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3. Contextualização teórica sobre o monumento e o autor da peça

3.2 Gil Vicente

3.2.3 Ourives ou Poeta?

Gil Vicente ourives teria sido pouco conhecido fora da corte, protegido de D. Leonor e autor de trabalhos de maior louvor para D. Manuel, mas as suas peças não chegavam ao conhecimento do público. Talvez por isso o único testemunho que relacione as suas obras com o seu nome seja o testamento de D. Manuel e o de D. Leonor. Neste sentido, o único Gil Vicente conhecido de todos seria o dramaturgo, e por isso “a hypothese mais plausível era a do simplismo: a identificação do ourives com o poeta” (Braga 1916, 6), pelo menos até finais do séc. XIX.

Foi possivelmente nesta altura que se iniciou o debate e a procura por documentos que comprovassem ou contradissessem essa teoria. Foram encontrados vários, antes esquecidos no Arquivo Nacional, onde constava Gil Vicente; o nome não aparecia apenas associado ao dramaturgo, o que levava a ponderar a existência de vários indivíduos com o mesmo nome e, talvez, relacionados em algum grau de parentesco.

Braga (1916) aferiu que Gil Vicente ourives teria aprendido o ofício com seu pai, Luiz Vicente. Antes de 1488, ano em que deflagrou a peste em Guimarães, teria ido para Lisboa como lavrante da “Rainha Velha” e para trabalhar nas joias do enxoval de D. Afonso, que se preparava para casar com D. Isabel, filha dos Reis Católicos. Nesta condição de lavrante oficial da corte, pôde interceder para que a sua família viesse para Lisboa e para que seu “primo e afilhado Gil Vicente, escolar da Collegiada de Guimarães” (Braga 1916, 10) viesse estudar na Universidade de Lisboa.

Foram identificados vários acontecimentos na corte, em locais distintos do país, que comprovaram a teoria de que não se tratava da mesma pessoa, cada um dos dois ia desempenhando as suas funções paralelamente. Por exemplo, em 1509, com cerca de vinte anos ao serviço da corte e certamente como reconhecimento de cooperação, Gil Vicente ourives receberia o cargo de Vedor de todas as obras de ouro e prata, posição apenas justificável pelo respeito profissional que tinha adquirido. Em 1513 foi eleito

91 Mestre da Balança da Casa da Moeda e Procurador dos Mesteres, certo que “para ser Procurador dos Mesteres entre o Rei e a Casa dos Vinte e Quatro, nas suas diversas relações económicas e jurídicas, era preciso um profissional, de grande crédito e influência social, não um Poeta-Ourives, mas um Ourives com a mestria de uma arte tão technica e complexa” (Braga 1916, 21).

Com a morte de D. Leonor em 1525 e a falta de apoio de D. João III, o ourives terá perdido a admiração que até então beneficiara. Ainda assim, prevaleceu a fama da sua mais consagrada obra, a Custódia de Belém. Em 1787, Lord Beckford reconheceu internacionalmente a incomparável beleza e o meticuloso trabalho do artista que tinha observado aquando da sua visita a Portugal; mas não soube esclarecer quem seria o autor porque também os frades ignoravam essa informação. Fr. Jacinto de S. Miguel, nos inícios do séc. XVIII, chegou a supor que a Custódia teria sido lavrada na Índia. Só muito mais tarde, com a Exposição Universal de Paris em 1867, a obra viria a ser devidamente revalorizada, o que levantaria novamente a questão de quem seria o seu autor (Braga 1916).

Por outro lado, Gil Vicente poeta viria para Lisboa em 1488 para frequentar a Universidade de Lisboa, onde estudou durante dois anos até ser chamado por D. Leonor para Mestre de Rhetorica do Duque de Beja. A “Rainha Velha” teria mantido D. Manuel longe da corte durante a sua juventude, mas a morte de D. Afonso em 1491 e a doença de D. João II levou a que fosse chamado à capital. Contudo, a falta de cultura geral e de noções filológicas para desempenhar o novo cargo eram notórias e foi por esse motivo que “a Rainha D. Leonor, bem informada pelo seu lavrante Gil Vicente, do genio excepcional do seu afilhado o escolar Gil Vicente, teve a intuição de que (…) seria ele o Mestre a incutir com resultado uma cultura idónea ao herdeiro do throno” (Braga 1916, 42). Depois da subida ao trono de D. Manuel só regressaria à corte em 1502, com o Auto da Visitação, e iniciaria a vasta produção de Autos, Farsas e Tragicomédias que o manteriam até ao final da sua vida naquele círculo.

Outras dúvidas que incentivaram à associação dos dois nomes são as alusões que Gil Vicente fez nas suas obras à arte e técnicas da ourivesaria como só um conhecedor poderia fazer. Porém Braga esclareceu, o dramaturgo era filho de Martim Vicente, ourives de Guimarães, “creado desde pequeno na oficina, elle conhecia esses trabalhos technicos” (Braga 1916, 35).

Certo que o aparecimento, já no séc. XIX, do despacho de 1513 de Gil Vicente para Mestre da Balança, onde se lê “Gil Vicente, trobador, mestre da balança”, levaria à assunção das duas individualidades como uma só. Mas segundo Braga, esta atribuição

92 do nome trobador foi um equívoco, “Gil Vicente” ouvia-se por toda a parte e o escriba acabara por associar erradamente.

Teyssier (1982) partilhou da mesma opinião de Braga e não pôde deixar de notar a anotação lateral onde figura Gil Vicente trobador. Contudo, reconheceu-a como o único testemunho em que as duas personalidades são identificadas como uma só. O autor também não considerou que a criação de um ourives como personagem na Farsa dos Almocreves fosse algo decisivo para assumi-lo com a mesma profissão, algo que também já teria sido usado como prova de outras teses. O documento de 1513 acabou por culminar como a prova mais concreta que se pôde apresentar. Porém, essa mesma prova e o facto de ser documento único criou, mesmo naqueles que nela se basearam, aquilo que Teyssier chamou de um sentimento misto de aprovação e ceticismo que até hoje não tem ajudado a encerrar o debate.