• Nenhum resultado encontrado

HISTÓRIA E DESENVOLVIMENTO

I- A crise no modelo biomédico e a homeopatia

O surgimento de novos paradigmas em medicina está relacionado a situações e condicionamentos complexos de natureza socioeconômica, cultural e epidemiológica. De acordo com Luz (1997), diversos acontecimentos, dentre eles o crescimento das desigualdades sociais, o aumento das doenças infecciosas, especialmente as sexualmente transmissíveis e as crônicas não transmissíveis, poderiam ter como consequência uma “crise na saúde”. Assim, a crise da biomedicina está associada à crise na saúde, mas de maneira um tanto diversa, relacionando-se muito mais aos planos ético, político, pedagógico e social do que à produção do conhecimento.

A crise na saúde no Brasil teve início na década 1970, marcada pela situação econômico-financeira vigente e pelo término do milagre econômico. Nessa época, têm início, de forma progressiva, questionamentos sobre a política social do governo e os efeitos na saúde do modelo econômico, que levava à política discriminatória e de desigualdades no acesso qualitativo e quantitativo aos serviços. O modelo médico hegemônico vigente no país era assistencial-privatista e, diante desse cenário, alicerçou-se política e ideologicamente o movimento da Reforma Sanitária (Almeida et al, 2001).

Ao analisar o modelo assistencial biomédico, identifica-se que a crise na saúde se relaciona às limitações do paradigma da biomedicina, e a tecnologia médica materializada nos instrumentais diagnósticos e cirúrgicos leva não só à alienação do doente diante de seu próprio corpo, como à fetichização do equipamento médico. No século XX, viu-se a tripla cisão na medicina contemporânea: a cisão entre a ciência das doenças e a arte de curar (epistemé); a cisão na prática médica do combate às doenças (práxis) entre diagnose e terapêutica; a cisão do agir clínico (tekné) da unidade relacional terapêutica

médico-paciente, pela interposição de tecnologias “frias” (Luz, 1993; Ibáñez e Marsiglia, 2000; Machado, 1997).

Como consequência, a medicina com toda a inovação tecnológica e seu modelo empresarial perde a humanização, resultando em atuação mais ligada a estabelecer tratamentos que a realizar cuidados propriamente ditos. A instituição privada atende de acordo com a oferta e a demanda de serviços, numa ligação vital com a produção. Ela se organiza conforme o modelo lucrativo que prevê a racionalização das ações médicas ao mesmo tempo em que pressiona os médicos para o atendimento da demanda. A instituição pública, no entanto, tem a atenção centrada em ações prioritárias organizadas de acordo com os riscos, a demanda e a oferta de serviços, com consultas e exames insuficientes.

O poder hegemônico das indústrias farmacêuticas, das empresas de tecnologia diagnósticas e do corporativismo médico convencional leva à correlação de forças que se alteram historicamente frente às respostas do setor socialmente subordinado. Na tríade indivíduo, médico e instituição existem diferenças conceituais, sociais e culturais, influenciando, de maneira decisiva, na relação demanda-oferta e nas necessidades de saúde, as quais não são satisfeitas pelos serviços e não correspondem à necessidade da população, mas sim da instituição. A hegemonia leva ao prejuízo da Saúde Coletiva e colabora para o desenvolvimento de uma crise, que representa crise sanitária e médica e envolve culturalmente as relações entre a medicina, a sociedade e as instituições (Luz, 1986; Luz e Pinheiro, 2007).

Da insatisfação com o modelo médico dominante, marcado pelas terapêuticas invasivas e iatrogênicas, no período de 1970 a 1990, desenvolveu-se o interesse crescente pelas demais racionalidades médicas. Tal fato se deu, pois, enquanto a medicina científica opera buscando os fatores causais e os contra fatores para a anulação dessas causas, cresce a medicina alternativa e complementar com prioridade sobre as doenças crônico- degenerativas, a fim de garantir o cuidado e a sobrevida com maior qualidade (Schraiber, 2001; Barros, 2000).

