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Capítulo 2. Silhuetas do absoluto: Teologia negativa e Sem-objeto

2.3. A cultura popular na obra de K Maliévitch

Os chamados artistas futuristas/esquerdistas foram grandes entusiastas da Revolução, colaborando com o novo governo na criação de museus, institutos de ensino e pesquisa e na decoração de festas, prédios, trens e praças públicas. Maliévitch, enquanto um destes entusiastas, compartilhava dos ideais de transformação artística e social que ganharam força nos primeiros anos após a Revolução, mas que sempre estiveram em pauta e na prática dos grupos futuristas russos.

A atuação de Maliévitch como integrante do movimento futurista é emblemática, pois o Suprematismo é até mesmo impensável sem que sejam levadas em consideração suas pesquisas pictóricas futuristas e alogistas. Contudo, a complexidade de sua trajetória artística marcada pelas múltiplas experiências em contato com as vanguardas europeia e russa torna possível em seu trabalho a coexistência, por vezes antagônica, de temáticas revolucionárias e outras, que poderiam ser pensadas a partir de interesses presentes em correntes tradicionalistas, como a eslavofilia.

A visão de uma vida camponesa, simples e bucólica em suas tarefas cotidianas e na integração do homem com a natureza esteve durante o século XIX e início do XX fortemente arraigada no imaginário dos poetas, desde Tolstói a Dostoiévski, quanto em artistas da vanguarda russa, como Khlébnikov, Kamiênski e Sierguéi Iessiênin.

Vemos o elogio ao homem e a vida simples em seus gestos e tradições retratadas em TolstóL ³$SUR[LPDYD-me dos crentes entre os homens pobres, simples, ignorantes, os peregrinos, os monges, os raskolniksRVFDPSRQHVHV´102

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Em dois textos publicados no ano de 1879 (Púchkin, Lermontov e Nekrassov, e Testemunho a favor de Nekrassov) Dostoiévski seria ainda mais enfático ao ressaltar que a grandeza da poesia russa residiria no vínculo de seus poetas com a riqueza da tradição popular:

Púchkin não amava somente o povo pelos seus sofrimentos. A piedade pode andar de mãos dadas com o desprezo. Púchkin amou tudo quanto o povo amava e venerou tudo quanto o povo venerava. Amou apaixonadamente o campo, a natureza russa. Enganam-se os que consideram Púchkin rebaixado pela afeição ao povo. Nele encontrou figuras magníficas, escreveu a respeito do que há de mais profundo, e tudo isso permanece inteligível para o povo. O gênio russo, a verdadeira força de imaginação russa acha-se por toda a parte na obra de Púchkin. Se tivesse vivido mais ter-nos-ia deixado tais tesouros artísticos, colhidos no povo, que a nossa sociedade, tão orgulhosa de sua cultura europeia, teria há muito renunciado ao que nos vem do estrangeiro para se embeber na alma popular russa.103

Se nada achou na vida mais digno de amor do que o povo, foi porque [Nekrassov] havia compreendido que a verdade está no povo, e nele se conserva. Se não agia então por completo conscientemente, se as suas opiniões habituais não lhe refletiam os sentimentos, pelo menos tais sentimentos lhe estavam no coração. No mujique viciado, cuja imagem humilhada e humilhante o atormentava, via algo de verdadeiro e de santo que não podia deixar de admirar, que não podia deixar de compreender de todo o coração. Por isso coloquei-o entre os que reconheceram a verdade popular.104

A formação da ideia populista e de uma consciência nacional especificamente russa no século XIX foi construída em torno da vida popular e da figura do homem do campo. Esta idealização da figura camponesa foi amplamente difundida entre os eslavófilos e populistas.

103 DOSTOIÉVSKI, F. M., Diário de um escritor, São Paulo: Edimax, 1974, p. 177. 104 Ibid., pp. 185, 186.

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Dentro da eslavofilia, o povo encarnado na figura do mujique é representado pelo homem simples, rústico, distante da nobreza ou da intelligentsia, mas a idealização de sua imagem vem da ideia de que o homem simples estaria muito mais próximo dos mistérios da fé e da verdade religiosa.

