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A Custódia de Belém, a ourivesaria e a arquitetura manuelina

3. Contextualização teórica sobre o monumento e o autor da peça

3.2 Gil Vicente

3.2.4 A Custódia de Belém, a ourivesaria e a arquitetura manuelina

Em 1506, D. Manuel I ofereceu ao Mosteiro de Santa Maria de Belém a Custódia de Belém, peça de ourivesaria do mestre Gil Vicente, que constitui hoje um importante testemunho daquilo que foi a arte da ourivesaria da época dos Descobrimentos e da qualidade que esta alcançou.

A peça teria sido feita com o ouro que Vasco da Gama trouxera de Quíloa em 1503 e por isso, tornou-se uma das obras com mais significado histórico, documental e simbólico. Mais do que uma expressão de qualidade artística, “constituía a prova material de que o projeto imperial manuelino era mais do que uma utopia. Ao ser fabricada com o ouro do primeiro tributo do rei africano (…), simbolizava a efetiva conquista do Oriente” (Bastos e Franco 2010, 135).

A sua ornamentação é característica não só das peças de ourivesaria, mas em geral de toda a arte que se produzia em Portugal, principalmente na área da arquitetura. Pereira (2010) afastou esta ornamentação da conotação islâmica que alguns lhe deram e associou-a ao “luxo”, um dos vetores mais importantes da política manuelina nos primeiros anos do seu reinado, e onde a Custódia desempenhou um papel de distinção. Esta era a mesma “economia de luxo” que Gil Vicente poeta criticara e que Pereira identificou como uma das características mais marcantes da sociedade de então. Também na arte preponderava a política de consumo sobre uma orientação artística definida, caminhava-se em direção a uma nova cultura visual através da importação de produtos orientais que cativavam o olhar português e europeu – porcelanas, pedras preciosas e mobiliário – (Pereira 2010).

93 Lado a lado com a sumptuosidade, D. Manuel vinculava o seu cunho manuelino a todas as obras de arte do seu tempo. Gil Vicente, André Pires, Bartolomeu de Paiva e António Carneiro, os responsáveis pelas obras do reino, seriam os homens mais próximos do rei, aqueles que concretizavam o plano do monarca instaurando a unicidade manuelina.

Daí que não seja certo as influências que as diferentes obras de arte suscitaram entre umas e outras. Bastos e Franco (2010) sugeriram a possibilidade de a Custódia de Belém poder ter sido um campo de ensaio, uma maqueta de inovação arquitetónica, daquilo que só se concretizaria dez anos depois com a construção do portal Sul do Mosteiro dos Jerónimos. Para eles, o modelo de dois pilares laterais com um coroamento central, onde se distribuem as imagens e cenas sagradas que se relacionam entre si, conjuntamente com a perpétua ligação da corte ao mundo sagrado através da presença constante das divisas reais (Fig. 66 e Fig. 67), constitui um programa que aproxima a peça de ourivesaria ao Portal Sul dos Jerónimos e a tantos outros da arquitetura manuelina (Fig. 68).

Já em 1895, o arquiteto Augusto da Silva, da mesma opinião dos dois autores, propôs, para o concurso lançado para as obras do lado ocidental, um prolongamento do portal axial com um coroamento diretamente inspirado na Custódia.

A complexidade da programação iconográfica por todos os campos da arte pode levar a suspeitar conexões. Por exemplo, a iconografia de vários edifícios manuelinos e a sua semelhança às mensagens que Gil Vicente poeta introduzia em várias das suas peças, pode denunciar a sua influência. No Auto da Alma de 1508, o enredo da peça, onde até a Custódia é mencionada, manifesta semelhanças com o programa iconográfica do claustro dos Jerónimos. Será possível que Gil Vicente tenha tido alguma influência?

De qualquer forma, existia uma relação entre arquitetos e ourives à época, a arquitetura inspirava-se na ourivesaria de aparato e transformava-a em algo monumental, enquanto os ourives replicavam em miniatura o que os fascinava nos grandes edifícios (Pereira 2010).

Tivesse sido pelo debate sobre o seu autor, valor artístico ou simbólico, atualmente a Custódia tem uma importância que se atribui a poucos objetos artísticos. O seu valor e simbolismo ao nível nacional foi algo que atravessou séculos de história.

Entre 1755/60 o terramoto levou a que se fizessem obras no Mosteiro, a Custódia terá sido guardada numa caixa-forte para sua preservação; mais tarde D. Pedro, sob pressão da guerra civil, pede que algumas peças sejam transferidas do Mosteiro para o Banco de Lisboa, a fim de que os ataques não lhes causassem danos, a Custódia incluía-se; em 1835, a decisão para fundar um Museu Nacional de Belas-Artes levou a abertura de

94 algumas das caixas com peças do Mosteiro, nesse momento a Custódia passou a integrar a lista de objetos a serem colocados no museu; D. Fernando II, em visita à Casa da Moeda, deu especial atenção à peça e rapidamente percebeu a sua “representatividade simbólica” (Neto, Alves, e Soares 2010, 165).

A sua importância afirmou-se em 1867, quando foi selecionada para figurar na Exposição Universal de Paris no Pavilhão de Portugal. Segundo as autoras, desta exposição resultou um sentimento de posse coletiva e uma divulgação internacional do objeto, e começaram os debates em torno dele. Em 1871, decidiu-se a sua permanente exposição para estimular o estudo e gosto pelos objetos artísticos. Durante o VII Centenário do Nascimento de Santo António em 1895, a peça figurou como alusão à glória portuguesa na Expansão. Só em 1925 foi incorporada na coleção do MNAA com o estatuto de património coletivo e para fomentar o orgulho nacional.

Desde então, a ideia da Custódia como testemunho dos momentos de triunfo português proliferou. Chegando a ser usada pelo Estado Novo como um agente de propaganda política, tendo sido usada como tal nas Celebrações do Duplo Centenário (1940) e nas Comemorações do VIII Centenário da Tomada de Lisboa (1947).

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