• Nenhum resultado encontrado

2 TERRITÓRIOS DA AMBIGUIDADE, PAISAGENS DA LIBERDADE

3.4 A (des)honra e a vingança de um anti-herói

A morte de João Pessoa vem alterar de novo o “tabuleiro”, e outra peça se movimenta para oferecer o contraste que garantirá as cores da heroicidade ao governante assassinado e, no seu curso, a sua sagração como modelo de virilidade e honradez. Justamente, João Duarte Dantas. Advogado, nascido em Mamanguape (PB), pertencente a uma família de proprietários rurais que gozava de prestígio desde os tempos monárquicos, tinha 32 anos quando disparou à queima-roupa contra o presidente da Paraíba, que se encontrava com amigos e partidários na Confeitaria Glória, em Recife-PE.

Este episódio interessa aqui mais de perto não tanto pela sua repercussão política, sendo considerado o “estopim para a revolução de 1930”, mas pelos sentidos que nele e dele reper- cutem, que muito instigam, o olhar sobre a moralidade e os costumes de uma época, mais es- pecificamente no que diz respeito às relações de gênero.

O assassinato de João Pessoa coloca em evidência toda uma discussão sobre honra e vi- rilidade que aparece “colada” às estratégias de se designar as culpas e responsabilidades da tragédia, o que dá ainda mais visibilidade aos modelos de masculinidade e feminilidade que estarão vinculados ao projeto político que então tomava corpo no país.

Ora, além de “bandido”, “assassino”, “cesaricida”, “sicário”, que remontam mais dire- tamente ao ato cometido naquela tarde que entrou para a história, João Dantas terá sua ima- gem atrelada à de “tarado”, “pornográfico”, “degenerado” — toda uma série de adjetivos que o desqualificam diante dos esforços que procuravam codificar uma sociedade sã, higiênica, disciplinada sexual e moralmente.

Que práticas teriam possibilitado imprimir estas marcas, sulcá-las de modo tão intenso, na pele do advogado que se dizia sem vícios, “um homem que não fuma, não bebe, não jo-

ga...”? 238 Estas, ao que parecem, ganharam evidência a partir do momento em que ele adqui- riu notoriedade como crítico do governo João Pessoa. Participando da guerra verbal que se intensificava entre o presidente e José Pereira, chega a ficar no front, escrevendo uma série de artigos intitulados Às voltas com um doido, onde questionava ações do governo de forma combativa, pungente, ao tempo em que atacava João Pessoa chamando-o diretamente de “doido”, “palhaço”, “ladrão”, defendendo-se assim de acusações semelhantes publicadas con- tra ele no Jornal A União.

O estilo irônico da escrita de João Dantas já era conhecido, ainda que em tons mais brandos e zombeteiros, dos leitores da coluna Risos e Frisos, de O Jornal, em que tornava risíveis as atitudes e características de alguns homens públicos da época, decerto, ganhando com isso a antipatia de alguns. Mas nunca parecera tão inconveniente e, diante do fato de es- tar tratando da maior autoridade do Estado, tão ousado.

João Dantas sentia sua família prejudicada e desrespeitada pelas medidas do governo, por aquilo que considerava abuso de poder e incompetência. Família que, sendo parte impor- tante na base do Partido Republicano no interior do Estado, estava ao lado de José Pereira na liderança de oposição ao governo, apoiando-o com homens, armas, munições e, claro, uma intensa guerra verbal, contando para isso com o apoio de João Pessoa de Queiroz, primo e inimigo ferrenho de João Pessoa, que colocava nas mãos deles uma poderosa arma: o Jornal do Commercio, de Pernambuco. Foi aí que João Dantas publicou um mês antes do fatídico encontro com seu opositor:

