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Capítulo 1: Da lingüística textual às noções de texto, gênero suporte e esfera: algumas

1.4 A noção bakhtiniana de gênero

Quando pensamos no vocábulo gênero, não há como deixar de mencionar o discurso fundador de Mikhail Bakhtin que subjaz a essa noção. Este nome foi e é sempre rememorado para este assunto, uma vez que se constitui como o precursor das orientações teóricas que ainda hoje são utilizadas nos estudos que envolvem o texto e/ou o discurso. Embora não se estivesse falando pela primeira vez em gêneros, já que essa noção foi utilizada, preliminarmente, no domínio da retórica e da literatura, Bakhtin propiciou uma nova abordagem a essa temática; daí sua singular contribuição ao campo de estudos lingüísticos.

Essa abordagem representada pela teoria bakhtiniana inclui o social e o histórico na análise da interação verbal e, como princípio básico da linguagem, o dialogismo. A inclusão dos elementos social e histórico faz com que o homem ganhe espaço nas análises lingüísticas, sendo considerado não mais um simples locutor ou receptor textual passivo, mas como um ser capaz de uma atitude responsiva ativa perante o outro na comunicação. Já o princípio dialógico da linguagem, assumido por Bakhtin (BARROS, 1997, p. 28), ao entender que “o homem se constrói no e por meio dos textos”, fará com que o texto seja visto como: I) produto

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de uma significação; II) produto da criação, que envolve o contexto sócio-histórico e ideológico dos interlocutores; III) dialógico, uma vez que se desenvolve a partir do diálogo entre interlocutores e com outros textos e IV) único, já que não pode ser repetido igualmente por outrem, dado o complexo contexto que envolve sua criação. Com isso, esse princípio dialógico da linguagem, que permeia a concepção linguageira de Bakhtin, transporá a alteridade para primeiro plano, já que é necessário pensar no outro para que esse dialogismo se instaure.

Por isso, Bakhtin foi responsável por uma mudança de paradigma7, pois acreditamos

realmente, como nos elucida Faïta (1997) e por meio das evidências constatadas ao longo da leitura de uma parte do trabalho de Bakhtin, que este promoveu rupturas com a teoria estruturalista que considerava apenas a função expressiva da linguagem e a homogeneidade do sistema da língua.

Essa ruptura tem origem, como já dito, na inclusão do homem nas análises lingüísticas e na evidência de que a interação humana é passível de sistematização por meio do que Bakhtin denominou de gêneros discursivos. Esses são, por sua vez, entendidos como “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2003, p. 262), produto de um conjunto regularizado de ações humanas, que sofrem, ao longo do tempo, estabilizações decorrentes da interatividade humana, refletindo, por isso, condições e finalidades específicas.

Para Bakthin, o uso da linguagem estabelece uma estreita relação com a atividade social humana, ou seja, a ação de comunicar – responsável pela instituição da vida social humanamente organizada – está intimamente ligada a um gênero que norteará a ação lingüística. “A orientação social [para Bakhtin] configura-se como o determinante mais importante de qualquer atividade mental” (FAÏTA, 1997, p. 163).

O ponto de partida de Bakthin [para conceituar gênero discursivo]é a estipulação de um vínculo orgânico entre a utilização da linguagem e a atividade humana. Para ele, todas as esferas da atividade humana estão sempre relacionadas com a utilização da linguagem. E essa utilização efetua-se em formas de enunciados que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. (...) Fica, assim, claro que, para Bakthin, gêneros do discurso e atividades são mutuamente constitutivos. Em outras palavras, o pressuposto básico da elaboração de Bakthin é que o agir humano não se dá independente da interação; nem o dizer fora do agir (FARACO, 2003, p. 111; 112).

