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3. Contextualização teórica sobre o monumento e o autor da peça

3.2 Gil Vicente

3.2.1 O dramaturgo da corte

Sabe-se que esteve muito tempo ao serviço da “Rainha Velha”, D. Leonor, e depois terá servido D. Manuel na organização das festas da entrada da sua terceira mulher em Lisboa, em 1521. Depois do Venturoso, ganhou a confiança de D. João III, testemunhada pelas “mercês financeiras” que lhe foram atribuídas nessa época. Sempre ao serviço do Monarca, foi-lhe incumbido o dever de glorificar a sua política, representar a grandeza dos seus atos e do seu reino, inevitavelmente celebrando a política de Expansão (Teyssier 1982).

86 Costa (1989) focou o seu estudo no trabalho de Gil Vicente para D. Leonor e a sua missão de carácter religioso e político. A Rainha Velha iniciara uma empresa de carácter missionário com vista à regeneração do cristianismo, fê-lo através da proteção às artes colocando-as ao serviço da religião: encomenda de obras de arquitetura (pórtico da Madre de Deus, igreja das Caldas da Rainha, Capelas Imperfeitas), ourivesaria (custódias, cálices, sacrários), cerâmica e pintura. O teatro não foi exceção e por isso chamou Gil Vicente, introduziu-o na corte, apoiou o seu trabalho e impeliu-o a conotar nas peças uma vertente religiosa.

A arte ultrapassava os assuntos estéticos, a sua produção estava integrada na consciência de que era necessário uma transformação e difusão da vida religiosa. Uma ideia de D. Leonor e dos monarcas da sua época, “sabemos o cuidado que mereceu da parte de D. Manuel I a evangelização e esclarecimento didático do seu reino” (Costa 1989, 111).

Paralelamente, e como Teyssier (1982) tinha notado, trabalhar ao serviço do rei implicava o seu enaltecimento e do seu reinado. A corte portuguesa, à semelhança de outras europeias (Reis Católicos, Médicis e Duques de Borgonha), compunha-se por uma dinastia de burgueses que controlavam os centros financeiros europeus mais importantes e que pretendiam atribuir o maior brilho, realce e glória à sua corte. Para isso, reuniam à sua volta um conjunto de artistas, poetas e historiadores, intelectuais ao serviço de um “prestígio individual e nacional” (Costa 1989, 144).

A difusão e esclarecimento religioso a par com a faceta social e cultural, criavam um ambiente de dupla feição – religiosa e profana – entre a exigência espiritual e o divertimento mundano.

No âmbito de um teatro de corte, parte das peças foram representadas a propósito de acontecimentos relacionados com a vida da família real (nascimento de príncipes, partida ou chegada de princesas, desposórios reais…) por meio do seu enaltecimento. Por exemplo, em 1502, o Monólogo do Vaqueiro foi escrito por ocasião do nascimento do futuro D. João III, momento que Gil Vicente aproveita para se apresentar a D. Maria, D. Manuel, D. Beatriz, e D. Leonor, transparecendo uma estabilidade na ordem social e o apoio incondicional à Casa Real. Em 1514, servindo-se de uma das suas figuras guerreiras em Exortação da Guerra, veiculou o nascimento dos reis portugueses aos deuses e à constelação favorável dos planetas, numa alusão ao poder e feitos dos monarcas. Em 1521, nas Cortes de Júpiter, fez uma exaltação à infanta D. Beatriz que estava de partida para Saboia. Depois em Frágua do Amor (1524) celebrava o casamento de D. João III com D. Catarina, a Nau de Amores (1527) comemorava a

87 entrada de D. Catarina e D. João III em Lisboa e o Auto Pastoril da Serra da Estrela (1527) o nascimento da infanta D. Maria (Cruz 1990).

A prática do teatro vicentino na sociedade de quinhentos

Partindo das evidências que Teyssier e Cruz apresentaram, pode assumir-se que Gil Vicente produziu um “teatro de corte”, já que foi para ela que a sua obra foi concebida e apresentada, e em torno dela que se desenvolveu toda a sua carreira.

