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Capítulo 2: A referenciação

2.3 Conceito de anáfora

A primeira ocorrência do termo anáfora se deu na retórica clássica, indicando a repetição de uma expressão ou de um sintagma no início de uma frase, visando à sua ênfase. Hoje, para os estudos lingüísticos, a anáfora define-se como a retomada de um elemento ou partes textuais inteiras já apresentados anteriormente em um texto.

Conforme o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a palavra anáfora apresenta o seguinte significado etimológico: lat.tar. anafòra 'repetição de uma mesma palavra', do gr. anaphorá 'sentido de um pronome, ação de repetir', de ana- 'para trás' + phorá 'ação de levar, transportar', de phoréó'levar'. A idéia de que a anáfora consiste literalmente em “carregar para trás”, no sentido de recuperar um antecedente24, tem sido admitida pela literatura, mas com algumas ponderações.

Em uma concepção mais estreita do fenômeno, a noção de anáfora é tida somente como correferencial e o antecedente como explícito. Nesse caso, a anáfora consistiria na

23 A diferença entre endófora e exófora é que, quanto ao primeiro termo, os referentes são identificados dentro do próprio texto e, quanto ao segundo, os referentes são identificados fora do texto.

24 O termo antecedente, empregado ao longo de todo trabalho, apenas sinaliza o elemento ou partes do texto que já foram introduzidas em um primeiro momento. Falamos em partes do texto, porque como veremos mais adiante, nosso recorte para o trabalho com as anáforas se deu baseado em critérios, sendo um deles a necessidade de o antecedente estar lingüisticamente atualizado por meio de um termo ou segmentos textuais. Essa justificativa se deve em função de que, geralmente, na literatura sobre o assunto, a palavra antecedente é atrelada à idéia de correferencialidade. Com essa nota, queremos deixar claro que essa associação não foi priorizada por este estudo, pois o antecedente, às vezes, funciona como uma pista textual ou um desencadeador para, por exemplo, compor as anáforas associativas.

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remissão ao mesmo objeto-de-discurso já introduzido, ou seja, designaria o mesmo referente. Nessa linha, Rocha (2000, p. 234) propõe como definição de anáfora

o nome dado a uma relação ou processo no qual um termo anafórico em uma instância de discurso se vincula a um elemento identificável – chamado de antecedente – para que a interpretação semântica seja realizada com êxito. Estes elementos têm que estar presentes no discurso ou ser inferíveis do que foi dito.

Vejamos um exemplo:

(3) A política, dependendo de como é exercida, pode ser desde a mais nobre das artes até a mais vil das profissões. E quem determina a forma como ela deve ser exercida? (Texto 2 – Anexo II).

Nesse trecho, o pronome pessoal ela retoma o antecedente A política, concordando com este em gênero e número. Daí a noção de correferencialidade25 postulada por alguns

estudiosos como a recuperação co-textual de um referente já introduzido de modo explícito, cujos aspectos formais26 são equivalentes. Essa noção de correferencialidade é simplista e não suporta a maior parte das ocorrências anafóricas, tais como:

(4) Depois da viagem o carro foi para o conserto. As rodas estavam desalinhadas. Fica evidente que no exemplo (4), a expressão as rodas não mantém uma relação de correferência com a expressão o carro, pois não satisfaz nenhuma condição formal com este antecedente. Mas como, então, se estabelece a referência?

Neste caso, trata-se de uma referência em que sabemos da recuperação do antecedente, porque buscamos nas cadeias semânticas e cognitivas a resposta para nossa associação. No momento em que aparece o sintagma as rodas, empreendemos um processo de inferência iniciado pelo antecedente o carro. Isso é possível, porque há um cálculo de sentido com base em nossos conhecimentos lexicais, enciclopédicos e culturais. Logo, “o processo inferencial se desencadeia pela expressão anafórica, ou seja, é a aparição dessa expressão que atualiza a entidade para cuja interpretação se recorre a um sintagma nominal ou a uma proposição

25 Para Apothéloz (2003, p. 61), há correferência entre duas expressões sempre que elas designam no discurso o

mesmo referente.

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anterior” (ZAMPONI, 2003, p. 88). Desse modo, a anáfora por meio do anaforizante é que determina a inferência.

Este excerto (4) é considerado, pela literatura, um exemplo de anáfora associativa e/ou anáfora indireta27. Sobre esse fenômeno que acontece devido a um procedimento inferencial28 não há consenso, pois as abordagens se estendem desde as mais estreitas às mais amplas (conforme ZAMPONI, 2003).

Na concepção estreita, que pode ser vislumbrada em autores como Kleiber (1994, 1999 apud ZAMPONI, 2003) ou Charolles (1994, 1999 apud ZAMPONI, 2003), a noção de anáfora associativa se liga diretamente às restrições semânticas e formais. Já na concepção ampla do fenômeno, cujos expoentes, dentre outros, são Berrendonner, Apothelóz e Reichler- Béguelin, Cornish (apud ZAMPONI, 2003), a anáfora associativa é definida conforme duas propriedades. A primeira, é que a anáfora associativa possui dependência interpretativa em relação a um referente anterior ou posterior, e a segunda, é que não mantém relação de correferência com a expressão já introduzida ou designada anterior ou posteriormente29. Com isso, entendemos que a anáfora associativa apresenta seu referente como já conhecido, ou necessita de dados introduzidos no texto anteriormente para sua interpretação. Daí a anáfora associativa repousar em conhecimentos partilhados entre locutor e interlocutor.

Vejamos esta outra ocorrência:

(5) Paulo não sabe que ele passou no vestibular.