Nos sustos e tremeliques que te atormentam nas pungentes crises do teu me- do, do teu terror de Princesa — dessa Princesa da tua insônia, que será o e- terno pesadelo das tuas noites, dessa Princesa, reduto invicto da bravura ser- taneja, da qual não ousam aproximar-se as tuas tropas e onde, entretanto, to- do mundo passeia livremente — nessas maleitas de pânico que te afligem, repito, tu supões que toda a gente tem os nervos relaxados como os teus e queres que todos os teus inimigos sejam covardes. [...] Mais quais serão, Jo- ca, os valentes que há mais de cem dias desbaratam em todos os recontros as tímidas vanguardas do teu exército de três mil homens e desafiam a tua raiva impotente? [...] Que gente sem valia é essa que, para a atacar, precisas pren- der senhoras, como reféns, preparares carros blindados que não vingam ram- pas e adquires aviões que não voam e logo no primeiro ensaio dão cabo do piloto? [...] É tempo de ires pondo de lado esses arroubos de valentia de que nunca deste mostras antes de te encarapitares nas imunidades de presidente. Deixa-te disso, mesmo porque, para esses desabafos literários pela tua gaze- ta, arvorada em pelourinho da reputação alheia, tu não tens fôlego. [...] Pes- soas tidas no melhor conceito, altos funcionários federais, famílias das mais ilustres e tradicionais do estado, todos, enfim, que incorrem no teu rancor,

238

João Dantas referindo-se a sua imagem em carta para Anayde Beiriz. Reproduzida em MELO, Fernando.

são ali cobertos dos mais soezes baldões. No mais frívolo comentário do ór- gão oficial do estado, posto a serviço dos teus desaforos, este é um infame, aquele um biltre, aqueloutro um patife. Mas tu, que menosprezas a tal extre- mo a dignidade alheia; tu, que atiras diariamente injúrias coletivas, visando famílias inteiras; tu, que em linguagem de arrieiro, no calão mais reles, pas- sas descomposturas mesmo a pessoas que não conheces, serás outra coisa senão um biltre, um patife? De mim, dizes que sou um ‘aventureiro”, um “celerado”, um ‘miserável”, um “bandido”... Não necessito defender-me de injúrias tão vis, num meio onde sou conhecido e onde tenho conceito firma- do que desafia a tua virulência. [...] Ladrão és tu, ostra de ministério, aristim de repartições federais, no exercício infrene da tua desbragada advocacia administrativa. [...] De onde te veio a tua grande fortuna?239

Pode-se sentir claramente o nível de tensão e afetação das pessoas envolvidas no confli- to naquele momento. As críticas que fazia a João Pessoa eram, pois, arranhões graves na ima- gem limpa e austera que posteriormente livros como o de Ademar Vidal procuram perpetuar. Falam-nos do desenrolar de um conflito que expressa as tênues fronteiras entre a honra da vida pública e a da vida privada, que dentro de pouco tempo vêm se confundir ainda mais com o episódio da invasão à casa de João Dantas, que figurará como “a gota d’água” para o desenlace trágico daquela rivalidade.

Tal invasão, como tudo o mais que envolve os fatos relacionados aquele momento, tem sido ao longo dos anos motivo de muitas controvérsias. Quem tomou a iniciativa? João Pessoa sabia? Autorizou? E José Américo, teve participação? Mas a questão que mais reper- cute em toda essa produção é: poderia João Dantas aceitar tal acinte sem revidar? E o que dizer diante do fato de ter documentos pessoais apreendidos e publicados, além de correspon- dência e anotações de fórum íntimo apropriadas por alheios? Sua honra, como insígnia da sua virilidade, suportaria isso? Então, fora o crime cometido por ele uma vingança “para lavar a honra com sangue”? E, sendo assim, há para ele um atenuante?

Encontrando-se em Olinda, sabe-se que João Dantas se preparava para ir ao Rio Grande do Norte, articulando-se junto ao governo do estado vizinho, para garantir apoio a possível intervenção que o Governo Federal estaria planejando para a Paraíba, quando ocorreu a inva- são do seu domicílio na capital paraibana. A versão que se tornou oficial conta que a sua mo- rada, que ficava no mesmo prédio de uma associação desportiva, teria sido arrombada por elementos desconhecidos. Fato que ao chegar ao conhecimento da polícia, suscitou uma dili- gência que entrou na casa para apurar o acontecido e, encontrando lá rifles e munições, além de “documentos espalhados”, resolveu confiscá-los, assim como ao conteúdo de um cofre, por considerá-los comprometedores.

239

Artigo reproduzido em INOJOSA, Joaquim. República de Princesa (José Pereira X João Pessoa - 1930). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1980. p. 275.