Esse apelo a uma espécie de inocência que foi retomada pelos intelectuais no século XIX se remete a um conceito que também existia na Igreja grega, mas que se apresentava como um fenômeno muito mais arraigado e essencial na vida da Igreja russa: o yurodivyi RX ³sLPSOHV GH HVStULWR´ ³LQRFHQWH´ R WHUPR

Imagem  17:  K.  Maliévitch.  Camponesa  com  baldes  e  criança,  1912.  Óleo  sobre  tela,  73  x  73  cm.   Stedelijk  Museum.  Amsterdã.  

Imagem   18:   K.   Maliévitch.   Camponesa   com   baldes,   1912.   Óleo   sobre   tela,   80,3   x   80,3   cm.   MoMA.  Nova  Iorque.    

Fonte:  Fonte:  ͛EZ,  Jeanne  (ed.),  Malevich,  1878-­‐1935.  The  Armand  Hammer  Museum  of   Art  and  Cultural  Center,  Los  Angeles,  California,  1990,  pp.  49,54.  

Imagem  19:  Tipos  da  Pequena  Rússia.  No.3.  Mulher  com  trajes  ucranianos.  Fotografia.  Séc.  XIX.   Imagem  20:  Camponesa  ucraniana  carregando  baldes.  Fotografia.  Séc.  XIX.  

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aparece traduzido também FRPR³PHQGLJRDOLHQDGR´³SURIHWD´³ORXFRHP&ULVWR´ RXPHVPR³ERERGH'HXV´ 

Conforme Fédotov, em /HV6DLQWVGHO¶DQFLHQQH5XVVLH (Paris, 1931)105 RV³VLPSOHVGHHVStULWR´QmRSRGLDPVHUFRQVLGHUDGRVH[DWDPHQWHFRPRKRPHQV que alcançaram a santidade mas, antes de tudo, como pessoas simples que escolheram viver longe da razão dos homens e próximo da ³loucura´ de Deus, imersos em um profundo sentimento religioso, sacrificando a existência terrestre e exterior por uma verdade celeste e interior.

Essa inocência era manifestada através da adoção de modos de vida nos quais todos os confortos e prazeres terrestres, materiais e individualistas, todas as formas de tentação do mundo, eram sacrificados em nome de uma verdade espiritual.

105 FEDOTOV apud ZEKOVSKY, B., op.cit., p. 39.

Imagem   22:   K.   Maliévitch.   Duas   figuras   masculinas.   Início   dos   anos   1930.   Óleo   sobre   tela,   99   x   79,5   cm.   Museu   Russo,   São   Petersburgo.  

Imagem   21:   K.  

Maliévitch   em   Kursk,  

cerca   de   1900.  

Fotografia.    

Fonte:  PETROVA,  Yevgenia  (edit.)  Kazimir  Malevich  in  State  Russian  Museum,  São  Petersburgo:   Palace  Editions,  2000,  pp.  432,  171,  440.

Imagem  23:  K.  Maliévitch  em  

Nemchinovka,   1931.  

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Assim, voltar-se para o povo simples, aos crentes, representava o mesmo que se voltar para a Igreja em suas tradições seculares. Nisto residiria a forma mais autêntica da fé cristã e a verdade absoluta da religião. Este modo de vida religiosa desembocou no modelo moral para uma geração de intelectuais russos do século XIX, e que, em certo sentido, continuou existindo durante o início do século XX.

Em Maliévitch, ainda que não haja uma identificação absoluta com o populismo religioso presente em Tolstói e Dostoiévski, a idealização da vida no campo parece tomar forma como contraponto à cultura e à erudição europeias em seus moldes mais tradicionais.

Maliévitch assume isto na redação de sua autobiografia de 1933 ao afirmar: ³Decidi que jamais viveria nem trabalharia em uma fábrica. E jamais estudaria. Pensava que os camponeses viviam bem, que eles tinham tudo e que de nenhuma maneira tinham a necessidade de trabalhar na fábrica ou de saber ler e escrever.´106

Uma comparação bastante verossímil pode ser feita com os escritos de Pável Floriênski, que ao descrever em suas memórias sobre as angústias e os descompassos existenciais em seus primeiros anos de atividade acadêmica, e posteriormente, de docência, afirmava:

Era uma oscilação extenuante entre o saber que existe, mas não serve, e o saber necessário, que não existe.

