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A HISTÓRIA DA DEFICIÊNCIA: Palavra, Narrativa e Mito

Todas as coisas do mundo

não cabem numa idéia.

Mas tudo cabe numa palavra, nesta palavra tudo.

Arnaldo Antunes

1 – A deficiência, uma questão de palavra:

A deficiência, a priori, é uma questão de palavra. ! ? ...

A palavra como elemento fundante de nosso intelecto foi explorada por vários estudiosos ao longo da história. Logo,uma breve explanação sobre o sentido da palavra deficiência pode nos auxiliar a entender o seu caráter conceitual.

Michel Foucault em As Palavras e as coisas postula que “o mundo é um entrelaçamento de marcas e palavras” (2007, p. 109). Michel Foucault não se refere a uma palavra específica, não se refere à palavra deficiência em sua obra. Foucault coloca a “palavra” como objeto de seu estudo e a entende como elemento fundante do universo sígnico da linguagem.

É por meio do pensamento de Foucault sobre o valor da “palavra” que acredito que a palavra deficiência possa funcionar, em alguns momentos da história, como uma marca. Uma marca que acaba agindo, em muitos momentos, como uma paranóia linguística. Márcia Tiburi entende paranóia como sendo, em sentido conceitual, “uma obediência ou, uma servidão a uma forma de pensar que não admite questionamento” (2011a, p.22).

Logo, a palavra deficiência, posta em circulação, pela grande maioria das pessoas age como uma verdade única e absoluta, inquestionável sobre a

condição humana. Essa paranóia simbólica, eu intuo, gera uma espécie de imperativo social, “ele é uma pessoa com deficiência”.

Entre imperativos e paranóia linguística, ainda pode-se pensar na palavra como algo ensimesmado, que representa a si mesma no universo sígnico. Foucault diz que a palavra está presa em sua rede e tecida na trama mesma que se desenvolve, não é efeito exterior ao pensamento mas o próprio pensamento [...] palavra é linguagem (2007). Portanto, se palavra é linguagem e linguagem é pensamento, o significado de determinada palavra, é a expressão daquilo que se pensa sobre determinado objeto. Por meio dessa forma de conceber a palavra, entendo-a como uma espécie de epistemologia do pensamento. Ou seja, é por meio da palavra e somente ela, que o pensamento se materializa, tornando-se epistemológico.

Vilém Flusser em seu ensaio sobre a linguagem Língua e Realidade diz que “a matéria prima do pensamento, consiste, em sua maioria, de palavras [...], a realidade também, e palavras em in statu nascendi” (2007, p. 40). Concordando com Flusser acredito que a palavra é o meio pelo qual a realidade se representa no universo cultural. Assim sendo, a palavra deficiência representa uma realidade sígnica, uma forma de se pensar culturalmente o outro. Logo, a palavra deficiência é o modo como o outro foi significado lingüisticamente; é o modo como, em determinada língua, o outro será pensado. Michel Foucault, diz que “todas as linguagens do mundo formam em conjunto, a imagem da verdade” (2007, p. 50). Nesse cenário, no qual a imagem da verdade se apresenta como elemento fundante do pensamento humano, linguagem-palavra-pensamento-marca; podem ser consideradas sinônimas ou palavras entrelaçadas, tecidas, tramadas; e enquanto imagem da verdade pode ser uma espécie de vestígio de uma paranóia social. No entanto entende-se como paranóia um sistema fechado de pensamento, no qual se anula a dúvida a reflexão sobre determinado assunto. Em um sistema fechado as palavras circulam para sempre representarem a mesma coisa. Essa verdade inquestionável se fixa como modelo a ser seguido e atua como um dispositivo regulador. A paranóia pode ser comparada, segundo minha

analise, ao senso comum das coisas, porém um senso comum determinista que define e impõe.

