele nenhuma relação interna133.

Com essa concepção de representação mental, o evento passado é transformado em uma coisa, semelhante a um organismo hospedeiro, dentro do psiquismo do paciente, que, como tal, age no psiquismo independentemente de ser dado para uma consciência.

Com a introdução desse conceito, concebido dessa forma, não se trata mais da relação entre um evento passado dotado de sentido, e um sintoma atual, igualmente dotado de sentido, como de resto tudo o que acontece na vida de uma pessoa, isto é, não se trata mais de relacionar dois acontecimentos que fazem parte de um mesmo todo (da história de uma pessoa), e que seria dotado de sentido, mas de pensar a relação entre duas representações mentais134 independentes uma da outra: a do evento traumático e a da parte do corpo da paciente que manifesta o sintoma. De acordo com Freud, a relação entre as representações ocorre através da associação entre representações mentais, e é a associação inconsciente entres essas representações que impede que a primeira realize outras associações, ficando isolada e fora do controle consciente. Essa é, em seu aspecto básico, a explicação freudiana para a conversão histérica. Veja-se quanto a isso o exemplo apresentado por Freud sobre a paralisia de um braço em um caso de histeria:

A representação [conception] do braço (...) não está acessível às associações e impulsos conscientes, porque toda sua afinidade associativa, por assim dizer, está impregnada de uma associação inconsciente (subconsciente) com a lembrança do evento, do trauma, que produziu a paralisia.(Freud 1893a, 53-4)

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Veremos, quando abordarmos a concepção de “experiência” em Freud (capítulo 5.1) qual a maneira como é pensada, então, a relação entre representação mental e objeto, isto é, em que consiste ter uma experiência.

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Com essa concepção, implícita, de memória como “arquivo” de representações, não se pode compreender como se tem a experiência da recordação de algo como passado. Toda recordação ficaria restrita a uma pura presentificação, isto é, à presença de algo que um dia foi presente, mas não sua presença como algo passado. Para tratar do tema da recordação de algo como passado, seria necessária a concepção da “temporalidade da consciência”. Concepção essa desconhecida de Freud e fundamental para as descrições fenomenológicas da consciência. Por outro lado, é interessante notar que Freud não precisava desenvolver propriamente o tema da recordação (de algo como passado), mas simplesmente a presentificação (de algo passado como presente), na medida em que é dessa forma que as recordações “traumáticas” aparecem na consciência do neurótico. Isto é, o neurótico é justamente aquele que, em seus sintomas, ou na transferência, sofrem de reminiscências, isto é, sofrem hoje por eventos passados que são vividos como atuais. De onde a conhecida fórmula freudiana de que o inconsciente é atemporal. Naturalmente isso não é motivo para não se tentar utilizar com proveito para a

Justamente na medida em que Freud pensa os acontecimentos passados significativos em termos de fatos externos independentes “trazidos para dentro do psiquismo” e registrados em representações mentais igualmente independentes, ele não tem como pensar a relação entre essas representações senão através do conceito de associação de idéias135. Essas associações formam vínculos externos entre as representações independentes. Vínculos externos significam vínculos que não alteram a natureza das partes vinculadas (que são independentes).

Essa transformação do evento passado e do sintoma em representações mentais presentes (na memória), vinculadas por associação, se encaixa facilmente com a descoberta de que o sintoma histérico mantém apenas uma relação simbólica com o evento traumático passado. Desse modo, a relação simbólica é concebida em termos da associação de idéias.

Mas Freud necessita ainda de uma idéia auxiliar adicional para se adequar à evidência clínica de que é o afeto (e não a representação) o elemento determinante do quadro histérico.