Ademar Vidal, também acompanhando de muito perto estes acontecimentos, inclusive tendo designado o delegado que comandou a diligência, declara em seu já citado livro que entre o material apreendido “duas ou três cartas foram publicadas. E um caderninho, o qual jamais poderá ser revelado de público por encerrar tendências mais vis de um doente sexu- al”.240 Num outro depoimento detalha:

Como já eram notórios os antecedentes de João Dantas, seria bem possível, caso o Governo Federal vencesse a partida, que dentro do cofre ‘existia uma fortuna’. [...] Dentro do cofre encontraram apenas ‘frascos de cheiro’, um perfume ordinaríssimo par dar às mulheres vadias. De maneira que dinheiro mesmo nenhum. Um ‘folheto de feira’, de capa verde, em que descrevia

as comunicações dele com a suposta noiva, que agora se quer impingir como tal. Não era. Era amante dele, pela própria descrição existente no livrinho, de uma maneira que jamais poderia ser publicada, nem em Nova Iorque, onde a pornografia subiu ao cúmulo. Não podia ser publi-

cado jamais. Maldosos assoalham até que foi publicado pelo órgão oficial. É falso. A União publicou apenas duas cartas inocentes feitas por alguns ad- versários, tratando apenas de demissão de funcionários e nomeação de corre- ligionários deles.” 241

A polêmica sobre a publicação ou não do caderninho que expunha a intimidade de Dan- tas e Anayde Beiriz parecerá a Vidal uma estratégia, décadas depois, de dar atenuantes ao ato cometido contra a vida de João Pessoa: “pretexto, sim, para o crime anunciado meses antes. “Insensatez”, “honra manchada” — convenha-se que, após quarenta anos, é mesmo uma “in- sensatez” ajudar a mentira de quem agiu com desprezo de um mínimo de “honra pessoal”.242

Suas críticas vão de encontro a narrativas como a de Joaquim Inojosa que olha o desen- lace daqueles acontecimentos com outras lentes, observando o que denomina “Espírito Con- turbado pela Dignidade Ofendida”.243 Na parte que assim nomeia no seu República de Prin-

cesa, transcreve o depoimento prestado por João Dantas ao ser preso, no mesmo dia da tragé-

dia na Confeitaria, em Recife:

[...] que chegando ao Varadouro, aí viu nas mãos de um dos passageiros do bonde um exemplar de A União, órgão oficial da Paraíba, no qual se anunci- ava a vinda do presidente daquele Estado a esta capital; que pôde ler o decla- rante no dito jornal que, de ordem do mesmo presidente, continuava a ser feita naquela folha a publicação de documentos do seu arquivo particular; que para esse fim fora arrombado o cofre do declarante cujas chaves trouxe consigo e nele havia papéis íntimos que não foram dados por serem imorais, mas se convidava a quem quisesse examiná-los e fazê-los na referida reda-

240

VIDAL, Ademar. João Pessoa e a Revolução de 30. Rio de Janeiro: Graal, 1978. (Coleção Depoimentos). p. 248.

241

VIDAL apud MELO, op.cit., p. 97. (grifo meu). 242

VIDAL, op. cit., p. 252. 243

ção de A União; que o declarante não sabe medir a extensão da indigna-

ção que o assoberbou desde que viu publicadas na mesma folha e de ordem

do governo cartas íntimas do seu velho pai, de 70 anos de idade, para ele de- clarante, publicação do que resultava manifesto intuito de ofensa e ridí-

culo; que o declarante sentindo desde dias, a necessidade de um desa- gravo da ofensa que se lhe vinha fazendo com a inversão de todas as nor-

mas de bom senso e até da responsabilidade do cargo que exercia ou exerce João Pessoa naquele Estado, teve desta vez a intuição que o desaforo devia ser imediato; que sob grande tempestade interior guiada a um sentimento

de honra que a tudo se sobrepunha, desceu do bonde, voltou à casa do seu cunhado Augusto Caldas e aí se armou de um revólver dele declaran-

te, marca Colt, o qual possui desde 1922 e veio a esta cidade disposto a pro- curar o presidente da Paraíba que tão duramente o vinha ofendendo de â-

