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Muitos pesquisadores já afirmaram seu estranhamento em relação aos termos e conceitos adotados por Maliévitch. Um caráter apontado como ³obscuro´,

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³misterioso´ e ³incompreensível´ e que se interpretado apenas dentro da sintaxe da arte moderna talvez possa mesmo parecer impenetrável.

3RUpPTXDQGRRDUWLVWDHVFUHYHH[SUHVV}HVFRPR³URPSLRVDQpLVGo KRUL]RQWH´RXTXHQHOH³FUHVFHXXPDQRYDUD]mR´ TXDQGRDILUPDTXH³DDUWHtem necessidade de YHUGDGHHQmRGHVLQFHULGDGH´ percebe-se um diálogo do artista com outros elementos da cultura e da filosofia.

Isso pode ser compreendido como uma apropriação de elementos do pensamento místico, no sentido de que a poética do sem-objeto busca fundar uma nova experiência de mundo através da tomada de consciência por um processo iconoclasta de libertação da representação figurativa e do desejo de elevar o conhecimento a um estágio superior à razão.

Não por acaso, o título da primeira exposição suprematista (e última futurista) é 0.10, sendo o Quadrado negro o marco ³zero da nova criação SLFWyULFD´que prenuncia o passo seguinte:

Mas eu me transfigurei no zero das formas e fui mais além do zero à criação, quer dizer, até o Suprematismo, até o novo realismo pictórico, até a criação não-figurativa.

O Suprematismo é o princípio de uma nova cultura: o selvagem como o macaco foi vencido.

Já não existem mais amores pelos lugarejos, já não há amor em nome do qual se modificava a Verdade da arte.

O quadrado não é uma forma subconsciente. É a criação da razão intuitiva.

O rosto da arte nova.

O quadrado é uma criança real cheia de vida.

É o primeiro passo da criação pura na arte. Antes dela existiam feiúras ingênuas e cópias da natureza.

Nosso mundo da arte tornou-se novo, não figurativo, puro.

Tudo desapareceu, restou a massa do material a partir do qual vamos construir a nova forma.

Na arte do Suprematismo, as formas vão viver igualmente a todas as formas vivas da natureza.

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Estas formas dizem que o homem chegou ao equilíbrio, partindo de um estado a uma razão para chegar ao estado com duas razões.

(A razão utilitária e a razão intuitiva.)76

A transfiguração apontada por Maliévitch é a transformação da consciência por meio da liberdade e por consequência, da existência, e nisto encontra-se o centro da discussão filosófica no Suprematismo:

Apenas pelo fato de que estão vivas [formas] e saíram da matéria, a qual foi dada um novo aspecto para uma nova vida.

Aqui é a Divindade que ordena aos cristais que tomem uma nova forma de existência.

Aqui está o milagre.

Também deve haver milagre na criação artística.77

Anna Leporskaia, uma das alunas de Maliévitch, afirmou que ao tomar consciência do quadrado preto pela primeira vez, o artista ³QmR FRQVHJXLX QHP comer, nem beber, nem dormir por uma semana inteira´. Em suas memórias, Ivan Kliun WDPEpP GHVFUHYH XP UHODWR EDVWDQWHSHFXOLDU GD ³UHYHODomR´ VXSUHPDWLVWD Ele conta que ao desenhar o Quadrado Preto, Maliévitch afirmou TXH³UHOkPSDJRV GHIRJR´cruzavam constantemente a tela diante de seus olhos.78

Embora Maliévitch fosse conhecido por seu temperamento enérgico, o que por si só já seria suficiente para dar uma tonalidade apaixonada ao escrito, é interessante que tal narrativa estabeleça semelhanças com os estados físicos relatados por religiosos místicos. No entanto, não haveria propósito em se fazer maiores especulações sobre tal experiência, que como sempre, estará limitada ao observador em sua transposição ao campo da linguagem.

76 MALEVITCH, K., Du cubisme et du futurisme au suprématisme. Le nouveau réalisme pictural

[trad.franc.], op.cit., p. 67.

77 MALEVITCH, K. S., op.cit., p. 62.

78 DOUGLAS, Charlotte, The Art of Pure Design: The Move to Abstraction in Russian and English

Art and Textiles: A Meditation. In: Russian Engages the West, Dekalb: Northern Illinois University Press, 2006, p. 98 apud SHATSKIKH, Aleksandra, 2012, p. 45.

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Fonte:  PETROVA,  Yevgenia  (edit.)  Kazimir  Malevich  in  State  Russian  Museum,  São  Petersburgo:   Palace  Editions,  2000,  p.167  e  179.  

