• Nenhum resultado encontrado

A DEFICIÊNCIA ENQUANTO DISCURSO: Uma análise crítica.

A palavra problema pode ser uma insidiosa petição de princípio.

Jorge Luis Borges

1 – O que se entende como discurso:

Começo esse capítulo retomando a palavra deficiência e lembrando que a partir desse momento essa pesquisa irá procurar focar-se no discurso que sustenta a deficiência como uma verdade.

Ao falar sobre o discurso é com Michel Foucault que posso afirmar que “nem a literatura, nem a política, nem tão pouco a filosofia e as ciências articulavam o campo do discurso nos séculos XVII ou XVIII como o articularam no século XIX” (2009a, p. 25). Os discursos dos séculos XVII e XVIII eram “imperativos”, enquanto que no século XIX, o discurso passará a ser, cada vez mais, persuasivo. Entretanto é o discurso clínico do século XIX quem levará a deficiência, a ser entendida pela sociedade do século XX, como uma desgraça humana, prova da degenerescência do homem, da contaminação do sangue, da invalidez e da monstruosidade hereditária.

É pelo discurso clínico que a deficiência deixará de ser fruto da imaginação, para passar a ser uma representação social. Uma categoria de seres humanos que possuem um déficit. Essa forma de pensar a deficiência se dissemina de modo rápido no século XX, porque as experiências médicas vão afirmar que as raízes da deficiência humana estão calcadas na decadência da raça.

Nesse cenário a monstruosidade humana é o modo como a sociedade vai chamar as pessoas com alguma diferença anatômica, fisiológica ou comportamental. No século XIX, as monstruosidades humanas ou a deficiência, numa leitura mais contemporânea dos fatos, é a imagem daquilo que a medicina vai considerar uma prova da decadência social.

Logo, intuo que é o discurso, bem elaborado, pensado, sob a ótica de um poder que penetra, pautado nos saberes e poderes médicos, quem vai convencer a sociedade desde o século XIX, que a deficiência é uma condição humana monstruosa, um sinal de degenerescência.

Theodore Zeldin, diz que “a mente é um refúgio de idéias que datam de muitos séculos diferentes, tal como as células do corpo têm idades diferentes, renovando-se ou enfraquecendo em ritmos variáveis” (2009, p. 07). É fazendo uso do pensamento de Zeldin que vejo a ciência médica, e seu discurso clínico envolvido em uma trama tênue, tecida pelos princípios da ciência e as crendices do passado dos monstros. Embora científico, o discurso clínico não deixa de fazer uso da história sobre os monstros.

Em relação ao que se entende como discurso, o Pe. Fernando Massa, em sua Grammatica Analytica da Língua Portugueza, publicada no final do século XIX, mesmo tempo em que o discurso clínico começa a ganhar notoriedade no meio científico, diz que cada palavra em si, em sua etimologia, já se concebe como um discurso primeiro. Padre Massa me faz pensar que tudo o que já foi delineado sobre a deficiência até o presente momento, do monstro da antiguidade aos Freaks, forma um aglutinamento de superstições. Na palavra deficiência, há um discurso oculto sobre tudo aquilo que, na história da humanidade, foi considerado uma forma estranha de vida.

Não é a toa que muitos dos desenhos, nos quais algumas personagens são apresentadas como diferentes, estranhas, indesejadas, a anatomia disforme, considerada pela clínica como vestígio da monstruosidade acompanha sua imagem. Um bom exemplo dessa imagem disforme, aparentemente inocente, do ser indesejado que traz consigo os princípios daquilo que a clínica definiu como anormal, pode ser percebido em algumas produções da Disney. Talvez essas

produções, que datam da década de 30 e 40 do século XX, tenham seguido a ordem que se instituiu ao final do século XIX. Segundo Courtine, “nenhum monstro poderia existir sem ser associado a uma imagem do disforme” (2010):

Ao olhar para os desenhos de animação acima, pode se dizer que sempre houve, uma etimologia da palavra e uma etimologia da imagem, para que o conceito de anormal fosse apresentado a sociedade. Como disse Courtine, “o aparecimento de um monstro é, no universo dos fait divers da época, o evento que traz consigo as ilustrações” (2010, p. 496). Desse modo o anormal é apresentado, tanto para as crianças como para os adultos, como sendo um monstro, um ser disforme.