Flusser diz que “a língua é a essência da sociedade [...] que a sociedade é a base da realidade, e que o homem é real somente como membro da sociedade” (2007, p. 50). Partindo desse pensamento de Flusser, pode-se entender que na realidade social dos homens as palavras possuem o poder de hierarquizar, e ao hierarquizarem, marcam por meio das palavras qualquer existência. Dentro dessa hierarquia proporcionada pela palavra, alguns homens participam da sociedade sendo pensados como pessoas com deficiência. E embora, alguns não se autodeclarem como pessoa com deficiência, ainda assim são significados socialmente dessa forma. Essa significação que se impõe a uma existência, com toda força, com todo peso, ignorando como o outro se autodefine, se autodeclara revela uma certa, como disse Tiburi, “visão especista, característica da cultura humana” (2011a, p.21). Por meio dessa “visão especista”, autocentrada, ensimesmada, a palavra deficiência funciona como uma força que de fora para dentro acaba penetrando em algumas pessoas. Essa forma de entender a palavra deficiência, como algo que de fora para dentro penetra algumas pessoas, faz dela um dos elementos do biopoder, que de modo exoendógeno se apropria de algumas pessoas pelo convencimento.

A exoendogenia se configura por um processo, pelo qual, estímulos externos são apreendidos e interiorizados, algo que parte do meio social “exo” e é internalizado tornando-se endógeno à pessoa. A exoendogenia pode ser considerado o modo como o biopoder atua.

Sob a luz do pensamento de Márcia Tiburi, entendo biopoder como “uma decisão que de fora do corpo, agindo sobre ele, eviscera-lhe a autonomia própria e constitutiva num gesto sempre simbólico ou fisicamente violento” (2011a, p.11). Portanto, o que se percebe é que, por meio da hierarquia que se estabelece no universo significo, ao estigmatizar pessoas como “pessoa com deficiência”, a pessoa acaba sendo penetrada pela palavra que a significa, e depois de fixada em sua existência, funciona sobre o sujeito feito uma segunda pele, que anula a primeira. Fazendo com que ele pertença a uma categoria.

Logo, ao dizer que a deficiência é uma questão de palavra, trago, nessa pesquisa a “palavra” como uma categoria1 da deficiência. Essa forma de pensar a deficiência surge pelo fato de eu reconhecer que as palavras possuem a potência de marcar seus referentes por meio da produção de sentido, eviscerá-los. Muito se falou da pessoa com deficiência, e muito se fala na contemporaneidade sobre a pessoa com deficiência, embora não se perceba que a “pessoa com deficiência” não existe, é apenas uma questão de palavra. A pessoa com deficiência é uma projeção humana, uma significação, uma simbologia social. Em síntese, a deficiência é, a priori, uma palavra que encontrou seu referente. Isso significa que ao dizer que uma pessoa é deficiente, na verdade o que se deveria pensar sobre ela é que a pessoa, na verdade, foi significada por meio da palavra deficiência. Entendendo que as pessoas são significadas, ou seja, elas são marcadas por determinados signos e símbolos, entende-se que o “conhecimento” consiste em significação, simbologia, conceito, nomeação e proposição. E embora não seja explicito a todos, o conhecimento é algo cultural. Michel Foucault já dizia que “conhecimento e linguagem estão estreitamente entrecruzados [...] e que a proposição é para a linguagem o que a representação é para o pensamento” (2007, p. 120-128). Quando proponho que um alguém, lingüisticamente é uma pessoa com deficiência, é pela palavra que o significa, que essa pessoa será conhecida. Dentro dessa trama “propositológica”, o conhecimento nada mais é do que aquilo que simbolicamente se determina se propõe sobre as coisas. O conhecer a pessoa como uma pessoa com deficiência, é resgatar uma proposição sobre ela. Proposição, que embora usada, muitas vezes não se sabe quem a propôs, quais foram às intenções dessa proposição, e por que razão se propôs dessa forma.

Ao falar da palavra deficiência como fruto de uma proposição lingüística, ou como uma projeção humana; quero apresentar um pouco da história de Helen Keller. Pretendo, com isso, ilustrar brevemente, porque entendo a deficiência

1 Flusser diz que “os filósofos definem categoria como as formas básicas do ser e do

como uma projeção humana. Helen Keller era filósofa2 e em uma de suas palestras, direcionada a uma turma de moças de uma faculdade situada em uma região fabril da Europa, recomendou que as moças estudassem economia industrial e se atentassem a vida que se enxameava em suas próprias portas; a vida dos trabalhadores das fabricas e a vida dos mineiros. A recomendação de Helen Keller, como conta em seu livro intitulado A História da Minha Vida, foi dada em decorrência de uma jovem estudante, que durante a palestra de Helen Keller, pediu a ela para ser iniciada em serviços filantrópicos voltados para os sem visão (2008, p. 432-433).

