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Capítulo 2: A referenciação

2.4 Delimitação de critérios para a seleção das ocorrências

2.4.1 A dêixis e a anáfora: uma proposta de distinção

Em razão da noção dêitica, muitas vezes, ser confundida com a anáfora, é conveniente propor uma distinção para esses termos. Uma tentativa com o propósito de distinção desses termos é feita por Bosch (1983 apud APOTHELÓZ, 2003, p.68) que acredita haver dêixis “quando a expressão tem por objetivo deslocar o campo de atenção para um referente, e anáfora quando a expressão só faz manter o referente no campo de atenção”. Admitindo também que o foco de atenção é característico dos dêiticos, Ciulla (2002, p. 66), afirma que as expressões dêiticas

quando remetem ao cotexto, instituem novos referentes no discurso e mantêm o traço subjetivo característico do procedimento dêitico, que pode se manifestar de duas maneiras (não mutuamente excludentes): ou pela indicação da localização física de alguma porção do texto dentro da própria organização textual, ou pela orientação dos focos de atenção do interlocutor.

Cornish (apud MARCUSCHI, 2005, p. 89) pondera que as diferenças entre dêixis e anáfora não estão no nível das operações, mas da relação cognitiva estabelecida entre antecedente e forma remissiva. Com isso, afirma que

a dêixis serve prototipicamente para deslocar o foco de atenção do endereçado de um objeto de discurso existente para um novo, derivado pela via do contexto situacional do enunciado. A anáfora, por outro lado, é um sinal para continuar um foco de atenção existente já estabelecido; os referentes (francamente acentuados, fonologicamente não-proeminentes) de anáforas são assim pressupostos pelo falante para atingir um grau de saliência relativamente mais alto ou nível focal no ponto do texto em que são usadas.

Webber (1980 apud CIULLA, 2002, p. 69), em uma definição mais tradicional para a distinção, entende que:

uma expressão dêitica é considerada como um apontamento para coisas dentro de um contexto espacial e/ou temporal ou dos participantes do discurso, enquanto que uma expressão anafórica é vista como um apontamento para entidades dentro do modelo discursivo.

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Arrolados alguns posicionamentos quanto à distinção anáfora/dêixis39, neste trabalho a distinção fundamental entre esses termos é a localização da remissão, isto é, se a remissão de alguma expressão anafórica nominal operar dentro do próprio texto, a partir de segmentos antecedentes do co-texto, sua análise será possível. Caso a expressão nominal se opere com relação à pessoa, ao tempo, ou ao lugar da enunciação, será desprezada a ocorrência. Vejamos alguns casos em que a ocorrência foi desprezada:

(9) “O convite à conversão, nesse tempo da quaresma, aponta nesta dinâmica como capítulo primeiro” (Texto 2 – Anexo III).

(10) “A proposta tem uma simplicidade singular, com força de solução, como devem ser leves, ágeis, múltiplas as coisas todas deste terceiro milênio” (Texto 9 – Anexo III). (11) “Nesta sexta-feira os presidentes Bush e Lula vão assinar um acordo histórico na área dos biocombustíveis, em São Paulo” (Texto 7 – Anexo II).

Em (9), a expressão nesse tempo de quaresma remete ao momento da enunciação, notadamente indiciado pelo uso do determinante demonstrativo40. Isto é, o texto “O cisco no olho”, de Dom Walmor Oliveira de Azevedo, foi escrito no período da quaresma. Logo, não houve retomada de nenhum elemento do co-texto, ao contrário, a referência da anáfora nominal está situada no contexto comunicativo, baseada em aspectos culturais. Também, é importante ressaltar que a data das produções foi entendida como elemento extralingüístico, portanto, as ocorrências (10) e (11) não foram consideradas por serem entendidas como puramente dêiticas.

Optamos por desconsiderar os dêiticos “puros”41, simplesmente, porque os dêiticos, em geral, como se configuram a partir de três categorias que são o espaço, o tempo e a pessoa da enunciação, apontam para elementos extralingüísticos42, como é o caso das ocorrências (12) e (13):

39 Sobre esse assunto, consultar Ciulla (2002) e Koch (2005a). 40 Geralmente, o demonstrativo coopera na e para a dêixis.

41 Falamos em dêiticos “puros”, porque a literatura sobre referenciação fala em expressões referenciais que sejam simultaneamente dêiticas, introduzindo uma referencia híbrida: anafóricos com dêiticos. Ver Ciulla (2002). 42 Optamos por considerar a dêixis a partir do que concebe Lyons (1980 apud APOTHÉLOZ, 2003, p. 67), “a localização e a identificação das pessoas, objetos, processos, eventos e atividades (...) em relação ao contexto espácio-temporal acreditado e mantido pelo ato de enunciação, e a participação, em regra geral, de um locutor único e de pelo menos um interlocutor”.

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(12) “Já relatei aqui, neste Espaço Aberto, o encontro que tive, dez anos atrás, com parlamentares portugueses e espanhóis” (Texto 2 – Anexo II)43.

(13) “Só no primeiro período da atual Presidência (2002/2006) foram desmatados mais de 84 mil quilômetros quadrados, mais do que qualquer quatriênio anterior” (Texto 10 – Anexo II).

O advérbio espacial aqui, exemplo (12), faz menção ao local (seção Espaço Aberto), onde os artigos opinativos d’O Estado de S. Paulo se encontram; portanto, faz referência a um elemento que está fora do co-texto - um elemento espacial -, assim como em (13), em que a referência se estabelece pelo tempo da enunciação.

Assim concordamos com os estudiosos quanto ao deslocamento do foco de atenção, constituindo um dêitico, e da continuidade do foco de atenção, constituindo uma anáfora. Essa mudança no foco de atenção é explícita nos exemplos (12) e (13).

Já o dêitico em (14) foi considerado, porque o tempo ao qual faz referência está explicitado no co-texto em uma parte antecedente, ou seja, houve manutenção do referente no campo de atenção.

(14) “Pode-se contra-argumentar que o crescimento das exportações para os EUA ao longo do primeiro governo Lula (59,1%) foi inferior ao incremento de nossas exportações no período (127,8%). É verdade. Porém, esse descompasso se deve a fatores econômicos concretos, e não a ideologias ou à falta de empenho do governo brasileiro. É que as exportações brasileiras no período considerado cresceram num ritmo inaudito para os países em desenvolvimento, os quais têm mercados que eram pouco explorados pelo Brasil”(Texto 9 – Anexo II).

Em (15), o dêitico foi considerado, porque o advérbio pronominal ali faz referência ao tempo já mencionado:

(15) “Mas vale a pena citar as de um paper do diretor de Economia e Meio Ambiente do próprio Ministério do Meio Ambiente, Gerson Tavares, no qual se menciona a falta de preocupação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) com as questões ‘ambientais’. Adverte-se ali (...)” (Texto 10 – Anexo II).

Dentre os dêiticos, muitas foram as ocorrências de dêixis textual44 no nosso corpus. Mas em virtude de nosso recorte, não elegemo-nas para análise. Veja um exemplo em (16):

43 Essa ocorrência serviu para exemplificarmos uma expressão dêitica, pois como não trabalharmos com os pronomes, ela não seria considerada em nossa pesquisa.

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(16) “Para a frente há dois cenários alternativos. O primeiro vê mais a desaceleração do PIB americano como resultado da futura queda de consumo. (...) O segundo cenário ressalta a flexibilidade da economia americana(...)” (Texto 6 – Anexo II).