Do ponto de vista da sua aplicação prática, pelo menos no que respeitava aos grandes festejos, estes eram momentos de grande imponência. Foram apresentados indícios, particularmente durante o reinado de D. Manuel I, da especial extravagância dos mesmos, veja-se como exemplo a embaixada de Tristão da Cunha a Roma em 1514, levando consigo riquezas e animais selvagens da Índia. Mais tarde, Gil Vicente, nomeado Mestre da Retórica das Representações (1524), também terá tomado parte na conceção das enormes festividades ordenadas por D. João III. Qualquer um dos dois monarcas, procurando afirmar o seu poder e acomodados pelas riquezas que chegavam da Índia, faria questão de que estes momentos não fossem menos do que razões para que a sua fama se espalhasse por toda a Europa (Keates e Jacques 1988).

Para além da grandiosidade de que se dotavam estes eventos em particular, e no contexto em concreto do teatro vicentino, Keates (1988) atentou à qualidade das encenações. Recorrendo ao relato de Resende sobre a peça apresentada por ocasião da ida de D. Beatriz para Saboia, o autor sublinhou “uma muito boa e muito bem feita comedia de muitas figuras muito bem atraviadas, e mui naturaes, cousa muito bem ordenada e muito bem a propósito” (Keates e Jacques 1988, 79), as “figuras muito bem atraviadas” denunciam personagens bem caracterizadas, coisa “muito bem ordenada” daria a entender uma boa montagem quer ao nível do guião e da peça, quer do cenário, e “muito bem a propósito” quereria dizer muito a propósito do serão em que teria sido apresentado e no momento certo.

Sobre o “palco”, este estaria à altura dos espetadores virado ao estrado real, em volta da sala dispersar-se-iam os restantes ouvintes. Conclusão que é apresentada por não existirem características do palco como proscénio e por se identificarem nas obras momentos pontuais de comunicação direta com o público, uma característica associada ao “palco redondo” onde não existem fronteiras entre a plateia e a ação, reforçada pela “força da realidade” (Keates e Jacques 1988, 88) que o próprio dramaturgo incutia nas suas peças. O autor notou algumas exceções a este “palco raso” em contacto próximo do público, algumas didascálias suscitam dúvidas se haveria vários palcos ou vários espaços, por exemplo expressões como “lá em baixo”, “descer”, “subir”.

88 A ausência de palco permitia que as peças acompanhassem a família real para qualquer cidade onde esta permanecesse, na sua maioria terão sido apresentadas nos Paços Reais, existem referências (nas Obras Completas de Gil Vicente) a Lisboa, Évora, Coimbra, Almeirim. Ainda assim, há registos pontuais de apresentações em espaços menos convencionais como o Mosteiro de Madre Deus ou “Mosteiro d’ Enxobregas” em 1513 o Auto da Sibila Cassandra, na “Capela de Sam Miguel” nos “Paços D’Alcáceva” (Coimbra) em 1511 o Auto dos Quatro Tempos, no Hospital de Todos os Santos em 1517 o Auto do Purgatório, no Convento de Odivelas o Auto da Cananeia e no Convento de Tomar em 1523 a Farsa de Inês Pereira (Vicente e Camões 2002).

Vários indícios sugerem a utilização de cenários e adereços por parte do dramaturgo. Em Frágua do Amor ter-se-á usado um pequeno batel aparelhado com o necessário e um castelo, utilizado também na Divisa de Coimbra e História de Deus (ambas 1527). Os atores fariam uso de um guarda-roupa, de D. Manuel e propositadamente por ele mantido para ser usado nas apresentações das peças. Por exemplo, em Nau de Amores as didascálias notam “os fidalgos do principe tirarão suas capas” (Keates e Jacques 1988, 87).

“Gillo auctor”, como André de Resende se referiu ao dramaturgo no “Genethliacon”, denuncia este “auctor” em muito mais do hoje é, aqui o ator criava e recriava. Pelo que se pode constatar nas crónicas da época, Gil Vicente fora um dramaturgo de grande qualidade, cuja prática de teatro se assemelhava muito ao que é feito hoje em dia e por isso se demonstra tão atual.