A resposta de Helen Keller mostra que enquanto ela, como filósofa, se preocupava, em suas palestras, com questões existenciais, propondo discussões sobre valores sociais, formação dos gêneros na sociedade, a posição do homem e da mulher na hierarquia social, os trabalhadores assalariados como uma nova forma de escravidão em torno do capital; muitas das pessoas que estavam em sua volta, na maioria das vezes estavam preocupadas e impressionadas com o fato de Helen Keller não utilizar a visão e a audição para se orientar.

Nesse cenário, Helen Keller era uma espécie de representação de um ser exótico, que ocupava um lugar, que a sociedade não havia pensado para ela, o de ser “filósofa”. Helen Keller se autodefinia filosofa, e apresentava em suas palestras, um discurso feminista. Helen Keller não se preocupava com o modo como experimentava o mundo, mas sabia que era olhada como alguém que pertencia a uma categoria. Ela dizia que “o modo de ajudar os cegos ou qualquer outra classe deficiente era entendendo, corrigindo, e removendo as incapacidades e desigualdades de toda a civilização” (KELLER, 2008, p. 433). No entanto, a sociedade, a priori, a identificava por meio da palavra deficiente. Helen Keller era considerada uma pessoa com deficiência de “mão dupla”: deficiente auditiva e deficiente visual. Portanto, Helen Keller era reduzida pela palavra, a pertencer a

2 Helen Keller, segundo Berger, era formada em filosofia pela Radcliffe College e

conferencista. Escreveu mais de 14 livros, todos publicados. Recebeu vários títulos, dentre eles, pelas Universidades de Harvard, da Escócia, da Alemanha, da Índia, da África do Sul. No Brasil foi condecorada com a Ordem do Cruzeiro do Sul. (Cf. 2008).

uma categoria. Ela pertencia à categoria de pessoas com “deficiência múltipla”, era estigmatizada por aqueles que diante dela se colocavam a ouvi-la.

Deste modo, se entendo a palavra deficiência como uma categoria é porque a palavra deficiência acaba sendo considerada intrínseca à pessoa humana que por ela é estigmatizada. A proposição da deficiência é algo que marca o ser humano que por ela é proposicionado. A exemplo dessa proposição e categorização pela palavra deficiência, assim como Helen Keller foi marcada durante sua vida, também na contemporaneidade parece haver um escondimento da potencialidade de alguns atletas brasileiros. A proposição de determinar o atleta como pessoa com deficiência, anula suas habilidades, suas vitórias, sua beleza, e muitas vezes seu mérito. Refiro-me a pouca atenção dispensada pelas mídias em relação aos atletas brasileiros que nas paraolimpíadas trouxeram, ao todo 47 medalhas, sendo 16 de ouro, 14 de prata e 17 de bronze3. A lista dos campeões é extensa, porém “pálida”. Mesmo com tantas medalhas, os atletas não ilustraram as capas de revistas do Brasil, e pela televisão, foram mostrados durante a competição por meio de pequenos flashes. Ao ganharem uma prova, muitas vezes, ao invés de serem tratados como exemplo de potência esportiva, foram e são tratados como exemplo de superação humana. Assim como Helen Keller, grande filosofa, “pálida”, do século XX; os atletas, embora medalhistas, e mesmo mostrando toda a sua eficiência, são categorizados como pessoa com deficiência, tornando-se também, uma imagem “pálida” na história do esporte brasileiro. Antes de serem significados como atletas, são simbolizados como pessoas com deficiência. Isso pode indicar que a palavra deficiência marca, e marca porque cria uma realidade sígnica em nossa sociedade, produz uma imagem, firma sua proposição como uma verdade e se dissemina, se alastra como uma espécie de paranóia, como, já citado anteriormente, como um sistema fechado do qual parece impossível fugir.

As pessoas, ao fazerem uso da palavra deficiência para marcar uma outra pessoa, parecem não perceber que, como disse Foucault, “as línguas estão com o mundo numa relação mais de analogia que de significação” (2007, p. 51). A

deficiência pode ser entendida então como uma relação de valor, que se formou em primeiro momento, no universo da linguagem. A deficiência é pura realidade sígnica, uma analogia entre coisa e símbolo.