Dão-me náuseuas a cultura e a sofisticação. Desejo a simplicidade.107

106 MALÉVITCH, K., Enfance et Adolescence ± Chapitres dH O¶$XWRELRJUDSKLH GH O¶DUWLVWH >WUDG

franc.], op. cit., p. 156.

107 FLORENSKI apud Víctor Gallego. In: FLORENSKI, Pável, Cartas de la prisión y de los campos,

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No texto inacabado de trinta e duas páginas datilografadas que foi recebido pelo historiador Nikolai Khardjiev das mãos de Maliévitch pouco tempo depois que o pintor já apresentava sinais do câncer, o artista oferece um relato simbólico sobre sua infância e adolescência e as primeiras experiências que definiriam sua atividade artística.

Os dois textos autobiográficos existentes, registros fotográficos da juventude e dos anos finais de Maliévitch e a insistência na temática dos camponeses em seus afazeres da vida rural em telas e desenhos de todas as fases de sua obra, evidenciam o interesse e identificação do artista com a cultura popular e com a imagem do camponês.

Maliévitch inicia o texto contando sobre sua infância em Parkhomovka, distante tanto das grandes quanto das pequenas províncias, onde seu pai trabalhava provavelmente na função de contramestre em uma refinaria de açúcar de beterraba.

Dessa primeira infância, Maliévitch constrói um relato idealizado da vida no campo, que seria fonte de inspiração durante sua trajetória como pintor e que exerceu influência sobre a estética do Suprematismo e do Pós-suprematismo.

Na autobiografia, sua observação se concentra nas vestimentas coloridas e nos gestos dos camponeses, contrapostos aos modos grosseiros e às vestes cinzentas dos operários, os quais arriscavam sua saúde junto às máquinas, fato que poderia lhes render mutilações. Assim, a máquina é vista como algo perigoso e desconectado da natureza, que determina as maneiras e concepções de mundo dos homens.

No texto, Maliévitch afirma também que, desde muito cedo, preferiu estabelecer amizade com as crianças camponesas ao invés de se relacionar com os filhos de trabalhadores da refinaria, pois segundo ele, estes viviam livres e em comunhão com a natureza e com os animais.

6mR1LORSULPHLUD PHWDGHGRVpFXOR;,;

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A comparação entre o sentido da vida camponesa e operária é colocada em oposição a todo o momento: ³Eu pensava: meu pai é obrigado a se levantar à noite quando todos dormem e ir trabalhar, ou de ir dormir quando todos vivem e respiram o ar dos campos, das florestas, [...] dos jardins.´108 Maliévitch aponta ainda a diferença entre a comida fresca dos camponeses em comparação ao alimento consumido pelos habitantes da cidade, afirma que o mel poderia muito bem substituir todo o açúcar produzido na refinaria de seu pai e neste sentido, considerava até mesmo inútil o trabalho despendido, pois um simples camponês já seria capaz de cuidar de uma centena de abelhas, que produziriam algo de sabor muito superior ao açúcar fabricado pelo homem.

108 MALÉVITCH, K., op.cit., p. 153.

Imagem   25:   K.   Maliévitch.   Coveiro   -­‐   Figurino   da   ópera   Vitória  Sobre  o  Sol,  1913.  Museu   do  Teatro.  São  Petersburgo.    

Imagem   26:   Traje   feminino   do  leste  da  Ucrânia,  início  do   século  XX.  

Imagem   24:   Vestido   tradicional   de   noiva   do   leste   da   Ucrânia,   início   do  século  XX.  

Fonte:   WOLYNETZ,   Lubow  K.  (cur.)   The  Tree  of  Life,  The  Sun,  The  Goddess   -­‐   Symbolic  Motifs  in   Ukrainian  Folk  Art.  The  Ukrainian  Museum  -­‐  New  York,  Rochester,  New  York:  Babiuk  Enterprises,   2005,  pp.  73,  74  e  ͛EZ͕:ĞĂŶŶĞ ;ĞĚŝƚ͘Ϳ͕ Malevich-­‐1878-­‐1935,  Los  Angeles,  California:  The   Armand  Hammer  Museum  or  Art,  1990,  p.  135.  