Neste exemplo, há uma ambigüidade que só se resolverá com a ajuda do contexto imediato da situação. Essa ambigüidade é gerada pelo pronome ele que pode ou não estar retomando Paulo; se estiver, o pronome assume a correferencialidade, mas caso não esteja, temos a introdução de um outro referente que não Paulo.

Já em 6, o fato de a anáfora retomar o mesmo nome-núcleo com determinantes diferentes (Um/Aquele) aponta também para a incompletude de identidade semântica entre o

27 Essa denominação é utilizada também por Marcuschi (2005).

28 “A operação inferencial é vista como um percurso do explícito para o implícito: um destinatário, após receber uma informação i, é capaz de formular outras (x) que se lhe tornam acessíveis a partir de i” (ZAMPONI, 2003, p. 87).

29 Eis um exemplo retirado do artigo de Apothelóz (2003, p. 77-78) quanto à liberação da informação depois do anafórico (efeito de catáfora), proporcionando interpretações retrospectivas: “Uma menina de oito anos foi retirada viva dos escombros de um prédio de três andares que desmoronou ontem, em Nápoles, deixando seis mortos e muitas pessoas desaparecidas. Os bombeiros conseguiram tirar Valentina Gianelli dos entulhos depois de duas horas de trabalho. A explosão foi provavelmente devida a um vazamento de gás”.

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anaforizado e o anaforizante, à medida que o reaparecimento de um referente ganha novas predicações, portanto, se atualiza no discurso. Vejamos:

(6) Um rapaz tentou se aproximar da menina. Mas, ao vê-la, parou estupefato. Aquele rapaz jamais poderia imaginar tamanha barbaridade cometida contra uma criança. Ao utilizar o artigo indefinido determinando o referente (rapaz), fica a idéia de que esta é a primeira vez que ele é introduzido no texto. Já em sua retomada por meio do pronome demonstrativo aquele, o que se pretende é apontar para o referente em um movimento dêitico, de forma a propor sua localização30. Mas não somente localizar, o que se tenta é atribuir a esse referente um novo status, uma nova predicação. Ou seja, não se trata mais de um rapaz que o leitor desconheça, mas um rapaz que tentou se aproximar de uma menina e parou estupefato ao vê-la. Logo, concluímos que a retomada do referente, por meio do mesmo nome-núcleo, não pode ser correferencial à primeira aparição referencial, pois o determinante (aquele) que alude a uma predicação (tentou se aproximar da menina. Mas, ao vê-la, parou estupefato) acrescenta traços distintivos à categoria rapaz. Por isso, concordamos com o que postula Brown e Yule (1983) quando afirmam que à medida que um texto se desenvolve, o referente vai sofrendo mudanças de estado de modo que sua descrição se modifica.

Por essas e muitas outras razões é que a correferencialidade, realizada por pronomes que não detêm uma referência virtual31, ou seja, não significam senão em um contexto específico, não pode ser a única forma de se trabalhar a noção de anáfora. Mesmo porque, “the successful reference depends on the hearer’s identifying, for the purposes of understanding the current linguistic message, the speaker’s intended referent, on the basis of the referring expression used32” (BROWN E YULE, 1983, p. 205).

Dessa forma, fica evidenciado que não são apenas os aspectos formais (sintáticos), como constatado pelos exemplos (4), (5) e (6), que devem ser levados em conta para a recuperação, criação ou recategorização de um referente. Com isso, chega-se a uma nova concepção de anáfora.

30 Falaremos mais detidamente da distinção entre anáfora e dêixis no item 2.4.1.

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A referência virtual diz respeito ao conjunto de condições que devem satisfazer um segmento da realidade, um tipo de referência possível dentre as disponíveis no eixo das possibilidades. Segundo Milner (2003, p. 86), a referência virtual seria o conjunto de condições que caracterizam uma unidade lexical. Já a referência real seria aquela em que o segmento da realidade é associado a uma seqüência, ou seja, uma unidade lexical em uso. 32 A referência bem sucedida depende do ouvinte para identificar as finalidades da mensagem lingüística pretendida pelo falante.

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Portanto, entenderemos as anáforas a partir de uma relação semântica e não sintática, ou seja, não somente os aspectos gramaticais serão considerados para indicar um processo de referenciação entre referente e forma remissiva. Assim, elegemos como fundamental para a definição de anáfora a alusão não somente a um termo antecedente posto anteriormente no texto, mas a porções desse mesmo texto. A condição de existência de uma anáfora, portanto, não exige obrigatoriamente um antecedente representado apenas por um termo, mas a remissão a alguma parte do co-texto, não só retomando, mas criando novos referentes. Por isso, as anáforas servem tanto à continuidade e manutenção referenciais ou temáticas33 quanto

à construção dos sentidos no texto, sendo fundamentais para o processo de referenciação.34

Logo, a anáfora para este estudo deve ser entendida como a relação entre duas unidades (A e B), em que a interpretação de B depende da existência co-textual ou recuperável, pelo texto, de A (antecedente). Isto é, o fundamental para a configuração da anáfora é a retomada ou a remissão a elementos anteriores do co-texto de modo a participar do cálculo do sentido veiculado pelas novas expressões introduzidas. Daí, acatarmos a proposta de Ducrot e Todorov (apud LE PESANT, 2002, p. 39) para a compreensão de anáfora como “Un segment de discurs est dit anaphorique lorsqu’il est nécessaire, pour lui donner une interprétation (même simplement littérale), de se reporter à um autre segment du même discours35”.