Para entender essa realidade sígnica da qual eu falo, busco a palavra deficiência em seu in statu nascendi. Desse modo, atravessando a história, busquei, brevemente, sua etimologia: A palavra, deficiência, segundo Fernandes (1967), circula na sociedade como sinônimo de falta, relacionando-se diretamente com a idéia de déficit. Dessa forma, o deficiente seria aquele cuja falta lhe é inerente. Atrelando, o que Fernandes traz como significado de deficiência, a idéia de Foucault e Flusser, entende-se que o deficiente é aquele que, perante a sociedade, não possui as mesmas qualidades que os outros. Ao deficiente falta alguma coisa. Se pela linguagem a deficiência significa falta, a imagem da pessoa simbolizada pela palavra deficiência, num processo de analogia, será a imagem de um corpo, que traga consigo, alguma evidencia da falta. Essa falta poderá ser anatômica, fisiológica, ou comportamental. A proposição é então imposta ao corpo que for considerado deficitário.

Em alguns documentos governamentais, entre esses, o documento intitulado, Saberes e Práticas da Inclusão (MONTE, 2004, p.19); a palavra deficiência é empregada como sinônimo de diferente, não estabelecendo relação com a concepção de indivíduo defeituoso trazida etimologicamente pela palavra deficiente. No documento analisado, a palavra deficiente não aparece. Pré- suponho, que há uma tentativa, das autoras, de desvincular a palavra deficiência da palavra deficiente, relacionando-a diretamente com a palavra diferente.

O documento a qual me refiro, trata-se de um documento elaborado em 2004 pelo Ministério da Educação e a Secretaria de Educação Especial do Governo Federal, sob a coordenação das professoras Francisca Roseneide Furtado Monte e a Professora Idê Borges dos Santos. O documento tem como objetivo, como explicitado em seu texto de apresentação:

Debater e analisar aspectos da educação inclusiva, compartilhar dúvidas e inquietações acerca da prática pedagógica, socializar experiências

positivas e dificuldades encontradas na construção de uma educação infantil inclusiva e refletir sobre o papel da mediação social para a necessária transformação cultural no interior da escola (2004, p. 07).

O documento, Saberes e Práticas da Inclusão; é composto de nove fascículos, nos quais são abordados: processos de desenvolvimento, autismo, deficiência múltipla, deficiência física, surdocegueira/múltipla deficiência sensorial, surdez, deficiência visual, e superdotação. O documento foi distribuído com o intuito de qualificar e de ser estudado por “professores” nos programas de formação inicial e/ou continuada da educação infantil de todo o Brasil, conforme proposto em sua carta de apresentação. Logo, os “professores” da educação infantil, em território nacional, por meio desse documento, deveriam “discutir”, em seu processo de qualificação e estudos, a deficiência como palavra sinônima de diferença e de diversidade humana. Muito embora, o próprio documento traga em seu corpo, um fragmento da declaração de Salamanca (1994) com a qual a palavra deficiência é relacionada diretamente com o termo “pessoas com necessidades especiais”. A declaração de Salamanca citada no documento Saberes e Práticas da Inclusão, entende que “o termo necessidades educacionais especiais refere-se a todas aquelas crianças ou jovens cujas necessidades se originam em função de deficiências ou dificuldades de aprendizagens” (2004, p. 14). Entretanto, em quase todo o documento, as autoras se referem à deficiência como diferença. Isso representa, de certo modo, uma contradição de opiniões e conceitos, entre aquilo que se apresenta na declaração de Salamanca, e elas trazem em seu texto, e o que as autoras tentam passar enquanto proposta. Segundo Monte e Santos, em síntese, “a deficiência é uma diferença” (2004). Essa forma de se pensar a deficiência como sinônimo de diferença, não muda muita coisa. Jacques Derrida (1995) em seus escritos A Escritura e a Diferença; traz o conceito de diferença como algo que se forma por meio de determinada qualidade e intensidade, não é uma diferença pela forma, mas pela existência. A diferença se dá segundo Derrida (1995), pelo sentido do que se é para o outro. Pensando no que Derrida propõe, e considerando algumas idéias de

Umberto Eco trazidas em A História da Beleza; e embora Umberto Eco não fale sobre deficiência, ou diferença, ele fala sobre a feiúra. Para Umberto Eco, “o feio é necessário a beleza” ( 2010, p. 148). Considerando a fala de Umberto Eco e de Jaques Derrida, penso que a diferença é necessária para a igualdade, para a identidade, e a deficiência é necessária para a afirmação da eficiência, assim como a feiúra é necessária para a beleza. Muito embora, a feiúra, a diferença e a deficiência sejam sempre uma marca impressa no outro.