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Imagem  28:  K.  Maliévitch,  Realismo   Pictórico   de   uma   Camponesa   em  

Duas   Dimensões   (Quadrado  

Vermelho),   1915.   Óleo   sobre   tela,   53x53cm.   Museu   Russo,   São   Petersburgo.  

Imagem  30:  Pissanki   (ovos  de  páscoa  

ucranianos)  com  motivos   do  sol.  

Imagem   31:   Ruchniki   (vestimenta   cerimonial  

ucraniana   tecida),  

nordeste   ucraniano,   anos   1930.   261,6   x   38   cm   (esquerda),   238,7   x   33   cm   (direita).      

Fontes:   ͛EZ͕ :ĞĂŶŶĞ ;ĞĚŝƚ͘Ϳ͕ Malevich-­‐1878-­‐1935,   Los   Angeles,   California:   The   Armand   Hammer  Museum  or  Art,  1990,  pp.  70,  74,  7  e  WOLYNETZ,  Lubow  K.  (cur.)  The  Tree  of  Life,  The   Sun,   The   Goddess-­‐   Symbolic   Motifs   in   Ukrainian   Folk   Art.   The   Ukrainian   Museum   -­‐   New   York,   Rochester,  New  York:  Babiuk  Enterprises,  2005,  pp.  144,  107.  

Imagem   27:   K.   Maliévitch.   Realismo   pictórico  de  um  moço   com   um   saco   nas   costas,   1915.   Óleo   sobre   tela,   71,1   x   44,4   cm.   MoMA,   Nova  Iorque.   Imagem   29:   K.   Maliévitch.   Suprematismo,  1915.  

Óleo   sobre   tela,   57.5   x   48.5   cm.   Stedelijk   Museum,   Amsterdã.  

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Maliévitch narra de maneira anedótica certa vez em que liderou as crianças camponesas em uma guerra contra os filhos dos trabalhadores da refinaria, pagando-os diariamente pelo serviço com torrões de açúcar. Descreve que suas habilidades em confeccionar os instrumentos de luta (arcos e flechas) os ajudaram a vencer tal combate e, até nisto, deixa transparecer sua certeza na superioridade dos camponeses em relação ao homem ligado à indústria e à vida urbana.

Em outra passagem, fala sobre a estética dos camponeses, que sua produção artesanal, suas roupas e objetos o agradavam fortemente e que tal dado teria sido a fonte primeira de sua simpatia pelos camponeses. Além disto, segundo o artista, os camponeses desenhavam e pintavam admiravelmente em todas as épocas da vida, em oposição aos trabalhadores industriais que o faziam muito mal e prematuramente abandonavam tal atividade, porque diferentemente dos camponeses, que cultivavam as práticas artísticas enquanto parte de suas tradições, dentro da fábrica e da vida urbana não haveria espaço para tal atividade.

Maliévitch relembra ainda dos grupos de mulheres, que juntas cantando, bordavam os vestidos tradicionais e as demais peças do enxoval das noivas camponesas. Relata que sua mãe realizava tais bordados e que durante parte de sua infância, ela o teria ensinado a bordar e fazer crochê.

Nesses bordados em motivos geométricos, estruturados em eixos diagonais do ponto cruz e coloridos essencialmente em vermelho e negro sobre tramas de tecido branco, parece bastante plausível apontar as origens de seu interesse pela pintura e por uma estética universal, que se comunicasse por meio de formas geométricas e cores puras, tal como desenvolvidas pelo Suprematismo. Mirolasva M. Mudrak, em um dos textos mais interessantes dedicados às ligações e influências da cultura ucraniana sobre o desenvolvimento da obra de Maliévitch reforça o argumento:

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As notas autobiográficas de Maliévitch deixam claro que a sua infância no campo ucraniano incutiram uma atração pelas artes decorativas nativas, particularmente pela intensidade da cor, embora contida, pela ornamentação nas fachadas caiadas das casas de aldeias [...]. Igualmente importante na formação da sensibilidade estética do artista estão os padrões geométricos dos tradicionais ovos de Páscoa [pisanki] e as singelas tapeçarias, os motivos angulares simples de bordados em ponto cruz sobre linho EUDQFR DVVLP FRPR DV VLOKXHWDV ³TXDGUDGDV´, tanto masculinas quanto femininas, constrastando com as roupas dos nativos. Em numerosas ocasiões Jean-Claude Marcadé usou um argumento convincente em relação a tal arte popular ucraniana como fonte de inspiração para a arte de Maliévitch. [...] A predileção de Maliévitch pelas geometrias básicas, cores primárias e a clareza primitiva dos fundos brancos planos não deve ser tomada como meramente impressionista ou anedótica.109