Imagem  6:  K.  Maliévitch.  Cabeça  de  camponês,  1928-­‐1932.  Ost.  55  x  44.5  cm.  Museu  Russo.   Imagem  7:



K.   Maliévitch.   Duas   figuras   em   transformação   suprematista.  Ost,   60.5   x   72   cm.  c.   1928-­‐32.  Museu  Russo.    

 

Porém, as anedotas, assim como o fato de Maliévitch apontar o Suprematismo como ³místico´ e ³filosófico´ deixam transparecer ao menos dois fatores: em primeiro lugar, que a criação é um ato de revelação para Maliévitch, e o segundo, que o Suprematismo tem para o artista uma dimensão que se manifesta tanto no campo material quanto imaterial. Aliás, não é por acaso que um dos principais embates teóricos de Maliévitch tenha sido contra os artistas construtivistas e produtivistas, que desenvolveram sistemas artísticos centrados nos problemas técnicos, materiais e nos procedimentos artísticos.

Embora o termo místico/a seja muitas vezes empregado por Maliévitch em seus textos, a aproximação de sua produção ao pensamento místico ortodoxo é problemática, pois como aponta Jean-Claude Marcadé:

$SDODYUD³PtVWLFD´pHPSUHJDGDGHPDQHLUDWmRLUUDFLRQDOTXDQGR se trata da arte russa que se hesita em aplicá-la ao pensamento e à obra de Maliévitch. Não se trata, em todo caso, de uma religiosidade difusa e invertebrada ou de estados de alma teológicos. Mas se admitimos que a visão mística suprime os

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intermediários e transforma a percepção comum de nossos cinco sentidos em uma contemplação do mundo em sua existência total, podemos afirmar que o Suprematismo maliévitchiano é místico. 79

Na outra ponta, conforme descreve Pondé, a potencialização dos sentidos através da qual o místico estabelece contato com o divino é assim descrita pela tradição ortodoxa hesicasta:

A partir dessa experiência e do seu acúmulo, os grandes pais do Monte Athos são pessoas translúcidas, transfiguradas: o rosto e o olhar estão transformados e pela sua imagem percebemos que se trata de pessoas constantemente expostas à energia incriada.80

Essa seria uma boa descrição para algumas das telas da fase Pós- Suprematista de Maliévitch nas quais o artista estabelece um limiar entre a figuração e a não-figuração. Nelas seria possível delimitar contornos humanos, mas olhos acostumados às composições suprematistas também serão capazes de ver esquemas geométricos justapostos.

Conforme Maliévitch:

Na verdade, o que cada indivíduo sabe a respeito de si é muito SRXFRSRLV³DYHUGDGHLUDIDFHKXPDQD´QmRSRGHVHUUHFRQKHFLGD por detrás da já citada máscara, que é considerada, erroneamente, a ³YHUGDGHLUDIDFH´

A filosofia do suprematismo tem todas as razões para ver com FHWLFLVPRWDQWRDPiVFDUDTXDQWR³DYHUGDGHLUDIDFH´SRLVRTXH ela discute é a realidade da face humana (a realidade de uma forma humana).

Em suas representações, os artistas sempre tiveram uma predileção toda especial pela face humana, pois nela viam a melhor possibilidade de expressão para seus sentimentos (a mímica versátil, móvel, expressiva). Os suprematistas, ao contrário, deixaram de lado a representação da face humana (e da

79 MARCADÉ, J-C., Le Suprematismo est-il Mystique?. In: MALÉVITCH, K., La Lumière et la

Couleur/DXVDQQH/¶ÆJHG¶+RPPH pp. 13,14.

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objetividade naturalista) e encontraram novos traços para a reprodução direta das sensações (e não dos reflexos ³H[WHULRUL]DGRV´GRVVHQWLPHQWRV SRLVRVXSUHPDWLVWDQmRREVHUYD nem tateia, sente.81

O retorno à figuração na obra de Maliévitch, que por muitas décadas foi interpretado pejorativamente pela crítica europeia, foi um dos tópicos longamente discutidos desde que um conjunto de obras foi deixado pelo artista na Alemanha, sendo redescoberto pelo Ocidente em 1957, a partir de uma série de exposições ocorridas em importantes museus de Londres, Amsterdã, Berna, Braunschweig e Leverkusen.