nimo feito e propósitos humilhantes; [...]244

Inojosa demarca na análise das declarações a “idéia fixa de vingança, que acredita ser “muito dos temperamentos dos Dantas, conhecidos pelas reações intempestivas”. Inventaria, além deste depoimento, outras declarações de João Dantas que o reforçam, assim como algu- mas anteriores como o teor do artigo aqui citado e um telegrama enviado a João Pessoa alguns meses antes, em que o acusava do seqüestro do irmão Joaquim Dantas e de ordenar incêndio na fazenda do seu pai; no qual dizia ser “forçado a lembrar, sem estardalhaço tão do agrado do vosso temperamento teatral, que felizmente tendes filhos e juntamente com eles responde- reis pelo que sofre minha família, respondendo também o Estado pelos prejuízos materiais causados”. 245

Para Inojosa, este “ódio latente”, que ele vê declarado em todas essas peças de inquérito, vinha revelar que a questão saíra do terreno político para o meramente pessoal, não se tratan- do mais de briga entre parentes, apenas de palavras: “assumia aspecto grave de encontro e vingança, em que iria predominar o ódio do sertanejo, aquele de João Dantas que o juiz da sentença considerou ‘visceral’, ‘rancoroso’ e ‘indisfarçável’”.246

Então, ao passo que considera eloqüente as motivações em torno da honra e da dignida- de que teriam motivado o ato extremado de João Dantas, Inojosa também vai, estrategicamen- te, pontuando a culpa pessoal do seu crime, como forma de dirimir as possíveis responsabili- dades que respingaram sobre seus adversários de maior peso político, como José Pereira e João Pessoa de Queiroz, muitas vezes acusados de serem os mentores de uma conspiração, de terem insuflado e armado João Dantas.

O que se pode com isso perceber é que, embora com objetivos e interesses distintos, tan-

244

Depoimento de João Dantas reproduzido em INOJOSA, op.cit., p. 21. (grifos meus). 245

INOJOSA, Joaquim. República de Princesa (José Pereira X João Pessoa - 1930). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1980. p. 218.

246

to as estratégias discursivas utilizadas por Vidal quanto as de Inojosa, vêm construir um lugar de destaque para João Dantas no meio de toda essa trama, demarcado pelas questões da hon- radez. Sua imagem é como que ‘isolada’ para responder/representar, fosse de maneira positiva ou negativa, à expressão mais exacerbada a que se poderia chegar um homem e sua (des)honra.

Para Vidal o ato extremado de Dantas confirma os indícios de uma vida “imoral”, como aqueles que foram encontrados em sua casa. Afinal, é para não afrontar a honra das famílias, que se considera impublicável o conteúdo do tal caderninho. E aí, com base naquilo que suge- re ter visto, afirma que Anayde Beiriz não era noiva, mas amante de João Dantas. Ou seja, sugere a “desonra” de Anayde, já que a insinuação de uma vida amorosa e sexual fora do ca- samento tirava dela este qualificativo, o que costumeiramente, no caso das mulheres, se repre- sentava pela idéia da virgindade.247

A sexualidade, pois, emerge como um trunfo determinante na desqualificação do outro. Qual segredo teria João Dantas naquele cofre, o que guardaria com mais zelo? O discurso de Vidal e de todos que o reproduzem, repetem sem falar: ora, segredos de alcova. Eis o que ti- nha de mais íntimo. Estratégia que serve para expor e ridicularizar João Dantas, sugerindo que ali se revelava o que ele de fato era: “devasso”, “imoral”, “indecente”. Recurso eficiente que logo se colou à imagem de outros “perrés” e, principalmente, à de Anayde Beiriz.248

A imagem de “amante” aí não condiz com a idéia corrente de um caso clandestino, que envolve alguém casado. Não, ambos eram solteiros. Trata-se justamente da idéia de uma transgressão às práticas e vínculos sexuais normativos, que exigiam a aquiescência da Igreja e, cada vez mais, do Estado. Inscritos nesse lugar, os “amantes” passam à imagem de devassi- dão perante a “lei de Deus” e a “lei dos homens”. Se isto já o era suficientemente forte para inspirar recriminações na sociedade brasileira da Primeira República, imagine se os “trans- gressores” estivessem envolvidos num clima político de tensões acirradas, em que os sentidos