Para Padre. Massa, “a palavra etymologia traz em sua origem, oriunda de duas palavras gregas, o significado de discurso verdadeiro” (1888, p. 01). Relembrando a etimologia da palavra deficiência que é deficere, já apresentada no primeiro capítulo, cujo significado é defeito; pode-se entender que a palavra Figura I – Dunga e Dumbo, personagens da Walter Disney, com deficiência ou deformidade anatômica.

Figura 1: As imagens foram tiradas dos filmes Branca de Neve e os sete anões (1937) e Dumbo (1941).

deficiência reaviva-se a cada instante, na medida em que é inserida em “novos” discursos, nos quais o conceito de defeito é retomado. O que Walter Disney, faz é transformar o discurso do defeito em um desenho que traz consigo o traço da deformidade. As monstruosidades, não tão humanas, se reavivam nas imagens dos desenhos infantis.

Nessas produções e em outras formas de se apresentar, o discurso clínico desde o inicio do século XX, impõe regras a vida humana e institucionaliza modelos de se viver em sociedade. Com seu discurso normalizador; dita uma norma, e implicitamente traz como idéia fundamental, uma ação terapêutica para normalizar todo aquele que fugir a sua regra. Por meio dessa ditadura estética e comportamental, aqueles que nela não se enquadrarem serão submetidos a uma terapia curativa.

A terapia como técnica normalizadora, tem poder sobre a sociedade, porque politicamente o Estado começa se organizar através dos saberes médicos. No inicio do século XX, a “psiquiatria propõe uma terapia para instituir uma espécie de normalidade mental” (FOUCAULT, 2006), a escola propõe uma ortologia, para normalizar as línguas, e a pedagogia propõe disciplinas para normalizar o comportamento.

Não só isso, desde o final do século XIX, como disse Michel Foucault, “as pessoas passam a confiar nos saberes clínicos, deixando a cargo dos médicos a definição de qual vida teria mais valor, se a dos ricos e poderosos ou a dos pobres e indigentes” (1980, p. 44). Por essa premissa, também fica a cargo dos saberes e poderes clínicos, que forma de vida pode viver, e onde as pessoas podem viver. Entretanto, para os considerados anormais, a liberdade de escolha, a autonomia e a vida em sociedade passa a ser algo negado.

Nesse contexto, no qual a vida é administrada pela clínica, metaforicamente, os médicos passam a ser o grande juiz da sociedade. São os médicos que determinarão, por meio de seu discurso, quem pode e quem deve viver ou morrer, quem pode e quem deve circular livremente nos espaços das cidades ou ficar recluso nos espaços clínico-hospitalares.

A clínica representa, então, a ciência que funcionará como “um divisor de águas” na sociedade. Os laudos médicos, uma espécie de “identidade” da saúde e da doença humana, são certificados que definem a vida social. Isso significa que, se dado um laudo de loucura, o louco teria sua liberdade e circulação nos espaços sociais proibidos, sendo levados para clínicas médicas. No entanto, as clínicas médicas eram locais afastados na qual os loucos eram observados, e por meio dessa observação eram submetidos a uma terapia antiloucura.

A medicina e seus saberes que instituíam a terapia como meio de normalização, tinha como base, como retrata Cohen (1992), a teoria da evolução das Espécies de Darwin. Não somente isso, a clinica começa a se despontar como uma ciência, porque seguindo uma tendência do final do século XIX, se afirma como uma ciência positiva. É no pensamento de Augusto Comte (2002) que a clínica vai fundamentar suas experimentações. Comte, em seu Discurso preliminar sobre o Espírito Positivo, vai teorizar a história do pensamento social. Comte procura analisar a evolução do pensamento da sociedade em três fases:

TEOLÓGICO