Em 1995, Charlotte Douglas publicou uma fotografia na qual aparece uma almofada com motivos suprematistas bordados e aplicações em tecido, que foi apresentada por Maliévitch na Segunda Exibição de Arte Decorativa Moderna, de Verbovka, ocorrida em dezembro de 1917.

Conforme relata Aleksandra Chatskikh em seu livro Black Square:

Malevich and the Origin of Suprematism (2012), no Catálogo da Exibição de Arte Moderna Decorativa: Bordados e Tapetes a partir de desenhos de artistas (1915)

constam os projetos de Maliévitch (n. 90-91: cachecol e n. 92 para uma almofada). O projeto feito por Maliévitch para a almofada é análogo à tela Suprematismo, 1915, que se encontra atualmente em Veneza, no Museu Peggy Guggenheim, e o projeto para o cachecol é semelhante à obra Construção Suprematista n.18, que se encontra no Museu Stedelijk, em Amsterdã.

A Primeira Exibição de Arte Decorativa Moderna de Verbovka ocorreu na Galeria Lemercier, em novembro de 1915 e contou com a participação de artistas como N. M. Davidova, A. A. Ekster e E. Vassilieva.

109 MUDRAK, Myroslava M., Malevich and His Ukrainian Contemporaries. In: DOUGLAS, Charlotte;

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Ekster, em particular, era uma das artistas que tinha ligação direta com a arte popular de Verbovka e a indústria regional de bordado. Ela fazia a ponte entre os artistas e os artesãos, que transformavam em motivos as produções da vanguarda.

Entretanto, como destaca Chatskikh, a primeira aparição do Suprematismo, em 06 de novembro de 1915, em uma exibição de Artes Decorativas atesta o fato de que o Suprematismo se relacionou com a produção de objetos utilitários não somente depois da produção de pinturas não-objetivas, entre os anos de 1915 e 1919, mas em paralelo ao seu nascimento.

O dado é relevante, pois confirma a crença precursora de Maliévitch na não distinção entre as chamadas artes menores e maiores, tal como foi enunciado por grande parte dos artistas russos durante os anos vinte. Em alguns sentidos, esses projetos aplicados em cerâmicas, bordados ou objetos utilitários dentro da cultura artística russa encontram suas origens no trabalho de grupos como o círculo artístico de Abramtsevo, que resgatava as tradições populares e nacionais.

A ligação entre a estética suprematista e pós-suprematista e os objetos artesanais provindos da cultura popular ucraniana também pode ser observada, como destaco a seguir, pela aproximação de imagens, na motanka: boneca ucraniana feita em tecido decorada com motivos geométricos ou estilizados. Embora existam pequenas variações nas diferentes regiões em que aparece, sua face nunca é representada de maneira figurativa, sendo completamente branca ou tendo em seu lugar uma cruz. Seus braços também costumam ser perperdiculares em relação ao corpo, configuração muito adotada por Maliévitch em suas telas pós-suprematistas.

No período pré-cristão as motankas eram feitas com feno, fitas, cordas e pedaços de tecido. Na face era proibida a representação dos olhos, nariz ou boca, que aparecem substituídos pelo símbolo do sol.

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Como discorre Liudmila Bulgakova-Sitnik no artigo Motiv sontsia v

ykrainskomu narodnomu mistetstvi (O motivo do sol na arte popular ucraniana)110, entre as ornamentações mais amplamente utilizadas na arte popular ucraniana estão as formas geomórficas que incluem o quadrado, o círculo e a cruz. Outros elementos frequentemente XWLOL]DGRV VmR D HVSLUDO PRWLYRV HP IRUPDWR GH ³V´ H linhas cruzadas, que juntas formam mais de cento e cinquenta padrões presentes nos ovos de Páscoa (pisanki), bordados, tecidos, relevos em argila, madeira, pedra e metal.