Na década de 1980, conforme destacado por Almeida et al. (2001), o país enfrentou grave crise econômica, houve movimentações em torno da política social e da saúde, ao mesmo tempo que ocorreu o processo de redemocratização. A sociedade civil organizada ansiava pelo direito de cidadania. Desse movimento, resultou a VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), em 1986, considerada um dos eventos político-sanitários mais importantes da história da saúde pública brasileira, pelo seu caráter democrático. Nessa época, também foram realizadas as Conferências Municipais e as Estaduais de Saúde, que levaram todos os níveis da sociedade a debaterem sobre a saúde, com o objetivo comum de democratização e estabelecimento das metas para alcançar a “Saúde para todos no ano 2000”, como estabelecido na Conferência de Alma - Ata, em 1978.

A constituição do Projeto de Reforma Sanitária do país foi o principal resultado da VIII CNS, por apregoar o conceito abrangente de saúde. Em 1988, foi publicada a Constituição Federal, que traz avanços nas questões sociais e, particularmente, na saúde, com a criação do Sistema Único da Saúde (SUS) orientado pela política de “Saúde como direito de todos e dever do Estado”.

De acordo com o texto constitucional, ao Estado cabe a tarefa de garantir a saúde para todos, por meio de políticas sociais e econômicas voltadas tanto para a “redução do risco de doenças e outros agravos”, quanto para o “acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Brasil, 1988).

O cenário, no entanto, que se desenha na construção da gestão do SUS requer novos padrões de relacionamento entre serviços de saúde, profissionais de saúde e usuários. Isso ocorre, sobretudo, porque ocorre aumento da demanda por atenção médica decorrente de problemas de saúde abrangentes que incluem os aspectos psicossociais, o desequilíbrio de demanda-oferta de serviços públicos de saúde e a baixa resolubilidade do modelo biomédico.

Assim, os princípios de universalidade, integralidade e equidade norteadores do Sistema Único de Saúde (SUS) pressupõem considerar-se: direito de atenção à saúde com acesso universal; escolha do tipo de terapêutica preferida pelo usuário dos serviços;

atendimento integral, desde a prevenção até o mais complexo tratamento ou agravo e de acordo com a necessidade de cada indivíduo.

A situação política do final da década de 1980, juntamente com a crise fiscal, a institucional e a política do governo marcaram o contexto histórico da construção do SUS e trazem à compreensão as dificuldades de se alcançar pleno êxito, mesmo que o Sistema esteja previsto na Constituição Federal.

Frente a essa realidade, o oferecimento de especialidades médicas alternativas ou complementares é importante. Elas mostram possibilidades terapêuticas contrárias ao modelo assistencial desenvolvido, sob a lógica da clínica centrada no biológico e assentada no ato prescritivo e nos procedimentos que utilizam máquinas, instrumentos e medicamentos, como principais recursos diagnósticos e terapêuticos. Isso colaborou para a busca da homeopatia primeiramente por estudantes de medicina, posteriormente por pesquisadores e políticos progressistas impregnados pela visão da homeopatia como

contracultura. Foi no final da década de 1970, que se iniciaram os Encontros Nacionais de

Estudantes Interessados em Homeopatia, os quais tiveram papel de destaque para o crescimento da homeopatia no Brasil.

A homeopatia foi introduzida no Brasil pelo médico francês Benoit-Jules Mure, em 1840. Ele era socialista utópico e veio, inicialmente, introduzir uma sociedade cooperativa ligada ao socialismo, na região de Santa Catarina. Há, entre muitos, dois aspectos a serem destacados no tratamento homeopático: o primeiro está relacionado com o tratamento integral, com o alcance mais largo que o da medicina científica e o segundo, com a dimensão interacional.

A homeopatia foi criada no século XIX, na contracorrente da tendência dominante do pensamento médico daquela época, e afirmou a supremacia da “arte de curar” sobre a teoria das doenças. Ela propugnou a ciência da terapêutica, isto é, da clínica (arte de curar) “verdadeiramente experimental”. O projeto da medicina homeopática de estabelecimento da ciência terapêutica foi cientificamente marginalizado, num contexto de valorização progressiva da diagnose como elemento fundamental da ciência das doenças.