A história dessa exposição começa no ano de 1927 quando Maliévitch consegue autorização para visitar o exterior graças à intervenção de Anatoli Vassiliévitch Lunatcharski (1875-1933). Lunatcharski, que certa vez se descreveu FRPR ³XP LQWHOHFWXDO HQWUH RV EROFKHYLTXHV H XP EROFKHYLTXH HQWUH RV LQWHOHFWXDLV´IRLXPDGDVILJXUDVFHQWUDLVQDYLGDSROtWLFR-cultural soviética durante os anos vinte. Sua posição é muitas vezes apontada como liberal por ter conseguido, no cargo de Chefe do Comissariado do Povo à Instrução, o

Narkompros (Narodnyi komissariat prosvechtcheniia), entre os anos de 1917 e

1929, mediar os interesses e ideologias do governo com as propostas inovadoras e utópicas dos artistas russos. Ele foi um dos responsáveis pelos programas de construção de novos monumentos e de propagandas em trens e navios. Defendia HP VHXV WH[WRV R QDVFLPHQWR GH XPD ³DUWH GH FLQFR NRSHFV´ RX VHMD EDUDWD H acessível a toda a população. Também foi o principal responsável pela concessão de auxílios financeiros, apoio na concretização de projetos e exposições e assinou permissões para viagens ao estrangeiro a diversos artistas e intelectuais russos durante o regime bolchevique. Durante o início do período de perseguições do regime stalinista, Lunatcharski, embora tenha sofrido com a diminuição de sua influência junto aos membros do partido, ainda conseguiu prestar ajuda política e

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socorro financeiro a muitos intelectuais condenados pelo regime. Ao final de sua vida, foi nomeado Embaixador soviético na Espanha.

Maliévitch viajou à Europa Ocidental na condição de representante do Instituto estatal da cultura artística de Leningrado, o Ginkhuk. Em sua primeira estadia na Europa, permaneceu em Varsóvia três semanas, entre os dias 8 e 28 de março de 1927, acompanhando a mostra retrospectiva de sua obra, que ocorreu primeiramente em uma das salas do hotel Polônia. Em seguida, viajou para Berlim, permanecendo lá por nove semanas e meia, entre 29 de março e 5 de junho, local onde, com a ajuda do arquiteto alemão Hugo Haring, ganhou uma sala de exposição especial na Grosse Berlinische Kunstausstellung (7 de maio até 30 de setembro).

A mostra trazida da Rússia pelo artista compreendia cerca de setenta pinturas (das quais um terço era suprematista), desenhos e modelos arquitetônicos que correspondiam em grande medida ao conteúdo da primeira exposição individual de Maliévitch ocorrida no ano de 1920, em Moscou: a Décima

sexta Exposição do Estado - Do Impressionismo ao Suprematismo, onde cento e

cinquenta e três obras foram expostas ao público. Maliévitch também levou consigo diversas tabelas explicativas sobre suas teorias de análise da nova pintura de cavalete e um substancial volume de escritos filosóficos.

Conforme os planos de Maliévitch, as duas exposições deveriam ser acompanhadas de conferências explicativas a respeito das pesquisas pedagógicas realizadas no Ginkhuk e sobre o desenvolvimento de sua obra e da arte de vanguarda.

Em 25 de março de 1927, Maliévitch realizou uma dessas conferências em polonês no Clube artístico situado no interior do Hotel Polônia. Na palestra intitulada ³Análise das correntes artísticas contemporâneas´, além de expor os resultados de suas pesquisas relacionadas à Teoria do elemento adicional em

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pintura, o artista criticou a identificação da arte russa com a propaganda e o utilitarismo.

Essa conferência se constituiu, na verdade, como uma cerimônia para que o artista fosse homenageado pelos artistas e críticos locais, que já conheciam seu trabalho, sendo seguida por um banquete (documentado em fotos da época) no salão onde as obras foram expostas.

Diferentemente do que aconteceu em Berlim (onde Maliévitch, que não dominava nenhuma língua ocidental, não foi nem mesmo capaz de descer na estação de trem correta, tendo se perdido a caminho da capital), em Varsóvia, Maliévitch encontrou um ambiente cultural mais inclinado às suas ideias.

Além do fato de dominar o polonês, devido a sua ascendência, Maliévitch foi recebido por dois de seus antigos alunos e companheiros do Unovis; o pintor Vladislav M. Strzeminski e a escultora Ekaterina N. Kobro, que haviam fundado alguns anos antes o Unismo, uma vertente artística do Unovis exportada à Polônia.

Na Polônia, esses dois artistas colaboraram amplamente para a divulgação do Suprematismo por meio da organização de exposições de trabalhos suprematistas no ano de 1923, da publicação de manifestos e artigos sobre a arte não-objetiva e da criação da revista Zwrotnica (Direção), na qual foram publicados tanto artigos escritos por Maliévitch, quanto textos a respeito do artista e do Suprematismo.