Nesse aspecto, retomo, em síntese, o que falei anteriormente sobre Helen Keller. Ela não se autodefinia como pessoa com deficiência, mas sua existência era marcada pelo outro que assim a significava. As pessoas que circulavam Hellen Keller insistentemente tentavam fazê-la se autodefinir como uma pessoa com deficiência. Essa ação sobre a filósofa era uma constante em todos os lugares em que Hellen Keller palestrava. Ainda, em pleno século XXI, é possível ouvir e presenciar, Hellen Keller sendo citada e usada como referência de pessoa com deficiência que superou suas dificuldades, pouco se fala sobre sua obra, pouco se discuti sobre sua filosofia, e pouco se enxerga de sua potencialidade.

Helen Keller, do ponto de vista clínico, seria sempre a pessoa com deficiência auditiva e visual, do ponto de vista social uma espécie de vida “humana exótica”, sempre considerada pelo outro como diferente. Fernandes diz que a palavra diferente significa “diverso, desigual, distinto, dessemelhante, mudado, alterado, transformado, modificado, inexato, malquisto, indesejado” (1967, p. 274). Tendo como referência Fernandes, penso que as palavras, deficiente, diferente, diferença e deficiência são semanticamente sinônimas. Essa sinonímia aponta um certo fracasso em relação à tentativa de desvincular a palavra deficiência da palavra deficiente, recolocando-a como sinônimo de diferente. Como apontei, a diferença, também tem uma conotação negativa tanto quanto a palavra deficiente. Em nível semântico, dizer que algo é diferente é o mesmo que dizer que algo é deficiente. Logo, a significação de todas as palavras citadas acima, acaba convergindo para a significação de uma única imagem, sendo que beleza, potencialidade muitas vezes se tornam pálidas e se anulam para dar lugar a paranóia da deficiência:

Como exemplo dessa sinonímia entre pessoa com deficiência, imagem do deficiente e o discurso da diferença, trago um pequeno trecho da literatura irônica de Machado de Assis. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, há uma boa forma de se exemplificar a diferença que se mostra pela deficiência. Na criação literária de Machado de Assis, Eugênia, uma das paixões de Brás Cubas, é rejeitada por ele, por ter uma perna mais curta que a outra. Eugênia é marcada no romance machadiano, como uma belíssima “flor da moita” diferente porque manca, deficiente porque “coxa” (KLOTZEL, 2000). Como dizia Brás Cubas sobre Eugênia “como pode, uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma moça tão bonita, e coxa. Por que coxa, se bonita? Por que bonita, se coxa? Bonita, mas coxa!” (KLOTZEL, 2000). O que faltava para Eugênia, segundo Brás Cubas, era

Quadro I – Palavras que convergem para a imagem de um corpo, que se comparado a um corpo padrão, possui uma falta:

Quadro 1: Na seqüência Sarah Reinertsen, Fernando Fernandes e Kelly Knox. As imagens foram tiradas das revistas ESPN, Globo e Marie Clair Britânica.

harmonia. Sendo que sendo a moça coxa, não teria uma simetria perfeita, não teria elegância no andar. Como disse Umberto Eco, “belo, junto com gracioso, bonito, ou sublime, maravilhoso – é um adjetivo que ao ser usado indica, freqüentemente, algo que agrada” (2010, p. 08). Por isso Brás Cubas achava incompatível Eugênia ser bonita e coxa, ele não se agradava do manquitolar da moça, não era harmonioso, era deficiente e por isso diferente. Logo, assim como na literatura, a sociedade, em muitos momentos, estabelece uma relação uníssona entre diferença, deficiência e desarmonia.

Assim como Machado de Assis se refere a Eugênia como uma pessoa desarmônica, incompatível com felicidade e beleza; na contemporaneidade, pode se ver, mesmo que não seja de modo intencional, a apresentadora Marília Gabriela, trazer em seu programa no SBT resquícios machadianos. Ao entrevistar o modelo, atleta e ex-BBB Fernando Fernandes no programa de Frente com Gabi, no dia 28 de agosto de 2011, Marília Gabriela parecia não se conformar com a segurança e a forma como seu entrevistado se autodefinia. Fernando Fernandes, em síntese, revelou que tem consciência de sua vida, sabe como o processo de