Os médicos tendiam a tornar-se homens da ciência e não mais artesãos da cura (Luz, 1993).

Ao definir a saúde como equilíbrio do princípio ou força vital, Luz (1993) considera que a homeopatia trabalha com a concepção positiva de saúde e tem sua abordagem voltada para estimular a autonomia dos sujeitos. Para Hahnemann (1984), quando qualquer agente hostil à vida, externo ou interno, atinge o indivíduo, tal princípio de harmonia é influenciado pelo dinamismo do agente hostil e é nesse caso que a energia vital se altera, mudando seu ponto de equilíbrio, produzindo no organismo sensações desagradáveis e processos de adoecimento. Assim, para o homeopata, restabelecer a saúde é restabelecer a harmonia no dinamismo da vida.

De acordo com as conclusões do 1º Fórum Nacional de Homeopatia, ocorrido em 2004, a homeopatia fortalece os princípios do SUS, pois, alicerçada no controle social visa consolidar, como parâmetro de qualidade de sua prática: a integralidade – compreendendo o sujeito enquanto unidade indivisível, que não deve ser submetido a limitações de recortes patológicos; a equidade – dimensionando a atenção às necessidades de saúde da população, respeitando as diferenças individuais; a universalidade – na garantia democrática do acesso a essa racionalidade, enquanto direito de exercício de cidadania (Comissão de Saúde Pública, 2004).

No exercício da clínica homeopática, estimula-se a fala, usa-se da escuta para o diagnóstico, o que contribui para a humanização e o aumento da resolubilidade na rede de atenção à saúde. Segundo Rosenbaum (2000), a homeopatia é considerada medicina do sujeito, e esse é construído em função de seu processo histórico, unidade e força vital que o anima. Acrescenta Rosenbaum que:

O sujeito é para Hahnemann retrospectivo e prospectivo. Retrospectivo porque a cada uma das vivências pelas quais passou configura e delimita sensibilidades e susceptibilidades especiais, dignas de ser usadas de duas formas: enquanto categoria medicamentosa para escrutinar semiologicamente os sintomas e enquanto instrumento propedêutico para fazer, quando for necessário, uma pedagogia, ou seja, interferir nos hábitos que, de

alguma forma, podem produzir danos clínicos para o paciente. Prospectivo porque tais vivências serão usadas também para saber das ‘potências prospectivas’ dos sujeitos, de suas aspirações, de sua imaginação, enfim de seu estar no mundo ‘poeticamente’, criativamente. (Rosenbaum, 2000, p.126)

Por ser uma medicina do sujeito, a relação médico-paciente é um dos determinantes da resolução dos problemas de saúde e parte da sua eficácia médica resulta da satisfação dos pacientes, durante o processo do tratamento. Essa satisfação não se limita ao aspecto técnico científico da medicina, mas inclui também a qualidade dos vínculos entre médicos e usuários, a comunicação interpessoal e o modo como se estabelecem essas relações (Luz, 1997).

Quando o indivíduo relata sua doença, deixa de lado os fatores causais concretos e valoriza os fatores situacionais, que não são explicados cientificamente. Por isso a homeopatia constrói um olhar para o sujeito por inteiro e resgata, assim, o sujeito e a sua singularidade. A integralidade da prática clínica defende o resgate do sujeito, independentemente da linha terapêutica que cada médico ou agente da saúde adota (Luz e Rosenbaum, 2006).

Em outras palavras, a homeopatia está baseada na valorização do indivíduo enquanto totalidade e não somente em sintomas e doenças específicas, centrando-se na terapêutica e não na diagnose e usando a narrativa do paciente como instrumento fundamental da consulta. Tal contexto, segundo Lacerda e Valla (2007), torna a relação médico-paciente importante e valorizada como recurso terapêutico que ajuda a compreender a singularidade do sujeito doente e a curar ou aliviar o sofrimento. Estabelecem-se, dessa forma, vínculos interpessoais de confiança entre profissional e paciente. Por esse motivo, a homeopatia é uma opção terapêutica que contribui para a humanização dos serviços de saúde, orientando as práticas de integralidade da atenção no cuidado e na promoção da saúde.