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Síntese do Jogo Enunciativo, modo como o discurso penetra e convence e se esquematiza como aparelho.

Ao trazer a proposta de pensar o discurso como aparelho, entendo que essa analogia é uma das formas de exemplificar o poder que o discurso, quando bem elaborado, possui. Entendo que, se os aparelhos modificam a vida dos homens, o discurso possui o poder de modificar a existência da vida de seus referentes. É pelo discurso da saúde e da doença, do dever e do poder que os preconceitos brotam, e a sociedade se divide em indeficientes e eficientes.

A auto-afirmação “Eu tenho deficiência”, como apresentado no fluxograma I ainda a pouco, é uma verdade que nasce pelo discurso. Portanto, a história da “deficiência” é marcada, perpassada por essa verdade discursiva. O discurso sobre a deficiência funciona então, como uma segunda pele que cola no sujeito penetrando sua existência e projetando sua imagem na sociedade. Essa segunda pele é uma produção do discurso enquanto aparelho porque não pertence ao indivíduo em si, mas a ele é fixado sem que dele possa fugir. Sendo que, assim como os aparelhos se modernizam, se tornam mais sofisticados, o discurso enquanto aparelho também passa pelo mesmo processo de modernização e sofisticação e por isso se tornam sempre atualizados.

Na contemporaneidade, o discurso da diferença, como um discurso mais sofisticado e modernizado, tenta substituir o discurso da deficiência, muito embora, isso não modifique muita coisa porque como diz Woodward, “a diferença é sustentada pela exclusão” (2009, p. 09).

Não é de se espantar que, ao procurar saber o que algumas pessoas pensam sobre o que é a deficiência ou quem são as pessoas com deficiência; as marcas da exclusão venham à tona logo de início em seus discursos. Ao analisar alguns fragmentos de redações coletadas de junho de 2010 a junho de 2011, em uma universidade na cidade de São Paulo, entre alunos do curso de pedagogia segunda licenciatura e alunos do curso de especialização em educação Lato Sensu. Foi possível detectar que a exclusão se manifesta de duas formas, ou pelas palavras usadas para definirem as pessoas como defeituosas, ou ela aparece como exemplo de uma prática social, mostrando que na medida em que a sociedade não reconhece a autonomia do outro ela se torna portadora de uma deficiência. Ainda que vendo a deficiência na pessoa ou fora dela, a deficiência

como produto do discurso enquanto aparelho, ainda estará presente na pessoa enquanto sociedade. E mesmo que, os discursos apresentados por meio das redações, também apresentem uma certa dúvida conceitual, que mistura os valores secularmente instituídos da clínica com os valores sócio-antropológicos, ainda, o que fica claro, são as marcas da exclusão. Para fundamentar o que acabo de dizer, trago dois fragmentos de duas das 500 redações elaboradas, escolhidas aleatoriamente. Por meio desses dois fragmentos pode-se perceber que nos discursos de P1 e P2 (Ver anexo A) a deficiência é entendida da seguinte forma:

A deficiência é quando alguém possui algum tipo de problema, limitação mental, intelectual, físico, etc. que o diferencia de certa forma das demais pessoas consideradas normais. Pra mim, deficiência é a incapacidade do ser humano em aceitar as diferenças, é o preconceito, a intolerância, a falta de respeito com o próximo. Infelizmente a sociedade não consegue entender isso, que problemas físicos etc, não fazem uma pessoa ser melhor que a outra. (Grifos meus).

A deficiência é quando temos algum tipo de falha física, mental ou genética. Existem pessoas que nasceram com algum tipo de deficiência como deficiência visual, auditiva, mental, etc. e existem pessoas que com o decorrer da vida podem sofrer um acidente ou adquirir alguma doença muito grave, que pode deixar com seqüela, algum tipo de deficiência. Eu acredito que deficientes são aquelas pessoas preconceituosas, que julgam os seus semelhantes pela cor, pela opção sexual, pelo seu estatuo ou por sua condição física ou mental. Deficiência nada mais é como algum tipo de dificuldade que algumas pessoas encontram para algumas coisas. (Grifos Meus)

Ainda que a deficiência seja vista, pelos autores das redações em um segundo momento, como algo externo ao indivíduo, ela continua representando, se não uma falha no corpo do ser humano, uma falha, um defeito, no modo da sociedade agir. A deficiência permanece sendo considerada uma palavra que designa algo de valor negativo. Essa negatividade pode ser um produto do

discurso enquanto aparelho que ao produzir significado faz dele uma marca permanente.