7 Essa expressão foi cunhada por Faïta (1997) no texto “ ‘Gênero Discursivo’ em Bakhtin: uma mudança de paradigma”.

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Assim, os gêneros ordenam e estabilizam a comunicação, tendo em vista que “a vontade discursiva individual do falante só se manifesta na escolha de um determinado gênero e ainda por cima na sua entonação expressiva” (BAKHTIN, 2003, p. 283), ao mesmo tempo em que, conforme Marcuschi (2002, p. 19), “são altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos”, em virtude das necessidades e atividades sócio-culturais estabelecidas pelo ser humano.

Os gêneros não são superestruturas canônicas e deterministas, mas também não são amorfos e simplesmente determinados por pressões externas. São formações interativas, multimodalizadas e flexíveis de organização social e de produção de sentidos. Assim, um aspecto importante na análise do gênero é o fato de ele não ser nem estático nem puro (MARCUSCHI, 2006, p. 25).

Devido às constantes necessidades humanas de comunicação, os gêneros são criados, perpetuados ou esquecidos e, mesmo com toda a variedade de gêneros, segundo Bakhtin, sua sistematização é possível graças ao enunciado. Para melhor compreender o que seja gênero é imprescindível, então, buscar pela adequada interpretação do que Bakhtin chamou de enunciado.

Para ele, o enunciado foge à acepção tradicional que os formalistas cunharam para o termo, ou seja, um todo acabado que transmite uma idéia e se aproxima do nível oracional. Enunciado, para Bakhtin, compreende não somente os elementos lingüísticos da comunicação, mas também e, prioritariamente, o contexto que envolve as atividades linguageiras; seria “o ato de produção do discurso; unidade real da comunicação discursiva; o todo real da comunicação verbal” (BAKHTIN, 1997 [2003], p. 290, 261, 269). As fronteiras do enunciado coincidem, enquanto unidade da comunicação verbal, com a alternância dos sujeitos falantes. Logo, a forma “clássica” de comunicação pode ser entendida a partir do diálogo, visto que nele a posição do interlocutor marca o início e/ou fim do enunciado que compreende, por sua vez, um determinado sujeito do discurso.

Assim, podemos elencar as características do enunciado propostas por Bakhtin (2003, p. 278): I) é delimitado pela alternância dos sujeitos falantes; II) tem contato imediato com a realidade extraverbal e com enunciados outros, por isso, só tem existência em um determinado momento histórico; III) dispõe de plenitude semântica, isto é, o valor semântico do enunciado é o sentido e IV) suscita resposta, determinando a posição responsiva do outro.

Nesse viés, o intento desse pesquisador extrapola a materialidade lingüística para desvendar os entremeios da interação, que abrange diferentes esferas da atividade humana.

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Dessa forma, o enunciado, entidade concreta que se manifesta no discurso, reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma das esferas de comunicação, sendo determinado pelo conteúdo temático, o estilo verbal e a construção composicional.

Bakhtin, ao considerar a heterogeneidade dos gêneros do discurso, também propôs a distinção entre os gêneros primários e os gêneros secundários. Essa diferenciação é feita com base na complexidade existente entre eles. Os gêneros primários, menos complexos, aproximar-se-iam da oralidade - tendo em vista as especificidades dessa modalidade -, por manterem uma relação imediata com as situações nas quais são produzidos, e os secundários estariam mais ligados à escrita graças ao grau de complexidade e organização que essa modalidade apresenta - configurando-se como uma troca cultural mais complexa e relativamente mais evoluída -, e a capacidade de prover transformações nos primários. Nisso, não há o que discordar de Bakhtin: a escrita demanda maior complexidade em sua elaboração do que a oralidade, já que esta se configura, em um primeiro momento, como uma realização mais espontânea.

Em função do exposto acima, a proposta de análise de nossa pesquisa tomará os artigos opinativos, enquanto corpus, como gêneros, conforme considerações bakhtinianas sobre o termo8.