O debate de Maliévitch com os artistas locais poloneses também teve maior repercussão e aceitação do que com os artistas da Bauhaus, pois Maliévitch já havia contribuído com a revista polonesa Blok, na qual foi traduzido e publicado parte de seu tratado Dos novos sistemas da arte, no ano de 1924. Em fevereiro de 1926, Maliévitch também participou da Exposição Internacional de Arquitetura

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perceber que o público polonês estava mais familiarizado com a produção pictórica e teórica de Maliévitch.

Terminada a estadia na Polônia, Maliévitch partiu para a Alemanha em 1o de abril em companhia de Tadeusz Peiper, poeta e diretor da revista Zwrotnica. Lá teve como anfitrião o engenheiro Gustav von Riesen, cujo filho, Alexandre von Riesen, serviu de intérprete ao artista.

Alguns dos trabalhos suprematistas de Maliévitch e do grupo Unovis haviam sido expostos em Berlim, na Erste russisch Kunstausstellung (Primeira Exibição de Arte Russa) ocorrida na Galeria Van Diemen entre os meses de outubro e novembro de 1922. Essa exposição foi a mais importante mostra dos trabalhos russos na Europa ocidental desde o isolamento causado pela eclosão da Primeira Guerra Mundial e permaneceu sendo por muitos anos a mais relevante mostra de arte abstrata/não-figurativa russa no Ocidente. Compreendia tanto obras dos artistas do grupo Mundo da Arte até as mais recentes pesquisas abstratas e do Construtivismo russo. O design do interior da galeria foi criado por Lázar Márkovitch Lissitzki (El Lissitzki, 1890-1941), projeto que iria se desenvolver mais adiante, no ano de 1927, no projeto para o Gabinete de Arte Abstrata, em Hanover. Esta mostra foi transferida para o Museu Stedelijk, de Amsterdã, entre os meses de abril a maio de 1923, para a qual Maliévitch enviou quatro obras suprematistas, dentre as quais uma das telas da série Branco sobre branco (1918), além da obra de tendência futurista Amolador de faca (1912-13) que, junto com outros trabalhos de artistas russos, foi adquirida pela colecionadora e pintora Katherine Sophie Dreier para seu museu de arte moderna em Nova Iorque, a

Société Anonyme (atualmente a obra se encontra na Galeria da Universidade de

Yale).

Embora Maliévitch tenha estabelecido contato com artistas e arquitetos alemães anos antes de sua visita a Berlim, suas ideias sobre a arte de vanguarda e, especialmente, sua produção teórica não foram tão bem acolhidas quanto em

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Varsóvia, fato certamente agravado pelas dificuldades de comunicação do artista, mas também porque Maliévitch foi obrigado a retornar repentinamente à União Soviética, o que o impediu de realizar as conferências explicativas de sua teoria e obra.

Quatro meses antes do encerramento da exposição em Berlim (1927), Maliévitch foi convocado pelo governo soviético a regressar a Leningrado, tendo que prestar depoimentos sobre sua estadia. Antes de regressar à União Soviética, em 30 de maio, o artista confiou uma série de manuscritos e cadernos de notas a Gustav von Riesen, ficando o arquiteto modernista Hugo Haring responsável pela guarda das obras presentes nas exposições, além dos vinte e dois gráficos explicativos de sua teoria e pelas pranchas sobre a teoria da cor desenvolvidas pelo colega de Ginkhuk, Mikhail Matiuchin.

Segundo Hans von Riesen, Maliévich teria deixado aos seus cuidados um grande pacote amarrado com cordas e pedido solenemente que guardasse o material até o seu retorno, previsto para o verão de 1928, pois tinha planos de exibir seus trabalhos em outros países da Europa. Contudo, sabendo da conturbada situação política de seu país, ele deixou registrado em carta que, no caso de não conseguir voltar e se durante os próximos vinte e cinco anos Riesen e Haring não recebessem notícias dele, teriam a autorização para abrir o pacote:

[...] no caso de minha morte ou de um aprisionamento definitivo e no caso do proprietário desses manuscritos desejar publicá-los, será necessário estudá-los e, após isto, traduzi-los em outra língua, pois achando-me nessa época sob influências revolucionárias, poder-se-ia encontrar fortes contradições com a maneira que tenho de defender a arte hoje, ou seja, em 1927. Estas disposições devem ser consideradas como as únicas legítimas. 82

82 Carta datada de 30 de maio de 1927, Berlim. Arquivos de Hans von Riesen, atualmente no

Museu Stedelijk, de Amsterdã apud MARCADÉ, J. C., /¶DYDQW- Garde Russe 1907-1927, op.cit., p. 11.