Porém, algo chama a atenção nos discursos de P1 e P2. Vislumbra-se uma confusão conceitual, onde a duvida sobre a resposta do que é a deficiência, mistura uma visão herdada dos saberes clínicos com uma visão sócio- antropológica. Há uma certa confusão na forma como, em seus discursos P1 e P2 conceituam a deficiência. Ao mesmo tempo em que a deficiência é uma marca do corpo, ela é uma falha da sociedade. A confusão entre o que é a deficiência, que ora ofusca entre ser concebida como uma marca biológica, e em alguns momentos como uma incapacidade de aceitação da diferença do outro, pode representar uma triste realidade: As pessoas, ainda não tratam o tema, com a seriedade que deveriam, desconhecem sua origem e o encaram como uma técnica pedagógica, mesmo porque os sujeitos que elaboraram as redações são profissionais da educação e atuam em várias cidades do Estado de São Paulo, entre grande São Paulo e Interior. Isso revela marcas de uma incerteza sobre o que de fato é a deficiência. E por isso, pode-se entender que, embora algumas teorias tenham surgido sobre o assunto, ainda assim elas se misturam com as teorias apresentadas pelo discurso clínico.

A analise trazida acima pode ser considerada cartesiana, na qual se fecha uma dedução de que alguns “professores”, os que participaram da pesquisa, considerando as duas redações que os representam, não sabe o significado do que é a deficiência embora, cheios de verdades a expliquem em seus discursos. Porém há uma controvérsia, uma outra forma de analisar esses discursos. Essa outra forma de analisar é por meio da dúvida apresentada em relação ao conceito do que é a deficiência. Porque os discursos não revelam uma certeza sobre o que de fato é a deficiência, nos discursos de P1 e P2 a definição oscila. Ou seja, embora se tente explicar o que se entende por deficiência, o que se verifica é que as pessoas estão entre a definição dada pela clínica e seu modelo terapêutico de esquadro, e pela explicação dada pelos estudos sócio-antropológicos, que procura avaliar as pessoas pelo seu aspecto cultural, observando como o indivíduo se relaciona na e com a sociedade.

Não vejo essa dúvida como um aspecto negativo, porque indica que em alguns discursos, a reprodução de um único modelo de verdade não se faz mais presente. As certezas clínicas começam a se desconstruírem, dando a possibilidade de uma nova compreensão do que é a deficiência. E embora permaneçam alguns restos dos valores do discurso clínico, de seus saberes e afirmações, ainda assim ela começa a se fragmentar.

Ao analisar a dúvida como um aspecto positivo, concordo com Vilém Flusser ao dizer que “a dúvida é um estado de espírito polivalente, que pode significar o fim de uma fé e o inicio de outra [...] a dúvida pode ser concebida como uma procura de uma certeza que começa por destruir a certeza que era considerada autêntica” (2011, p. 21-22). Melhor do que a reprodução de um modelo, em um período em que alguns paradigmas são quebrados, é a dúvida que se apresenta como elemento fundante do processo reflexivo.

Ainda assim, terei que comentar, por meio da contradição, os discursos de P1 e P2, porque nessa confusão sobre o conceito da deficiência, sobre a dúvida que aparece como um princípio de ruptura com os saberes secularmente instituídos pela clínica, aparecem, em primeiro momento nas redações, os valores negativos ensinados pela medicina, como meio para se tentar explicar o que é a deficiência. Se a deficiência continua sendo apresentada em alguns discursos como um valor negativo, não se pode negar que a deficiência é aquilo que pensam que ela é, ela é aquilo que o discurso, enquanto aparelho, faz ela ser. Portanto, a verdade da “deficiência”, no discurso contemporâneo, por mais que se fale sobre igualdade entre as diferenças; e desse discurso participem ativamente os meios de circulação, ainda assim, como fala Tomaz Tadeu da Silva, não se eximem as marcas da presença do poder, “incluir/excluir (estes pertencem aqueles não); (nós e eles); classificar (bons e maus; desenvolvidos e primitivos; racionais e irracionais); normalizar (nós somos normais; eles são anormais)” (2009a, p. 81-82). O discurso como aparelho produz inclusão e exclusão. É um aparelho que desenvolve um sistema social, e acaba pendendo, mesmo que na dúvida, para um dos lados.

Nesse cenário, pode-se entender que embora exista uma dúvida, e que nela há dois conceitos, em primeiro momento as respostas sobre o conceito de deficiência revela que o indivíduo é deficiente na medida em que apresenta algumas características consideradas problemáticas.

A exemplo desse sistema que inclui e exclui, trago abaixo, um gráfico que apresenta o resultado de uma análise elaborada em 50 redações, escolhidas aleatoriamente, das 500 coletadas. O gráfico tenta mostrar que cada palavra representa uma síntese do que se entende por deficiência nos discursos de 50 profissionais da educação. Em nível de porcentagem pode-se perceber que algumas palavras e termos são mais freqüentes ao se explicar o conceito de deficiência, sendo esses termos e palavras, integrantes de um discurso:

90% 60% 58% 48% 48% 40% 38% 36% 34% 32% 22% 22% 20% 18% 14% Marca Diferença Limitação Comprometimento físico ou mental Imperfeição A falta não funciona direito Anormal problema Dificuldade A deficiência é uma doença Assistencialismo Patologia Os deficientes são pessoas especiais Não aprendem