1.4.1. Gênero textual: o motivo de sua consideração

Em Bakhtin, muitas vezes, os sintagmas gênero textual e gênero discursivo são tomados como equivalentes. No entanto, a partir da leitura do texto de Rojo (2005), “Gêneros do discurso e gêneros textuais: questões teóricas e aplicadas”, cujos objetivos eram I) verificar se há alguma diferença do ponto de vista teórico para a utilização dos sintagmas gênero textual e gênero discursivo e II) do ponto de vista aplicado, perceber quais resultados práticos são advindos de uma e outra abordagem9, tivemos a convicção, ao ler as considerações concernentes ao objetivo I, de que nosso propósito de trabalho investigativo assemelha-se ao

8 Os artigos de opinião serão entendidos como gênero textual e evidenciaremos nossa opção em considerar a noção gênero textual em oposição a gênero discursivo.

9 Salientamos que esses objetivos de pesquisa foram perseguidos em um corpus proveniente do XV Encontro Nacional da ANPOLL, que contava com os principais trabalhos do LAEL/PUC – SP, cuja base recaia nas teorias de gênero de extração francófona. O levantamento foi realizado no ano de 2000 em uma produção declarada pelos pesquisadores na plataforma Lattes.

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que propõe a teoria de gêneros de textos. Para deixar mais claro nossa conduta quanto à opção que realizamos, faremos um breve levantamento das relações entre essas teorias.

Tanto a abordagem que considera a expressão gêneros de texto quanto a que considera gêneros do discurso retomavam, conforme Rojo (2005), as proposições de Bakhtin no que concernia às reflexões de gênero, fosse para legitimá-las ou para contrapô-las e, além disso, ambas descreviam os gêneros. A diferença crucial entre uma e outra residia no modo como essa descrição era feita. Na abordagem do texto, a tendência era trabalhar com a composição e a descrição da materialidade lingüística dos textos, por meio de noções advindas da Lingüística Textual. Já na abordagem do discurso, a tendência era descrever as situações de enunciação em seus aspectos sócio-históricos, a partir de “marcas lingüísticas”.

Sabendo, então, que a teoria de gêneros textuais e a teoria de gêneros discursivos, provenientes de releituras de Bakhtin, diferenciam-se graças ao modo como “olham para o objeto”, ou seja, enquanto uma procura descrever o que é da ordem do posto, do dado, a outra investe na descrição do que não é posto, do que é da ordem do contextual, resolvemos que a expressão gêneros textuais coaduna melhor com nossa proposta de investigação, visto nosso interesse maior no co-texto, na descrição e composição da materialidade lingüística, na tentativa de verificar de que maneira a argumentação se relaciona com a referenciação em textos argumentativos, que nesse caso, estarão representados pelos artigos de opinião.

É bom esclarecer também que tanto em uma quanto em outra posição, o gênero deve ser encarado a partir de sua dinamicidade e capacidade em se adequar às mais variadas culturas e semioses. Nesse sentido, como já dizia Marcuschi (2006, p.25), “quando ensinamos a operar com um gênero, ensinamos um modo de atuação sócio-discursiva numa cultura e não um simples modo de produção textual”. Isso necessariamente nos conduz à aceitação da historicidade, que legitima as práticas sociais e, ao mesmo tempo, aposta na interatividade como elemento capaz de prover transformações nas regularidades, graças à capacidade inerente do homem em se comunicar conforme suas necessidades. Ou seja, graças a essa maleabilidade, os gêneros são criados, recriam-se e, às vezes, perdem-se no continuum da vida.

Para fechar essa seção, nos reportamos à fala de Marcuschi (2006, p.30) quanto ao propósito das teorias de gêneros:

a teoria dos gêneros não serve tanto para a identificação de um gênero como tal e sim para a percepção de como o funcionamento da língua é dinâmico e embora sempre manifesto em textos, nunca deixa de se renovar nesse processo.

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Assim ao se estudar a língua em funcionamento mediante sua dinamicidade e transformações, nada mais pertinente que considerar os artigos de opinião, corpus de nosso trabalho, a partir do seu local de ocorrência. Por isso, passemos à noção de suporte textual.