Padrões geométricos, enquanto formas primárias foram ao longo de gerações utilizados por diversos povos em todo o mundo e costumam ser interpretados em um contexto simbólico como uma tentativa de entendimento e conexão do homem com o mundo natural e com o universo.

110 In: WOLYNETZ, Lubow K. (cur.) The Tree of Life, The Sun, The Goddess- Symbolic Motifs in

Ukrainian Folk Art. The Ukrainian Museum - New York, Rochester, New York: Babiuk Enterprises, 2005, pp. 40-53.

Imagem  32:  Foto:  Motanka  e  senhora  ucraniana,  séc.  XX.  Fotografia.  

Fonte:  http://mari-­‐motanka.livejournal.com/7054.html  Acesso  em  25/02/2013.   Imagem  33:  Motanka  contemporânea.  Fotografia.    

Fonte:  http://motanka.kiev.ua/.  Acesso  em  25/02/2013.  

Imagem  34:  K.  Maliévitch.  Mulher  com  braços  abertos,  c.  1930,  grafite  sobre  papel,  22,5  x  15,7   cm.  

Imagem  35:  K.  Maliévitch.  Místico  (inscrição  de  Maliévitch  abaixo  do  desenho),  c.  1930,  grafite   sobre  papel,  22,5  x  17,3  cm.  

Fonte:  ANDERSEN,  T.,  K.  S.  Malevich:  The  Leporskaya  Archive,  Langelandsgade:  Arthus  University   Press,  2011,  pp.  199,  196.  

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Ainda de acordo com a pesquisadora, dentro da cultura popular ucraniana, esses motivos eram imbuídos de poderes mágicos e embora sua utilização em práticas rituais tenha se perdido ao longo dos séculos, os elementos geométricos mais utilizados (quadrado, círculo e cruz) compõem até hoje a base de toda a ornamentação tradicional eslava, mantendo seu simbolismo primordial. Na ornamentação ucraniana, assim como em outros povos eslavos, o quadrado ou losango (romb-kvadrat) é o motivo predominante.

Para os eslavos, o motivo do romb-kvadrat aparece associado à fertilidade, HQTXDQWR ³QD FULVWDQGDGH R TXDGUDGR p R VtPEROR Go mundo e da QDWXUH]D´111. Formas como as cruzes (e variações como a suástica e a cruz

formada por cinco quadrados - khrest klinovatii) estão ligadas ao simbolismo do sol ou ao culto do fogo e eram, provavelmente, empregadas na decoração de amuletos para proteção contra maus espíritos. Segundo Bulgakova-Sitnik, ³SDUD os Mongois, assim como para muitos outros povos, esse símbolo [suástica] expressa a ideia de movimento contínuo´112.

Maliévitch emprega exatamente a mesma descrição da cruz como uma imagem formada por cinco quadrados e fala também sobre a ideia de movimento a partir da rotação da cruz: o quadrado é a forma primordial, seu desenvolvimento no espaço, a partir de um quadrado central que se desloca nas quatro direções ortogonais dá origem à cruz e a rotação desta, gera o círculo, segundo Maliévitch. Isso constitui o tríptico suprematista descrito por Maliévitch para sua exposição na Bienal de Veneza, de 1924. No verso das telas, encontram-se as seguintes descrições feitas pelo artista que justificam tal sequência expositiva das obras: ³.0DOLpYLWFK4XDGUDGR11´³.0DOLpYLWFK1´H³1&tUFXOR´.

111 RZIHA, F., Studien uber Steinmets-Zeichen, Viena, 1883, p. 2 apud BULGAKOVA-SITNIK,

Liudmila, op.cit, p. 42.

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Representações semelhantes à motanka datam do final do período paleolítico e fazem parte das diversas representações da divindade feminina que simbolizam a fertilidade e a procriação. Na cultura popular ucraniana, a figura feminina é bastante recorrente, pois as mulheres têm papel fundamental nos rituais e celebrações cotidianas.

Como aponta Natalie Kononenko no artigo Postati Boguin v

ucrainskomu narodnomu mistetstvi113 (Figuras da deusa na arte popular

ucraniana), o poder da mulher dentro da mitologia ucraniana está diretamente associado à criação, não apenas no que diz respeito à maternidade, mas aos mais diversos objetos, roupas e alimentos que provém as necessidades materiais e