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A dança e a centralização das cortes.

Capítulo II Duplo espelho

2.4.1 A dança e a centralização das cortes.

Entender qual é o papel da dança no processo de construção do autocontrole dos indivíduos da civilização ocidental requer antes de tudo o conhecimento sobre a gênese do autocontrole daqueles que originaram o balé clássico conhecido hoje.

De acordo com Elias (2001), a pacificação das condutas na Idade Média é análoga ao processo de pacificação entre os feudos. As disposições dos senhores feudais para guerrear foi “diminuindo” na medida em que houve um processo de centralização do poder. O exercício da força, que era privilégio de um pequeno número de guerreiros rivais, foi gradualmente monopolizado e centralizado.

O processo de monopolização da violência física ocorre quando os guerreiros perdem suas batalhas para outro senhor que se encontra em processo de monopólio de poder por acúmulo de feudos. O senhor guerreiro que ganha as batalhas, não mais aniquila seu inimigo. Além de se apropriar do feudo perdedor, o senhor se apropria da existência social do guerreiro perdedor. Os guerreiros perdedores tornam-se parte do séqüito de seguidores do guerreiro vencedor. A função de guerreiro não é mais necessária dentro da corte do senhor guerreiro feudal vencedor da batalhas, ela e substituída pela função de cavalheiro de corte.

Na medida em que os velhos cavaleiros se transformam em novos cavalheiros pelo processo de pacificação das condutas, há uma maior preocupação, por parte dos cavalheiros, em observar as ações sociais dos outros membros da corte. A guerra agora é velada, e seu espaço geográfico se localiza dentro da corte. A corte se tornou o local no qual acontecem disputas de poder entre os antigos cavaleiros perdedores, que agora se encontram como cavalheiros cortesãos. A disputa não é mais por terras, mas é pela atenção do senhor feudal centralizador do poder. É preciso que cada ato destes novos cavalheiros cortesãos seja planejado mais atentamente e, em certa medida, estrategicamente planejado a fim de conquistar as graças do senhor feudal vencedor.

Os membros desta corte feudal em processo de centralização de poder encontram sua existência social em processo de mutação. São exigidas outras condutas

dentro desta nova figuração social. Com este novo cenário, a forma das representações também é convocada a mudar.

O processo de curialização dos guerreiros, ou seja, a transformação de uma aristocracia militar em nobreza de corte é um dos fenômenos engendrados por toda a parte pela existência das cortes reais, e em que toda parte parece estar na origem do processo civilizador, entendido como pacificação das condutas e o controle dos afetos. (ELIAS, 2001, p. 9).

Com exigências diversas das representações do cenário anterior, surgiram novos tipos de estruturas psíquicas que se apresentam sob a forma de vergonha e delicadeza. Dois sentimentos que estes primeiros protagonistas do processo civilizador, os velhos guerreiros transformados em cortesãos, precisam aprender a lidar e tirar proveito, caso queiram ganhar a guerra velada pela busca do poder e legitimação social localizada dentro do novo espaço de batalha, a corte. O ambiente da corte proporciona aos partícipes a expansão de suas interconexões sociais. O aumento do número de relações sociais que os novos cortesãos acumulam, colabora para um maior controle das condutas.

Elias (2001) esclarece que todo o aparelho que modela o indivíduo é mudado radicalmente. Modificam-se o modo de operação das exigências e proibições sociais que moldam o cortesão enquanto ser social. Modificam-se os papéis de representações sociais e, modificam-se as atuações em si. O medo de não ser considerado um membro reconhecido em sua corte, de não estar de acordo com as regras de comportamento social, que a todo o momento se constroem e reconstroem, desempenha um papel fundamental na vida desse cortesão que deixa de demonstrar poder através da força, principalmente física, para demonstrar poder através da habilidade de controlar os sentimentos.

Todavia, as mudanças de exigência de comportamento social não acontecem abruptamente. Já se encontram regras de comportamento social antes do processo de centralização das cortes medievais. De acordo com Elias (2001), na própria classe guerreira feudal aparecem figurações de estratos superiores que se distinguem cada vez mais. As residências desta classe são locus onde se concentram uma vida cultural. Pode-

se ouvir tanto poemas líricos dos trovadores, como podem exercitar as formas corteses de comportamento:

O padrão de “bom comportamento” na Idade Média, como todos os padrões depois estabelecidos, é representado por um conceito bem claro. Através dele, a classe alta secular da Idade Média, ou pelo menos alguns de seus principais grupos, deu expressão à sua auto- imagem, ao que em sua própria estimativa, tornava-a excepcional. O conceito que resumia a autoconsciência aristocrática e o comportamento socialmente aceitável apareceu em francês como courtoisie. (ELIAS, 1994, p. 76).

Elias (2001) elucida que na Idade Média o que era considerado “bom comportamento” possuía um conceito bem definido. Não que os padrões estabelecidos anteriormente não tivessem conceitos definidos, pelo contrário, cada vez mais o conceito se definia. Tanto nas cortes italianas, quanto nas inglesa e francesa, os conceitos de cortesia, courtesy e courtoise, respectivamente, estabelecem um determinado lugar na sociedade. Determinam uma regra de comportamento comum aos que freqüentam a corte. Estabelecendo e obedecendo estes padrões de cortesia que a classe alta da Idade Média define-se enquanto tal para si mesma e para as demais. Os círculos da alta classe que se dispunham a viver em torno dos grandes senhores feudais, ao estabelecer os termos de distinção aos seus códigos específicos de comportamento, estabeleciam também regras que os distinguiam dos não conhecedores de tais códigos de comportamento.

Além das estruturas psíquicas, modificam-se as estruturas das hexis corporais desses antigos cavaleiros que aos poucos deixam de atribuir valor à virilidade do corpo e passam a celebrar gestos contidos e premeditados, por conta da necessidade do controle dos afetos, tornado-se cavalheiros.

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Toda a gestualidade é elaborada para a representação do novo papel que o novo cavalheiro cortesão deve encenar. Neste novo papel a ser encenando, o mais importante a se considerar é a possível reação do espectador mais importante, que no período medieval, além do clero, é o senhor feudal que centraliza o poder.

Controlar os gestos assim como os sentimentos, passa a ser a arma mais importante para ganhar atenção do soberano nesse novo campo de batalha. Esses novos controles e medos constituem a dinâmica do processo civilizador. O corpo, que antes do processo de centralização das cortes se preocupava muito mais em ser viril, no caso dos cavaleiros, ou que possuíam poucas preocupações de atuações sociais, no caso das damas de corte, passa por um processo contínuo de transformações. Torna-se necessário ao cortesão ter um conhecimento mais profundo sobre o comportamento social aceito. Controlar as expressões corporais, saber até onde ir dentro de um determinado espaço recheado de regras de hierarquia social torna-se fundamental nesta figuração social em transição.

A necessidade que os participantes da alta classe da Idade Média têm em distinguir seu valor humano em relação aos estratos dominados se reflete na necessidade em criar regras que possibilitam evidenciar os ideais humanamente “superiores” que pretendem de si mesmos.

O processo de centralização das cortes medievais que obriga os cortesãos a disputarem uma luta “civilizada” pelo poder, destitui a força física e estabelece como

arma principal o controle dos sentimentos, dos gestos e atitudes corporais. Ao inaugurar uma nova inscrição corporal, institui-se um novo símbolo de distinção social.