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Capítulo II Duplo espelho

2.3.3 Balé à Francesa

É necessário que se compreenda o processo evolutivo coreográfico das cortes italianas da renascença do Quattrocento, pois é nesta figuração social que se encontra a base dos exercícios cotidianos de controle dos habitus e das hexis, portanto se encontra o controle dos soberanos em relação à sua corte. Como observa Bourcier:

Um fato importante: é na Itália, nesta época, que se inicia a formação de uma sociedade cortesã, ainda não enrijecida pela etiqueta. Em torno do príncipe, reune-se gente que tem em comum, não tanto o gosto pela cavalaria, como os franceses, quanto o da virtu, o culto do indivíduo e sua exaltação por meios diretos ou paralelos, uma queda refinada pela elegância intelectual e pelas artes.(BOURCIER, 2001, p. 64).

Os cortesãos formulam, dentro do campo da dança, conhecimentos cada vez mais estratificantes. Não é mais suficiente saber a métrica, mas o bailarino cortesão precisa saber a composição coreográfica dos passos, bem como saber dentro da coreografia as posições hierarquicamente marcadas dentro de uma lógica de representação que deve ser representada em um determinado plano por um determinado foco de atuação. A pergunta do bailarino agora também é: Estou dançando para quem? Aonde se localiza meu “público” principal? Ou melhor, aonde está o Rei?

As festas oferecidas pelos soberanos ou membros da corte de muita inflência, não têm apenas o caráter de entretenimento. Os encontros sociais são calculados estratégicamente por parte daquele que o oferecia para demonstrar simbolicamente seu poder. As festividades que propiciam tais encontros entre vários estratos sociais das cortes, nada têm de fúteis, pelo contrário, cada ocasião festiva possue um significado de dominação política em si. E são nelas que se consolidam grupos cooperativos e rivais politicamente.

Saber da maioria das regras sociais, não é apenas um capricho dentro desta figuração social, mas essencial à sobrevivência do cortesão. Saber das novas regras de dança pode ser considerado como um trunfo a mais do cortesão em seu empenho de agradar e se relacionar socialmente dentro da corte, principalmente se este cortesão não

se encontra nos mais altos postos de dominação. O empenho em se concentrar nas novas regras de dança reflete o empenho em conseguir novos aliados políticos para galgar um lugar mais elevado nesta hierarquia social:

O organizador de espetáculos de dança da corte Francesa, Beaujoyex, que segundo Bourcier (2001), tem seu nome verdadeiro como Baldassarino de Belgioso, original do Piemonte, é um bom exemplo. Chega na corte francesa, trazido pelo Marechal de Brisac, como violinista e constrói um carreira artísitica na corte considerada como mediocre. Em 1567 passa a ser criado de quarto de Catarina de Medici. Beaujoyex, frequenta os círculos intelectuais da época dentro da academia de Baïf. Mas em 1581, seu status de artista considerado como mediocre, se transforma quando da ocasião do casamento do duque de Joyeuse - que goza de grande intimidade com o Rei - com Marguerite Lorraine-Vaudémont, a a irmã da Rainha Luísa. A rainha se sente desejosa de compor um balé para a ocasião, todavia os artistas mais reconhecidos da corte francesa estavam investindo no desejo do Rei obter mascaradas e lides para comemorar o festejo. A solução da rainha é se contentar em encomendar seu balé com Beaujoyex que por sua vez, tem somente como empregar colaboradores considerados tão medíocres quanto ele, ou mais. Beaujoyex não inova no uso do tema, como de costume se remete aos tema de Homero, concebe então, os encantamentos de Circe se utilizando das regras estabelecidas para balés – ações sempre cantadas, dançadas e faladas. Sua inovação está na percepção de que a lógica do balé de corte deveria ser de um “teatro total”. Representar através do balé a representação cotidiana da corte francesa, onde todos as ações de todos os cortesãos voltam-se a fim de obter a atenção do Rei.

A dança geométrica foi utilizada para o final da obra. Em seus comentários no libreto, Beaujoyeux indica-nos uma “entrée de quinze figuras, dispostas de maneira tal que, no final do trecho, todas se voltassem sempre para o rei; diante de sua Majestade, dançaram o grande balé com quarenta trechos ou figuras geométricas... ora em quadrado... ora em roda e de muitas e diversas maneiras, e logo em triangulo acompanhado por algum outro pequeno quadrado e outras pequenas figuras. No meio deste balé, constrói-se uma cadeia composta de quatro entrelaçamentos diferentes”. (BOURCIER, 2001, p. 89)

Assim como outros balés precedentes, o balé cômico da Rainha, de Beaujoyeux, é um balé de propaganda política, muito utilizado pelos soberanos das cortes em um período histórico em que a disputa entre os cortesãos de maior destaque para assumir o trono é mais intensa. Um recurso artístico, utilizado para legitimar o poder do soberano, onde ele mesmo pode participar como o personagem que deve ser aclamado por todos os outros personagens, representado também pelos próprios súditos cortesãos, certamente se fixa como um gênero aclamado por todas as cortes.

Prólogo em homenagem ao rei, entrées em diversos tons, que se inscrevem numa ação coordenada psicologicamente, uso do canto e da dança misturados; a poesia declamada, um outro elemento, logo será transformada em recitativa, mas o uso dos “ versinhos” dedicados aos personagens sobreviverá. (BOURCIER, 2001, p. 88).

O italiano, Beaujoyeux, apesar de ter uma carreira mediana quase que por toda sua vida, acaba por triunfar na corte francesa, sua forma de explorar o balé passa a ser utilizada por todas as cortes na Europa, deixando o nome da corte Francesa em destaque perante as outras. A despeito da relação entre a corte francesa e os artistas italianos ainda ser favorável aos últimos, o mestre de dança, consegue através de sua produção artística fazer a manutenção de sua colocação dentro da figuração da corte, apesar de vir a falecer seis anos depois de seu mais considerado intento. O Ballet comique de la

reine marca bem esta fusão: o autor italiano, o gênero, sua técnica de representação e

sua ação coreográfica são franceses. (BOURCIER, 2001, p. 80).

Entretanto, Bourcier relata que a segunda metade do século XVI comporta uma sucessão de tensões políticas e de guerras. Até Luís XIII, o balé é utilizado pela sucessão de soberanos, como instrumento de propaganda de seu domínio político:

Com o balé, Luis XIII anuncia sua vontade de intervir, de assumir efetivamente o poder. ... O tema é duplo: libertação do herói e grandeza do rei. (...) Há um duplo significado político no balé; o próprio libreto dá a chave: demônio do fogo, o rei quer “purgar seus súditos de qualquer desobediência”. Na cena final, o rei estabelece pela primeira vez, prefiguração do que será gradulamente elaborado e completado por Luís XIV, uma etiqueta de distanciamento. (BOURCIER, 2001, p. 97).

Até a morte de Luis XIII as características principais da dança de corte à francesa se mantêm as mesmas. Um agregado de conhecimentos específicos tais como o uso da métrica, conhecimentos espaciais, entre outros, é exercitado a favor do desejo do Rei quando este precisa deixar seu recado.