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Pelo seu conteúdo, a carta parece ter servido de subterfúgio ao artista, que ao tentar se resguardar da perseguição ideológica ao regressar à URSS, desejou assegurar que sua ideologia artística, no ano de 1927, não seria mais condizente com suas visões registradas em escritos anteriores.

Sobre o destino das obras expostas no Ocidente, Troels Andersen (Catalogue Raisonne of the Berlin exhibition, 1927. Stedelijk Museum, Amsterdã, 1970) e Donald Barthelme (Catálogo da Bienal Internacional de São Paulo, 1994) relatam que quinze dos trabalhos foram perdidos, vinte e quatro fazem parte atualmente do acervo do Museu Stedelijk, de Amsterdã, três estão em coleções particulares e de outros dois, também de coleções particulares, não se tem notícia. Ainda em Varsóvia, Maliévitch teria ainda presenteado o arquiteto Simon Sirkus (marido de Helena Sirkus83) com o Arquitetone Zeta. Após voltar à URSS, Maliévitch foi obrigado a vender uma de suas pinturas que estava em exposição em Berlim (Composição suprematista, de 1916) e duas outras obras teriam sido presenteadas pelo artista a Hugo Haring e sua esposa.

Durante o período de ocupação nazista a maioria dos trabalhos que havia ficado na Alemanha sob os cuidados da família von Riesen foi armazenada por uma empresa de transportes, em Berlim, pelo agente de expedição Gustav Knauer. Posteriormente as obras foram retiradas de Berlim ficando aos cuidados de Alexander Dorner, diretor do Provinzialmuseum de Hanover. Com a ocupação nazista em 1933, Doner, em um ato de coragem, manteve os trabalhos escondidos.

Em 1935, Alfred H. Barr, então diretor do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, empreendeu uma cruzada pela Europa em busca de obras abstratas e acabou adquirindo duas obras suprematistas e dois esboços arquitetônicos para

83 Em setembro de 1926, Maliévitch publicou trechos de O Mundo não-objetivo/sem objeto no

primeiro número da revista polonesa Praesens. Graças às ligações da revista com o grupo francês Cercle et Carré, estes trechos foram traduzidos para o francês por Helena Sirkus, sendo esta a primeira tradução de um texto do artista para a língua francesa.

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a coleção do museu pelo preço simbólico de aproximadamente duzentos dólares, além do empréstimo de seis pinturas, um guache, cinco desenhos e cinco das vinte e duas tabelas pedagógicas para sua mostra Cubismo e Arte Abstrata, ocorrida em Nova Iorque, que foram posteriormente agregadas à coleção permanente do MoMA .

Por esse período, Dorner não tinha mais condições de expor e nem mesmo de conservar em seu poder tais trabalhos, seja porque as obras dos modernistas estavam sendo confiscadas para venda ou destruição pelos nazistas, seja porque aqueles que possuíssem ou apoiassem tal tipo de arte estavam (no melhor dos casos) sob a ameaça de prisão.

No outono de 1935, os trabalhos foram então transportados por Dorner pelo território holandês, mas a perseguição nazista tornou inviável a devolução das obras. Como em 1936, duzentas e setenta pinturas do Museu de Hanover IRUDPOHLORDGDVFRPR³DUWHGHJHQHUDGD´DFROHomRIRLGHYROYLGDD+XJR+DULQJD fim de salvá-las de tal destino. Em uma manobra arriscada, o arquiteto as escondeu em sua casa em Berlim e depois em Biberach, no sul da Alemanha.

Na década de 1950, Willem Sandberg entrou em contato com Haring, adquirindo as obras para o Museu de Amsterdã. Embora a aquisição dos trabalhos pelo Stedelijk tenha se concretizado em 1958, as disputas judiciais do museu com os herdeiros do artista se estenderam por décadas, pois eles alegavam ter direito sobre cerca de cem obras que teriam sido indevidamente vendidas por Haring ao museu (o MoMA também estabeleceu acordos financeiros com os herdeiros do artista por motivo semelhante). Apenas em abril de 2008, após anos de disputas judiciais, os herdeiros de Maliévitch entraram em acordo com o governo de Amsterdã. Com a exceção de cinco obras que foram restituídas à família, este conjunto de obras e documentos pertence legalmente ao museu holandês.

Fora a importância histórica dessas duas exposições internacionais de Maliévitch (representando tanto uma manobra estratégica do artista no sentido de

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resguardar seu trabalho das autoridades soviéticas, quanto uma mensagem enviada na garrafa ao Ocidente de uma obra pictórica e teórica que permaneceria por décadas proibida de ser exposta na União Soviética) essas mostras marcam o início de uma nova fase pictórica na obra do artista, normalmente conhecida pelo