247

A importância conferida ao hímen como testemunho da pureza e como signo demarcador da honra sexual feminina motiva uma série de estudos médico-legistas no Brasil da Primeira República, demonstrando a grande preocupação das autoridades jurídicas com a virgindade feminina durante os 50 anos de vigência do código pe- nal de 1890, inspirando uma verdadeira “himenolatria”. Sobre “honra e himenolatria na Primeira República” ver CAULFIELD, op.cit., p.51-56. Inclusive, Lourdes Luna, assim como mais recentemente Joacil de Britto Pereira, no seu Mulheres-Símbolos, referem-se ao resultado de uma autopsia feita no corpo de Anayde, que teria atestado sua virgindade.

248

Até hoje é grande a polêmica sobre a publicação ou não dos escritos amorosos, incluindo a hipótese de que nunca existiram – como sustenta Lourdes Luna. Na edição ordinária do Jornal A União, na véspera do assassina- to, anexadas em fac-símiles nos livros de José Octávio Arruda de Mello e Wellington Aguiar, as cartas publica- das são aquelas que tratam das querelas políticas. Enquanto para alguns como Joffily, que diz que elas existiram e que teriam ficado expostas à curiosidade pública na delegacia, há outras suposições, como a de terem sido publicadas numa edição extraordinária, depois destruída(!), pelo jeito não sobrando nenhuma para nos esclarecer a questão.

da honra pessoal ressoavam na honra do Estado...

Ademais, Anayde Beiriz freqüentava ambientes circunscritos às altas rodas sociais, onde a força destes códigos pareciam restringir ainda mais as possibilidades de linhas de fuga das mulheres no território da sexualidade, posto que a visibilidade tornava-se maior, assim como os dispositivos de vigilância mais sofisticados, entre os quais, aqueles que operavam através da escola e, cada vez mais, da imprensa.249

Antes da intensificação maior de todos aqueles conflitos, ela já sentia na pele a força dos preconceitos contra a imagem de uma mulher de idéias e atitudes consideradas liberais, namo- rando um crítico e opositor do governo. Mas é preciso dizer que se parecia uma mulher “avan- te do seu tempo”, também revelava os traços do seu próprio contexto, em situações como esta, descrita no livro de José Joffily:

Foi em plena campanha política, em fins de 1929. Achava-se ela num coreto da praça Venâncio Neiva, à curta distância de sua casa, à Rua da República, quando em banco próximo, uma atrevida dondoca murmurou: — Eu não te- ria filhas para ser aluna de certas professorinhas... Poderia Anayde afastar-se ou ignorar a perfídia, mas a contundente reação foi bem diversa: —Não tem filha. E se tivesse, seria com certeza de pai desconhecido.250

Percebe-se no comentário da “dondoca”, a recriminação a Anayde, ao que Joffily segue designando o que seria a atitude esperada conforme as regras de boas maneiras.251 Não agir como tal, conota a imagem da rebeldia e do temperamento forte, mas preste-se atenção ao que responde Anayde, que tática ela usa para também afrontar a moral daquela que a provocara: justo a da sexualidade desviante, da imagem da mulher libertina, que poderia mesmo engravi- dar de um desconhecido. Ou seja, sua reação enuncia aqueles mesmos códigos e dispositivos normatizadores que já a colocavam numa “margem”. Procura ferir com a mesma arma, por- que reconhece e tem subjetivado os valores que pesavam contra as mulheres aquele tipo de ofensa.

Então segue-se percebendo um pouco como funciona o uso destes dispositivos que se enunciam nas estratégias discursivas, que fazem da sexualidade e da intimidade os lugares últimos, a “morada” da honra de homens e mulheres. Com o agravante de que no caso das mulheres, esta marca de honra deveria estar bem guardada num “cofre”, no lugar mais secreto

249

Como constatei em minha dissertação de Mestrado sobre as imagens femininas na imprensa da Parahyba (1920).

250

JOFFILY, José. Anayde: Paixão e Morte na Revolução de 30. Rio de Janeiro: Record, 1983. p. 31.